Tinha 10 anos quando construiu a primeira engenhoca. E não o fez por menos. Pegou no aspirador da mãe e dele fez um drone para transportar a sua irmã mais nova à paragem do autocarro da escola. Felizmente, como diz, a autonomia do aparelho estava limitada pelo comprimento do cabo elétrico, pelo que a invenção nunca saiu do recato do lar, no Estado norte-americano de Ohio.
Esta foi a primeira das demandas tecnológicas de David Roberts, que, antes de ser especialista em inovação disruptiva e tecnologia exponencial, foi um militar norte-americano condecorado e, depois disso, agente especial na luta contra o terrorismo: aos 23 anos, foi elogiado publicamente pelo então diretor do FBI pelo seu papel na condenação de seis terroristas internacionais e traficantes de armas, ao mesmo tempo que ajudou a desenvolver sistemas de inteligência militar avançados, integrando satélites, aviões não tripulados (drones) e outros equipamentos e serviços.
Por essa altura percebeu o que queria fazer da sua vida. “Se soubesse, em miúdo, que ser inventor podia ser uma profissão, certamente teria escolhido logo este caminho”, conta à EXAME, em Madrid, onde esteve em janeiro para participar na entrega dos Prémios everis, que anualmente distinguem projetos empreendedores e com forte potencial empresarial em três áreas: economia digital, biotecnologia e saúde e tecnologias industriais e energéticas – na última edição dos prémios da Fundação everis o projeto ganhador tem selo português (ver caixa “Biotecnologia made in Portugal vencedora”).
David Roberts, nascido no Reino Unido e adotado pelos Estados Unidos, é atualmente um dos maiores entendidos mundiais em tecnologia e no impacto social das novas tecnologias. Depois da carreira militar, acabaria por seguir o seu sonho: ingressou no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e graduou-se em Ciência e Engenharia Computacional, especializado em Inteligência Artificial e Engenharia Bioinformática, tendo depois feito o seu MBA (master in business administration) na Harvard Business School.
Desde então tornou-se num empreendedor em série, tendo sido o impulsionador de dezenas de projetos, que já receberam mais de 100 milhões de dólares de investimento por parte de empreendedores como o indiano Vinod Khosla e de empresas como a Cisco, Oracle, Accenture, Kleiner Perkins. É o presidente da administração da HaloDrop, uma inovadora empresa prestadora de serviços com drones (ao serviço de cenários de crise e de governos), líder da 1QBit (primeira empresa do mundo dedicada à produção de software para computadores quânticos) e assessor da Made-in-Space, companhia responsável pela produção do primeiro objeto no espaço a partir de uma impressora 3D numa estação espacial da NASA.
Simultaneamente, é um dos principais docentes (já foi vice-presidente e diretor) da Singularity University, corporação sem fins lucrativos, localizada em Silicon Valley (Califórnia), que é simultaneamente universidade, think-thank e incubadora de empresas, e que tem como objetivo “educar, inspirar e dar poder aos líderes para aplicarem tecnologias exponenciais na resolução dos grandes desafios da humanidade” – em áreas como a educação, energia, ambiente, alimentação ou pobreza. Por esta instituição, criada pela NASA e pelo Google, passaram, desde 2008, quase nove mil estudantes (de jovens a líderes empresariais) e daí nasceram mais de uma centena de projetos e iniciativas que “já impactaram positivamente no mundo”.
É da vontade de resolver problemas, através da vontade dos líderes mundiais e com a ajuda da tecnologia, que trata esta conversa.
É apresentado como especializado em tecnologia exponencial. Afinal, o que é que isso significa?
As pessoas costumam pensar que a tecnologia em si é que é exponencial, mas isso não é verdade. O custo da sua performance é que é exponencial. Tomemos como exemplo a energia, que claramente não é suficiente para toda a população mundial. Produzir essa energia da forma mais convencional que conhecemos implica custos incomportáveis. Nesse sentido, as células solares ou fotovoltaicas são exponenciais: mesmo que estas células não evoluam nem fiquem melhores nos próximos 100 anos, o seu custo de performance – aquilo que conseguimos obter por um determinado preço – continua a multiplicar-se. Em 2023, o custo de performance destas células será 100 vezes superior ao atual, ou seja, uma célula será 100 vezes mais barata do que hoje, sem que seja melhorada. Em 2010, a energia solar tornou-se mais barata do que a energia nuclear. À medida que esta tecnologia for mais exponencial, chegará a mais pessoas: basta colocar um painel no telhado e há luz e água quente. Daqui a 15 anos, o número de pessoas com acesso a energia será muito, muito maior.
A tecnologia tem então o poder de resolver problemas como a pobreza mundial?
E outros. E pode resolvê-los nos próximos 20 anos, ou ainda mais cedo. Problemas como a fome mundial, os problemas ambientais, a qualidade da água. Mais de metade das hospitalizações no mundo devem-se à ingestão de água não potável e todos os anos 3,5 milhões de pessoas morrem devido a doenças que resultam deste consumo. E, no entanto, este é um problema que já podia estar resolvido – basta olhar para a invenção de Dean Kamen [empreendedor norte-americano que, entre outras coisas, inventou os segway], o SlingShot, um equipamento mais pequeno do que uma máquina de lavar roupa e que não é mais do que um sistema de purificação de água: ferve e evapora a água proveniente de qualquer fonte, como rios, oceanos ou até esgotos, e através da condensação do vapor permite a recolha de água purificada. Por isso nós só temos de decidir se queremos ou não produzir um número suficiente destas máquinas para que mais ninguém tenha de morrer. Há 10 anos, essa solução não existia, hoje existe. Há é um problema de vontade.
E a erradicação da pobreza pode ser assim tão rápida?
Sim. Hoje há muita gente que ainda não tem dinheiro para comprar o seu próprio smartphone. Mas porque esta tecnologia é exponencial e o seu custo de performance está sempre a multiplicar-se, daqui a pouco tempo muitas mais pessoas irão conseguir ter-lhe acesso. Ao mesmo tempo, empresas como a Google e o Facebook lançaram programas que têm como objetivo fazer chegar a Internet a sítios recônditos e menos desenvolvidos, sendo expectável que nos próximos 10 anos outros 3,5 mil milhões de pessoas passem a ter acesso à Internet (são atualmente 3,3 mil milhões de utilizadores). Se adicionarmos a democratização dos smartphones e da Internet a outras inovações, como a Bitcoin, que nos permite ter dinheiro mesmo que não tenhamos crédito, temos um mundo diferente. A relação entre prosperidade e o acesso à Internet é muito óbvia: uma pessoa que consiga aceder à Internet a partir de um pequeno equipamento cada vez mais sofisticado terá acesso a cuidados de saúde, saberá onde encontrar água potável, poderá educar-se. Algo que era difícil e inacessível torna-se descomplicado e de fácil acesso.
Mas estamos também a falar de informação, e não apenas de tecnologia…
De inteligência artificial. Pensemos no Watson, o supercomputador da IBM (que combina inteligência artificial e software analítico muito sofisticado): conseguiu bater o melhor jogador de sempre do Jeopardy! [programa norte-americano de perguntas e respostas]. Agora, deixaram o Watson ler e aprender toda a informação que existe sobre o estado inicial do cancro do pulmão. Num estudo levado a cabo neste projeto, concluiu-se que enquanto um grupo de médicos conseguiu fazer o diagnóstico e traçar terapêuticas para 50% dos casos da doença, o Watson fez isso para 90% dos casos. Prefere consultar um médico ou o Watson? Estima-se que existam 30 mil doenças. Se esta máquina tiver capacidade para absorver toda a informação que existe sobre elas, o potencial é inesgotável. É uma coisa fascinante, porque a humanidade ainda acredita que precisaremos sempre de médicos. A utilização de máquinas no diagnóstico de doenças e na recomendação de tratamentos vai ser uma disrupção nos próximos 10 anos.
Parece até algo perigoso…
Mas a Siri, o assistente pessoal inteligente do iPhone, já faz isso. Já nos dá conselhos sobre saúde. Peter H. Diamandis, um dos fundadores da Singularity University, disse que um guerreiro massai, no Quénia, será melhor médico do que um clínico do primeiro mundo. Simplesmente porque irá ter telemóvel.
E o futuro passará pela realidade virtual?
Sem dúvida. Mas é um mundo tão grande que ainda nos é incompreensível. Porque, na verdade, a realidade virtual é a disrupção da realidade. A qualidade, a resolução, o som, a perceção sensorial da realidade virtual são cada vez melhores e melhores. A nossa realidade não: a resolução do nosso olho é a mesma há 50 mil anos. O que quer dizer que a realidade virtual irá rapidamente ultrapassar a realidade. Quando isso acontecer, vai oferecer-nos tanta coisa que será completamente disruptiva para nós. Porque a realidade virtual irá permitir-nos, por exemplo, transformar neste preciso momento esta sala e torná-la numa divisão com gravidade zero.
A que prazo?
Isso será a muito longo prazo. Mas o futuro da humanidade está na realidade virtual. Penso cada vez mais que nós não somos seres de objetos físicos; e é isso que há muito tempo as religiões nos tentam ensinar. Se calhar, já estou a entrar demasiado num tema que parece obscuro, mas acredito que se existe vida no universo e nós não a vemos é porque, quando atingimos um determinado intelecto, entramos numa outra realidade e tornamo-nos indetetáveis. A evolução, na verdade, mostra isso: os organismos unicelulares não tinham ideia de que os organismos multicelulares existiam. A vida marinha evoluiu para a vida terrestre. Há uma história de movimento de um domínio para o outro. Mas isto é um pouco doido.
Costuma ter estas conversas com os seus alunos na Singularity University?
Eles gostam muito destas conversas…
Qual o propósito dos alunos quando entram numa instituição como essa?
São pessoas que querem fazer coisas diferentes. Querem ser a diferença, na verdade. E acreditam que podem fazer isso recorrendo à tecnologia. Não têm necessariamente como o fazer, mas isso nós ensinamos. Na maioria das vezes, são pessoas brilhantes em alguma coisa.
Mas têm um background idêntico? A maioria não são engenheiros?
É verdade que há muitos engenheiros e cientistas, mas também temos pessoas muito diferentes. Não têm de ter tido um percurso académico extraordinário. Num dos programas, admitimos um hacker – não tinha um currículo invejável, mas era brilhante de uma certa maneira.
Quais os temas e disciplinas na Singularity University, onde leciona?
O principal programa, o Global Solutions Program, tem a duração de 10 semanas. As primeiras semanas são muito académicas e focam-se sobretudo na deteção e no estudo dos problemas globais. Muitos dos alunos, quando entram, dizem que querem trabalhar num dos problemas, mas acabam atraídos por outro tópico. Falamos muito sobre tipos de tecnologia, vemos o que foi experimentado e o que ainda não foi testado. Essencialmente, falamos de cinco tipos de tecnologia.
Quais?
A primeira tem a ver com os computadores e as redes. Depois, falamos sobre robótica e inteligência artificial, verdadeiras tecnologias exponenciais. À terceira chamamos biologia digital: a partir do momento em que se descobriu como ler o ADN, a biologia tornou-se numa ciência da informação e é totalmente exponencial, pois no futuro escrever o ADN vai ser praticamente de graça. Depois, temos a nanotecnologia e, finalmente, a impressão 3D.
Que projetos já saíram da universidade?
Foram vários, mas posso falar do Made-in-Space, do qual sou assessor. Três alunos, muito interessados no tema do espaço, quando perceberam o potencial da impressão 3D, decidiram criar uma impressora que funcionasse em gravidade zero. Colocaram-na numa estação espacial e, quando o astronauta precisou de uma ferramenta que não tinha, a impressora construiu-a. Aqueles três tipos são responsáveis pela primeira peça que a humanidade fabricou no espaço e ainda não tiveram suficiente crédito por isso.
Precisamos de educar os mais novos para as tecnologias e sensibilizá-los para os problemas e desigualdades do mundo. Estamos a começar a fazê-lo?
Estamos a ensinar matérias como já as ensinávamos há centenas de anos. O modelo de educação tem de mudar. Este é, aliás, um dos problemas globais que estudamos. Ainda estamos no modelo em que uma pessoa, perante uma turma de 80 pessoas, debita matéria de forma muito rápida para 35 delas, muito lenta para outras 35 e apenas 10 a estão a acompanhar. Avalia-se um tema e passa-se para o seguinte. É algo que não faz sentido, mas que nunca colocámos em causa porque sempre fizemos assim. Existem estudos que mostram que quando um grupo de alunos é acompanhado, cada um com o seu mentor, 98% obtêm uma nota excelente. A inteligência artificial irá permitir ensinar pessoas através de um modelo de tutorização e iremos aprender de forma muito rápida e intuitiva, a grande velocidade.
Será no curto prazo?
Não, e isso é um problema, porque os robôs e as máquinas vão continuar a disruptir postos de trabalho. Vamos passar por um período crítico, de grande desemprego. Mas há 150 anos éramos todos agricultores e achávamos que a máquina a vapor nos iria roubar o trabalho. Conseguimos evoluir e hoje somos web developers. No futuro, teremos de ser outra coisa.
Este artigo é parte integrante da edição de abril de 2016 da Revista EXAME