Ao longo dos anos, Armando Cardoso foi muitas vezes notícia, e sempre por duas razões: muito boas e muito más. Tão depressa ajudava a reparar uma mão biónica para um menino carenciado como parava abruptamente de suportar o tratamento de outra criança com uma doença rara porque a mãe não lhe entregava as faturas. Aqui, a equipa de atletismo patrocinada pela sua Conforlimpa era multicampeã nacional e europeia de corta-mato e meia-maratona; ali, surgia um e outro escândalo de doping. Ora prometia um subsídio mensal a um projeto de cegos e deficientes, ora a sua empresa deixava de pagar salários a muitos dos seus trabalhadores.
Tanto se queixava de pagamentos em atraso por parte do Estado no valor de €3,6 milhões e, afinal, seria a própria Conforlimpa a dever €42 milhões ao Estado, devido a uma série de fraudes fiscais.
Milionário, benfeitor e, aparentemente, burlão em grande escala. Em março de 2013, a empresa (que foi, no seu auge, o quinto empregador nacional, com mais de 11 mil funcionários) entrou em insolvência, com vista à recuperação. E Armando enfrentou um julgamento que começou por condená-lo a 11 anos de prisão, reduzidos pela Relação para seis anos e oito meses. A filha, Andreia, foi na enxurrada da investigação, mas teve mais sorte: pena suspensa.
À margem de todo este megaprocesso ficou o filho. Mas, na semana passada, também ele se tornou notícia, e por conta própria. Ao fim da manhã de 26 de dezembro, terça-feira, Luís Cardoso, 46 anos, saiu de casa, em Santarém, com uma pistola de calibre .38 no bolso, com cinco balas na câmara. Em vez de se dirigir à Bobadela, às portas de Lisboa, para participar numa reunião da empresa de limpezas de que era delegado comercial, seguiu para a empresa de transportes Running & Flying, em Salvaterra de Magos – o local de trabalho da ex-mulher, Sandra, 45 anos. Entrou no escritório de arma na mão. Sandra escondeu-se debaixo da secretária, mas de nada lhe valeu. Luís matou-a com quatro tiros. Depois suicidou-se, usando a última bala. Luís e Sandra Cardoso deixaram órfãos uma filha de 21 anos e um filho de 18.
Esta é a última – e maior – desgraça a abater-se sobre a família Cardoso. Uma família que vive hoje entre os destroços de um império.
Benfeitor, mas…
Armando Cardoso, 64 anos, começou a erguer os pilares do seu domínio nacional na área das limpezas em 1988, quando fundou a Conforlimpa, em Almeirim. A empresa ribatejana foi crescendo paulatinamente, assinando contratos com todo o tipo de empresas, privadas e do Estado, incluindo hospitais, universidades, instalações da polícia e da GNR, e mesmo a Assembleia da República.
Em meados dos anos 90, o empresário fundou uma equipa de atletismo, aproveitando os dotes desportivos de alguns dos seus funcionários. A Conforlimpa rapidamente se transformaria numa potência do corta-mato e da meia-maratona: conquistou dez títulos nacionais e oito europeus de meia-maratona, além de seis campeonatos nacionais e um europeu de corta-mato.
Armando ia-se tornando também conhecido pelo altruísmo. Em 2005, por exemplo, ofereceu uma cadeira de rodas de 25 mil euros a Helena Arruda, uma mulher com Esclerose Lateral Amiotrófica (a doença que matou José Afonso e afeta Stephen Hawking). Em 2006, doou publicamente €10 mil à mãe do “menino azul”, uma criança com uma grave doença congénita, e prometeu ainda uma doação mensal de mil euros. Em 2009, comprometeu-se a ajudar o Projeto de Cegos e Deficientes de Almeirim com outra subvenção mensal. Em 2011, na sequência de uma notícia no Correio da Manhã sobre um menino de dois anos que nascera sem o antebraço e partira a mão biónica, voluntariou-se para pagar do seu bolso os €1 100 da reparação do membro artificial. “Se todos fizéssemos um bocadinho, com certeza que poderíamos suprir algumas dessas dificuldades que essa gente mais carenciada enfrenta”, justificou, em 2009.
Mas aqui e acolá surgiam as primeiras manchas na reputação do empresário. Entre 1996 e 1999, acabou condenado por abuso de confiança fiscal em três processos independentes. Num, pagou multa, e nos outros dois a sentença passou por penas de prisão, de 18 meses e de três anos e meio, ambas suspensas.
No desporto, vários atletas com ligações à equipa da Conforlimpa foram sendo apanhados nas redes do doping. Eduardo Mbengani, Hélder Ornelas, Luís Jesus… Sucediam-se os casos e as suspensões. No meio, falava-se de uma pressão contínua de Armando Cardoso para que os resultados aparecessem, incluindo ameaças de despedimento, cortes no ordenado de atletas que desistiam durante as corridas e até o castigo a um desportista, recolocando-o na sua função original: limpar janelas.
Mesmo o seu lado benfeitor seria manchado – Armando mandou cessar os pagamentos mensais ao “menino azul”, alegando que não lhe eram enviadas faturas dos medicamentos.
Independentemente destes casos, alheios à sua atividade principal, a empresa parecia prosperar. Em 2004, a Conforlimpa inaugurou a sua nova sede, em Castanheira do Ribatejo. Um investimento de €5 milhões e que demonstrava uma preocupação social rara, na altura, em Portugal: o edifício incluía ginásio e infantário. “Cabe-nos a nós, empresários, poder dar melhores condições de trabalho aos funcionários”, disse então Armando Cardoso ao jornal regional O Mirante.
O estado de graça ainda duraria mais uns anos. Não muitos.
“Eu desconhecia”
Em maio de 2011, a imprensa divulga as primeiras notícias de salários em atraso na Conforlimpa. O fundador atribui as falhas aos sucessivos atrasos de pagamento por parte do Estado, que representava 80% da faturação do grupo, e suspende temporariamente a atividade em 22 organismos. No total, dizia, o Estado devia à empresa 3,6 milhões de euros.
Dez meses mais tarde, em março de 2012, a derrocada confirmava-se. O sindicato do setor garantia que muitos funcionários tinham dois salários em atraso e que alguns já estavam mesmo a passar fome. Segue-se a dissolução da equipa de atletismo, em julho, por falta de verbas. Finalmente, em outubro, dois agentes da Polícia Judiciária batem à porta de casa de Armando, em Santarém. Era o culminar da Operação Clean.
Acusado de associação criminosa e fraude fiscal no valor de €42,3 milhões, através de um complexo esquema de empresas fictícias que acabava com a Conforlimpa a contabilizar, entre 2004 e 2012, custos inexistentes para reaver IVA indevidamente, Armando Cardoso começou por ser detido preventivamente – a primeira vez que tal sucedia em Portugal, para crimes de fraude fiscal. Ao fim de três meses e meio, foi para casa com pulseira eletrónica, mas alegadas pressões a testemunhas do processo levaram o tribunal de Vila Franca de Xira a prendê-lo novamente.
Em maio de 2014, era conhecida a pesada sentença: 11 anos e dois meses de prisão. Os seus supostos parceiros no crime, o economista Germinal Rodrigo e o contabilista José Peixinho, foram sentenciados a sete anos. A filha de Armando, Andreia, hoje com 37 anos, levou uma pena suspensa. Os arguidos recorreram para a Relação, que decidiu, já este ano, manter apenas os crimes de fraude fiscal e uma pena de seis anos e oito meses de prisão efetiva.
O processo continua em complicados recursos. Mas a base de defesa de Armando Cardoso é simples: ele próprio não sabia o que se passava na empresa. Em entrevista ao jornal local Almeirinense, em agosto de 2013, quando se encontrava em prisão domiciliária, o empresário culpa o contabilista. “Já foi assumido que há fraude fiscal. Há faturas falsas. Mas eu desconhecia totalmente. Como é possível o contabilista da empresa que trabalha comigo há mais de 30 anos, homem da minha confiança, ter feito isto? Consta do processo que nada se faz no grupo sem eu mandar. Mas não estou a ver o senhor Belmiro da Sonae a andar na contabilidade a perguntar se pagaram o IVA.”
A Conforlimpa, entretanto, vai tentando reerguer-se, no âmbito de um plano de recuperação liderado pelos próprios trabalhadores, e que recebeu a aprovação de 96% dos credores. Mas Armando Cardoso já não tem “qualquer vínculo legal com a empresa” – como o primeiro comunicado do grupo renascido fez questão de salientar. Até porque a máxima de que não há má publicidade não é completamente verdadeira.
(Artigo publicado na VISÃO 1296 de 4 de janeiro)