No município mais pequeno do país cabe o mundo lá dentro. Terra industrial, São João da Madeira não tem mais de oito quilómetros quadrados, mas tem espaço suficiente para acolher três líderes mundiais, que por acaso até estão na mesma família. A FEPSA (Feltros Portugueses, S. A.), nascida em 1969 a partir da união de seis industriais do sector da chapelaria, produz anualmente feltros de pele de coelho (o material mais nobre da chapelaria) suficientes para dar forma a 900 mil chapéus, metade da produção mundial – com a americana HatCo e a checa Tonak a ocuparem os outros degraus do pódio global da chapelaria. Praticamente toda a produção segue para o mercado internacional, apenas 2% ficam em Portugal.
O mercado europeu é o maior cliente (40%), numa região onde se destacam países como a França, Itália e Inglaterra, onde o chapéu continua na moda e mantém-se como sinal de diferenciação. Em geografias mais longínquas destacam-se o Japão, a Austrália e os Estados Unidos. Do outro lado do Atlântico, aliás, os chapéus feitos com o feltro da FEPSA já ganharam protagonismo no grande ecrã, cobrindo a cabeça de Harrison Ford enquanto o famoso Indiana Jones, ou a de Johnny Depp, como o ladrão de bancos John Dillinger, no filme Inimigos Públicos. George W. Bush e Vladimir Putin também são clientes.
A empresa fabrica feltro de alta qualidade, cortado à medida para cada um dos seus clientes: apesar de não fazer chapéus acabados, o produto sai já com a forma (o chamado “corpo” do chapéu), mas o acabamento cabe às marcas. A principal matéria-prima é, sem dúvida, o pelo de coelho, mas a FEPSA também utiliza a lã de ovelha e o pelo de castor. Os chapéus étnicos, os religiosos e os de uniforme são os segmentos mais importantes para o negócio da FEPSA, se bem que, depois dos anos mais difíceis da crise global, o segmento da moda esteja novamente mais dinâmico. O volume de negócios ultrapassa 15 milhões de euros e nos últimos anos tem crescido 10% ao ano, em média.
“O segredo da FEPSA é simplesmente a sua alma. É o grande foco no cliente, a grande proximidade com as empresas. Os nossos clientes sentem que a FEPSA é uma extensão deles próprios. Apesar das grandes distâncias, com os meios de comunicação e de transporte de hoje é fácil estarmos presentes”, conta Margarida Figueiredo, à frente da empresa, que emprega cerca de 300 trabalhadores, neta e filha de empresários que há quase meio século decidiu quebrar o ciclo de agonia de um sector pulverizado de muitos mestres chapeleiros e criar um conglomerado capaz de exportar e de assumir uma posição global. Aposta na inovação, grandes investimentos no desenvolvimento do produto e coesão de equipa explicam o resto do sucesso, refere a presidente da FEPSA: “Isto não é de agora. As gerações anteriores sempre canalizaram o investimento para a melhoria contínua e para a qualidade. Isso marca o ADN da empresa. Nós fazemos o mesmo.”
As “irmãs”
Mas a FEPSA não é caso isolado. Tem uma empresa “irmã”, a Cortadoria Nacional de Pêlo, nascida em 1943 como agrupamento de pequenos produtores por decreto de Salazar. É Nuno Figueiredo, irmão de Margarida, que preside a esta companhia, que recebe o pelo dos animais (que chegam como desperdício da indústria alimentar, como o caso dos coelhos, ou da caça legal para fins de controlo da espécie, como é o caso do castor, que chega do Canadá), o lava e o prepara para ser feltrado: 136 toneladas anuais, o que faz dela a principal empresa mundial neste sector (com uma quota de 40%).
Mais de 60% da matéria-prima preparada pela Cortadoria tem como destino a FEPSA, praticamente ali ao lado, mas o restante segue para os Estados Unidos, Colômbia, Bolívia, Austrália e vários países europeus. Com uma faturação na ordem de 8,5 milhões de euros, dá emprego a perto de 60 pessoas.
São João da Madeira, casa de indústrias tradicionais, como a chapelaria e o calçado, não esquece, todavia, as novas tecnologias. A Flymaster Avionics, empresa que controla cerca de 50% do mercado mundial de aparelhos de navegação para aviação ligeira de lazer (como parapente, asa-delta, planadores ou aviação ultraligeira), foi criada em 2007 por um grupo de quatro amigos unidos pela prática do parapente (alguns integravam mesmo a equipa nacional da modalidade). Um deles, Ricardo Figueiredo, irmão de Margarida e de Nuno, atual presidente da Câmara de São João da Madeira e que, antes disso, presidiu à FEPSA. Com um investimento inicial de 20 mil euros, o grupo conseguiu pôr a voar um negócio que em apenas um ano ultrapassou a principal concorrente mundial, uma empresa que controlava 80% do mercado, e passou a exportar para uma centena de países (com destaque para França, Itália, Suíça, Alemanha, Brasil e, mais recentemente, Estados Unidos).
Atualmente, a Flymaster está a expandir fronteiras e, depois de garantir a liderança no segmento do voo livre, está a apostar em novos desportos radicais (kitesurf, windsurf, triatlo, BTT, etc.), fornecendo aparelhos de localização com centímetros de precisão e que reportam a situação dos desportistas em tempo real e através de satélite.
Esta tecnologia “Tracker” pode, todavia, ser exportada para novos campos, que não apenas o do desporto. Francisco Nunes, fundador e administrador da Flymaster, conta que “a empresa está a desenvolver esta tecnologia de precisão, o Tracker, com voz. Este produto já está a ser utilizado, por exemplo, com doentes de Alzheimer”. Ao expandir-se para novos mercados, a empresa espera crescer nos próximos anos para lá do negócio do desporto, que será sempre “um nicho”: hoje, “vendemos entre cinco mil a seis mil equipamentos por ano”, contabiliza o responsável. Em 2016 faturou 989 mil euros e emprega 11 trabalhadores.
Este artigo é parte integrante da Exame de Junho de 2017