Discussões sobre um segundo resgate, notícias sobre derrapagens no défice, sanções de Bruxelas, mercados impiedosos, anúncios da vinda do “diabo” e, claro, sucessivos avisos sobre o agravamento da “tensão” entre os partidos que apoiam o Governo. Nos primeiros dois anos de governação da exclusiva responsabilidade da esquerda, as hipóteses mais dramáticas sobre a economia e as finanças públicas não se concretizaram. No entanto, os progressos conseguidos não foram suficientes para recuperar o terreno perdido durante a crise.
Num balanço económico dos últimos dois anos, é difícil não começar pelos desenvolvimentos positivos. Portugal cresce ao ritmo mais rápido desde 2000, o desemprego está em mínimos de 2004 e o défice encontra-se no nível mais baixo da democracia; o País deixou de estar sujeito ao Procedimento dos Défices Excessivos e à classificação de “lixo” por duas agências de rating; e Mário Centeno foi eleito presidente do Eurogrupo. Um retrato longe da vaga pessimista que acompanhou o nascimento desta solução de Governo (jornais alemães falavam de “uma nova Grécia”, Cavaco Silva previa graves “consequências financeiras, económicas e sociais”) e o arranque débil de 2016. “Nenhum dos agouros da direita se confirmou”, conclui Mariana Mortágua, deputada do BE.
A aceleração que se seguiria e o ajustamento da estratégia orçamental do Governo deixaram esses cenários no espelho retrovisor. Contudo, é útil pôr os avanços recentes em perspetiva. O forte crescimento de 2017, o quarto ano consecutivo de recuperação, surge num ciclo europeu altamente positivo e, mesmo assim, não foi suficiente para pôr o produto interno bruto (PIB) no nível de 2010, antes da entrada da Troika em Portugal.
“Os resultados permitem dizer que os cenários extremistas não se verificaram, mas também questionam a festa que o Governo está a fazer”, sublinha o deputado do PSD António Leitão Amaro, em declarações à VISÃO. Os dados do INE publicados na semana passada confirmam que as exportações não pararam de galopar, mas o consumo e o investimento continuam, em termos reais, abaixo do pré-Troika. No mercado de trabalho, o emprego (medido em contas nacionais) só agora chegou ao nível de 2010 e a percentagem de precários não caiu. A banca está mais sólida, mas continua sem emprestar às empresas, em parte porque uma em cada quatro tem crédito malparado, cujo peso total mais do que duplicou face a 2010. A média salarial nacional pouco mexeu e o SNS ainda está nos cuidados intensivos.
Mariana Mortágua reconhece que “a recuperação é longuíssima, principalmente condicionada pelas regras orçamentais”. Uma das suas queixas encontra eco também à direita. “No investimento público não houve esforço. O Governo executa muito abaixo do orçamentado”, critica a bloquista. “Parte do problema está na preocupação em cumprir metas. A despesa é bloqueada pelas Finanças.”
Leitão Amaro nota também a evolução desapontante da produtividade, fruto de o emprego estar a crescer mais rápido do que a economia e em setores como o turismo. Mais: o social-democrata reforça que o desempenho nacional não é especialmente notável quando comparado com outros países europeus. Os 2,7% de crescimento alcançados por Portugal em 2017 estão em linha com a média, e a maior parte dos países até superou esse resultado. “Em comparação com o ciclo económico que estamos a viver, é um resultado medíocre.”
Do lado das contas públicas também há alertas. O maior de todos, aponta Joaquim Miranda Sarmento, professor de Finanças do ISEG, está na dívida: mesmo com um excedente primário, os juros e as ajudas aos bancos adiaram sucessivamente a descida de um dos endividamentos mais altos do mundo. O rácio atual está ainda muita acima de 2010: 126% vs. 96% do PIB. Será difícil enfrentar uma nova crise com uma dívida pública de três dígitos.
Sendo claro que Portugal está a crescer a um ritmo sólido, a discussão deslocou-se para o que o está a alimentar. A direita argumenta que, apesar de a estratégia do Governo se basear no estímulo do consumo via devolução de rendimentos, são as exportações e o investimento que estão a puxar pela economia. De facto, se olharmos para os contributos do crescimento dos últimos dois anos, as exportações foram mais relevantes do que a soma do consumo e do investimento. Além disso, o défice orçamental foi reduzindo mais rápido do que os planos iniciais do PS. O modelo inicial falhou? Ricardo Paes Mamede, do ISCTE, reconhece que as coisas não correram como era suposto. “Não sabemos se foi o contexto externo ou as hipóteses que estavam erradas, mas logo em 2016 o modelo não funcionou. O consumo privado ficou aquém, o investimento também”, explica.
Na segunda metade de 2016, Portugal começou a sentir ventos mais favoráveis, que facilitaram avanços em várias frentes, do défice à relação com Bruxelas. “É importante distinguir resultados de medidas. Acho positiva a compreensão, a partir do verão de 2016, que o caminho de contrarreforma e de aceleração do consumo estava a resultar mal”, refere Leitão Amaro. Embora tenha adotado um sistema gradualista em quase todas as devoluções de rendimentos, a verdade é que o Executivo as tomou: as pensões subiram, os salários dos funcionários públicos foram repostos, a sobretaxa eliminada e o salário mínimo reforçado. “A devolução de rendimentos não é, só por si, uma estratégia, mas faz parte. O consumo gera vendas, que cria emprego e dá origem ao investimento”, afirma Mariana Mortágua. Mesmo o PSD, que prefere dar crédito às reformas passadas, aos programas do BCE e ao ciclo europeu, reconhece o impacto. “Há um efeito de curto prazo com medidas do lado da procura”, reconhece Leitão Amaro.
Talvez poucos esperassem que um Executivo apoiado por PCP e BE tivesse este perfil de crescimento e um dos maiores excedentes primários do euro. Cumpriu as expectativas? “Sabíamos que rompendo com a austeridade seria possível entrar num melhor ciclo económico, [mas] que em áreas como a banca seria difícil estar de acordo com o PS”, lembra Mortágua. “Foi um acordo de mínimos.” Para já, foi suficiente para estancar hemorragias; falta agora fechar as feridas.