Vale a pena insistir no mercado angolano, depois de a euforia dar lugar à deceção? “Sim, investindo de modo cirúrgico e cauteloso e reduzindo a exposição, com a noção de que quem perdeu a oportunidade de entrar no momento certo não irá agora recuperar”, responde António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP). O empresário adverte para a ameaça do risco político, com o agravamento das tensões sociais, e regista o efeito virtuoso de a atual tempestade conduzir a uma limpeza que tornará no futuro o ambiente mais favorável aos negócios.
O governo ou o sistema bancário português “nada podem fazer, porque a raiz do problema reside no modelo económico do próprio país”, reconhece António Saraiva.
“Quem está numa lógica de longo prazo tem de estar preparado para dois ou três anos adversos e desconfortáveis e saber reconhecer que no período de 2010/2014 beneficiou de uma economia em crescimento acelerado”, refere Pedro Ferraz da Costa, presidente da farmacêutica Iberfar.
O industrial é passageiro regular para Luanda e tem uma dupla exposição ao mercado: como exportador com centro logístico em Luanda e como sócio de uma distribuidora que explora uma rede de 10 farmácias, faturando 23 milhões de euros. O investimento de 15 milhões de euros foi suportado por capitais próprios, tendo em conta o risco associado. Se a operação correr mal, “vai doer mesmo”. Nesta fase, a palavra de ordem “é aguentar” e fazer “uma navegação com uma dose de improviso”, acentua Ferraz da Costa.
Para António Saraiva, a economia angolana configura o dilema da garrafa meio cheia ou meio vazia, cabendo a cada empresa fazer a gestão adequada das expectativas. Os otimistas acreditam que a garrafa angolana voltará a encher.
Há mercado, não há divisas
O diagnóstico é conhecido. O preço do petróleo entrou em queda livre e em dois anos perdeu dois terços do valor. Não há divisas. Não foi preciso meter explicador para que os exportadores portugueses percebessem o significado da expressão. Todos eles convivem com a angústia de quem não sabe quando recebe os fornecimentos. A bancaangolana suprimiu as cartas de crédito e são raros os grupos angolanos (a cadeia Kero, do conglomerado Zahara, é um deles) com acesso a linhas de crédito em Portugal ou seguros da Cosec.
As empresas com sucursais ou investimentos diretos podem optar por manter o nível de atividade, financiando as operações a partir de Portugal. E quem tem quadros expatriados sofre com a falta de divisas para transferir o valor dos salários.
Há cada vez maior influência das empresas chinesas nos negócios, reduzindo a margem de manobra das empresas portuguesas. Mas a montagem da primeira emissão de eurobonds do Estado angolano, em novembro passado (1,5 mil milhões de dólares a 10 anos, com uma taxa de 9,5%), tem uma impressão digital portuguesa, um sinal de que a química entre os dois países se mantém. E o consumidor angolano sempre revelou carinho pelas marcas portuguesas.
Aníbal Campos, presidente da Silampos e da Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal (AIMMAP), sempre olhou para Angola como um mercado de oportunidade e ocasião. As encomendas chegavam à última hora, mas o esforço era recompensado com margens atrativas. O empresário tencionava evoluir do modelo de agente para uma sucursal local, de modo a responder com eficiência e agilidade às solicitações dos clientes angolanos. Mas no atual ambiente o plano voltou para o congelador. Nem ele sabe até quando.
“Todos os industriais andam aflitos e queixam-se do mesmo: o dinheiro fica retido em Angola, não chegando às empresas”, diz Aníbal Campos. A Silampos é uma das sacrificadas. O desconsolo é grande, porque “há mercado e os clientes pagam”. Mas nesta fase “tornou-se num mercado terrível, um pesadelo que todos querem evitar”.
Ferraz da Costa reconhece que o cenário tende a agravar-se, sem que se vislumbre a prometida diversificação do tecido económico que reduza a dependência do petróleo. Financiar “as importações é um problema”. Mas a sua intenção “é sistematizar e expandir a rede angolana”, tendo em conta que a indústria portuguesa tem ganho quota no negócio do medicamento. Em 2015, a exportação do sector caiu 20%, um desempenho melhor que a média da economia portuguesa (33%), e subiu ao segundo lugar do ranking (68 milhões).
A maior desilusão de Ferraz da Costa reside na falta de um acordo de Angola com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que na expectativa do industrial surgiria até ao verão de 2015. O acordo injetaria confiança e credibilidade no país e ajudaria a clarificar o mercado cambial.
Com uma rede de sete restaurantes, a Ibersol é outro grupo que se entusiasmou com Angola e investiu perto de 20 milhões de euros nos últimos anos. O grupo descarta comentários sobre a evolução do negócio e o administrador Pinto de Sousa limita-se a verificar que “é da natureza das economias viverem ciclos negativos e positivos”, cabendo às empresas adaptar-se a cada realidade. Uma adaptação possível é maximizar o recurso à produção local. Por exemplo, a Ibersol recorre a marcas de cerveja e refrigerantes angolanos.
É através de centrais de compras que a grande maioria dos pequenos exportadores vendem para Angola. Nalguns casos, as centrais estão ligadas a redes de distribuição, como o Jumbo ou a Teixeira Duar te. Mas há operadores independentes que fazem de ligação entre o produtor e o cliente angolano e montam um contentor diversificado, que pode incluir conservas, vinho ou massas. O risco agravou-se e as centrais “tornaram-se mais cautelosas na constituição de stocks e no envio da mercadoria”, conta um operador. No seu caso, “os fornecimentos só seguem depois de os pagamentos serem efetuados”.
Resistir ou desistir
Primeiro resiste-se, depois desiste-se. O caso prático da Fogões Meireles serve de roteiro comum ao universo de oito mil pequenas e médias empresas (PME) que lidam com Angola. Num primeiro momento, tolerou os atrasos nas transferências, com a casa mãe a aguentar a sucursal angolana.
Durante 2015 registou três pequenas transferências (a última em setembro), todas elas referentes a vendas do ano anterior. Os atrasos foram-se agravando e a meio do ano passado rendeu-se. Deixou de aceitar encomendas. Nalguns casos prefere até indemnizar clientes que já tinham sinalizado a compra de equipamentos hoteleiros, para não aumentar o volume de faturas por receber. No circuito bancário, a Meireles tem cativos o equivalente a 300 mil euros, que sofrem com as sucessivas desvalorizações cambiais (40% nos últimos 12 meses). “A situação tornou-se insustentável, optámos por suspender os negócios”, explica o administrador Bernardino Meireles. Suspender é desistir? “Não, mantemos uma presença ativa, mas em modo residual, para manter vivo o nome da marca”, responde.
Esta visão da Meireles é subscrita por outra PME exportadora, que acrescenta ao relato um episódio. No final de 2015, enviou dois técnicos para uma assistência a um cliente e preferiu recorrer ao mercado paralelo para repatriar 15 mil dólares do serviço. Pagou perto de 300 kwanzas por cada dólar, o dobro do câmbio oficial. Mas o que intrigou o empresário foi o aspeto impecável das notas. Só faltava “a cinta que os bancos costumam usar” nos maços, conta. Dólares nos bancos é coisa que não há para venda.
Um diretor bancário que lida com exportadoras conta que “as empresas reconhecem que em 2016 o mercado angolano é para esquecer”. As mais expostas revelam “maior nervosismo”, outras adotam uma “atitude de maior comprometimento”, fazendo “uma cuidada gestão da tesouraria” das sucursais em Luanda. A banca não aceita fazer adiantamentos com base em colaterais na moeda angolana.
Uma outra face deste desespero é a dos industriais portugueses instalados no país. Um deles, com uma base fabril nos arredores de Luanda (20 trabalhadores), desabafa: “Sem encomendas nem matéria-prima, a produção está a 10% do habitual. Vou aguentar mais uns meses e se as coisas não melhorarem sou forçado a suspender a atividade.”
Nem os fornecedores da rede de hipermercados Candando, do universo de Isabel dos Santos, escapam. Há exportadores que aguardam com olímpica paciência que as transferências cheguem às suas contas em Portugal.
Portugal perdeu para a China o estatuto de primeiro fornecedor e Angola perdeu para os Estados Unidos o título de melhor mercado português fora da Europa. Em 2015, Angola desceu dois lugares (de 4.º para 6.º) na lista dos principais mercados.
COMÉRCIO
2,1
mil milhões de euros é o valor estimado para as exportações de bens portugueses em 2015, uma redução de 33% face a 2014. É o valor mais baixo desde 2010 e uma queda mais acentuada desde o fim da guerra civil em Angola
4,3%
é o peso de Angola nas exportações portuguesas. Em 2014, fora de 6,6%. No limite, se as exportações desaparecessem, o impacto na economia portuguesa seria apenas de 1,7%
1,1
mil milhões de euros é o saldo da balança comercial em 2015. O valor compara com 1,6 mil milhões de 2014. As importações de Angola registaram também uma forte queda (29%) por causa da queda do preço do petróleo
2,1
mil milhões de euros é o investimento acumulado em Angola. No biénio de 2014/2015, o stock de investimento registou uma redução severa (40%), traduzindo um regresso de capitais a Portugal. O pico registou-se no final de 2012 (4,1 mil milhões de euros)
1,3
mil milhões foi o valor das exportações de serviços. A redução é menos brusca (-16%) do que nos bens e há rubricas, como as viagens, que registaram um crescimento
Construção e cerveja unidos na desgraça
A construção sofre a dobrar por causa dos atrasos de pagamento do Estado. As exportações de cerveja registaram em 2015 uma redução de 60%.
No espaço de poucas semanas, Unicer, Somague e Soares da Costa anunciaram despedimentos em massa (900 no total). Poderia ser uma infeliz coincidência, mas neste caso há um fator que explica a bizarra mistura de cerveja com construtoras o efeito Angola. Dois terços da produção da Soares da Costa está no mercado angolano, e a Somague habituou-se a produzir por ano mais de 250 milhões de euros e lucrou 32 milhões em 2014. No caso da Unicer, a empresa fazia em Angola 120 milhões de euros, um quarto da sua receita total.
Teixeira Duarte e Mota-Engil são as cotadas do PSI-20 com maior exposição ao mercado angolano. Não terá sido por acaso que foram as que registaram desvalorizações mais acentuadas em 2015: 56% e 28%, respetivamente. A Teixeira Duarte atenuou a redução de negócio na construção com a subida noutras áreas, como a distribuição.
Já este mês, a Mota-Engil provocou um enorme calafrio nos investidores ao cair numa só sessão 20%, forçando o supervisor a suspender a negociação. Os analistas apontam o dedo a Angola e às dívidas que o conglomerado tem a receber. O valor situa-se num intervalo entre 500 e 600 milhões de euros, representando 120% da produção anual no país. A exposição da Mota-Engil ao continente africano forçou a uma pressão vendedora e uma espiral depreciativa que este mês destruiu 40% do valor do conglomerado em bolsa.
A Teixeira Duarte é o conglomerado português com maior exposição a Angola. Os negócios incluem, além da construção e imobiliário, a distribuição, o retalho automóvel e a hotelaria. Em 2015, o grupo diversificou para o medicamento e explora já duas farmácias. Na hotelaria e distribuição, as receitas registaram um crescimento. Esta diversificação protegeu-a da severa redução nas frentes da construção e automóvel. Mas, com o agudizar da crise, o segundo semestre de 2015 foi muito duro, A quebra de margem e efeito cambial terão retirado perto de 100 milhões de euros à faturação.
Atropelada pela recessão doméstica, a indústria da construção encontrou em Angola “uma zona de conforto” para se abrigar das intempéries. Meteu todas as fichas no mercado e agora sofre a dobrar. Sofre com o calvário dos pagamentos do Estado e com a escassez de divisas, que impede as transferências de dinheiro. Um terço na produção no exterior está em Angola e Portugal permanece como país europeu com maior quota na construção angolana.
Salários em atraso
Os principais conglomerados invocam “a elevada volatilidade” do mercado para evitar comentários, mas Joaquim Fitas, presidente da Soares da Costa, fala claro. A esmagadora maioria das construtoras que operam no mercado “têm salários em atraso”. Num ano, a Soares da Costa cortou 30% dos gastos e, no caso de Angola, “sem afetar a capacidade de produção”.
O gestor acredita que o atual sobressalto “traduz uma realidade conjuntural e passageira” e verifica que o “mercado amadureceu, está mais exigente”. Não há mais lugar para margens excessivas, as empresas “têm de racionalizar a estrutura e tornar-se mais eficientes”.
Joaquim Fitas adverte para o novo paradigma que irá marcar o sector e para o qual os operadores terão de estar preparados. A “diversificação empresarial é um cenário real, levando à construção de mais fábricas e menos obras públicas.”
Com o motor angolano gripado, a aterragem teria de ser violenta. Em 2014, as construtoras faturaram 1,9 mil milhões de euros (-4%), mas é na carteira de obras que a redução é mais acentuada (-20%).
“Não se regista uma redução brusca. Temos, sim, de adaptar o ritmo das obras aos pagamentos e liquidez”, responde o presidente da Lena, Joaquim Paulo Conceição.
A Conduril tem uma visão mais pessimista. Angola representava 65% da produção, mas em 2105 o peso reduziu-se para menos de metade. “Com a falta de investimento e financiamento, tivemos de reajustar os recursos à nova dimensão, transferindo-os para outros mercados africanos”, reconhece a presidente, Benedita Martins. A gestora nota que “o défice de novas obras torna muito difícil a reposição da carteira”. A solução é ajustar a operação e procurar novos mercados, como, no caso da Conduril, sucedeu com o Gabão.
A redução de atividade da indústria portuguesa tem ainda um efeito perverso na exportação de materiais e serviços da fileira da construção. Em 2015, este tipo de exportação caiu 40%, o equivalente a 45 milhões de euros.
Receber em títulos
Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da associação empresarial AECOPS Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços, reconhece que os efeitos da situação adversa “serão muito relevantes na atividade futura”. Mas as construtoras “têm uma lógica de longo prazo” e não desistem à primeira contrariedade. E vale a pena “insistir no mercado angolano, sabendo adequar a exposição à nova realidade”.
O empresário quer que a indústria portuguesa “preserve a quota de mercado que conquistou” e que concorrentes de outros países europeus procuram retirar.
No seu guia para um final feliz, Ricardo Pedroso Gomes aconselha “a reduzir a comunidade de expatriados, apostando em colaboradores locais”, a trocar “os clientes públicos por privados na área da energia e mineração” e a alocar “os recursos excedentes a outras geografias”.
Há construtoras com reduzida exposição em Portugal, como a MCA, de Guimarães, que faturam em obra pública mais do que os gigantes do sector e sofrem em silêncio com a crise angolana. Um outro revés que algumas construtoras enfrentam reside na decisão do Estado de saldar pagamentos em atraso com títulos de dívida. António Saraiva (CIP) fala de “pressão psicológica”, por estar implícito que “recusar dívida soberana é um sinal de falta de confiança no futuro no país”. Um industrial do sector confirma. Quem tem uma “visão estratégica do mercado não pode dar sinais de fraqueza”, diz. A EXAME apurou que as construtoras que conseguem trocar no sistema bancário local os títulos por liquidez suportam logo descontos da ordem de 25%. Um excelente negócio para a banca local.
Cerveja é para esquecer
No caso da cerveja, trata-se de um desaire anunciado. Nos sectores em que há produção local, resta às marcas portuguesas ocuparem nichos de mercado. “A exportação de cerveja para Angola é para esquecer; a alternativa é a produção local”, refere uma fonte da indústria.
A Unicer é a mais castigada, com uma redução de 60% das exportações. Em 2015, a indústria passou de vendas de 140 milhões de euros para 60 milhões. Três quartos deste desvio cabem à Unicer.
A cervejeira confirma que, em volume, as vendas nos 50 mercados em que opera caíram 40% face aos 200 milhões de litros de 2014. A Unicer ajustou a operação comercial e o seu presidente, Rui Lopes Ferreira, está certo de que “as autoridades angolanas estão a tomar as medidas adequadas para colocar o país no rumo do crescimento”.
A cervejeira antecipara o movimento de industrialização de Angola e luta há 10 anos, sem sucesso, pela concretização de um projeto industrial de 130 milhões de euros. Aparentemente, não terá escolhido os parceiros certos. O projeto está vivo e os “atrasos recentes devem-se a ajustamentos na estrutura acionista”, refere Rui Lopes Ferreira.
A Central de Cervejas tem uma menor exposição e realiza em Angola 10% da sua faturação. Ainda assim, a quebra irá retirar-lhe uns 15 milhões de euros à receita de 2015. A empresa, através do seu acionista Heineken, conta com uma parceria com a Sodiba, do universo de Isabel dos Santos, para produzir Sagres para o mercado local. “Pelo que sabemos, as obras prosseguem e o calendário para iniciar a produção em 2016 mantém-se”, diz a Central.
Nos cimentos, a Secil conta com o parceiro certo (uma empresa estatal), e mesmo assim desespera pela construção de uma nova base fabril no Lobito, um projeto de 80 milhões de euros. A empresa confirma “a morosidade do projeto fabril”, mas reafirma o seu empenho em concretizá-lo, sem entrar em detalhes. A unidade atual conta apenas com a operação de moagem, transformando o clínquer em cimento.
Vinho resiste
O sector vinícola mantém intacta a confiança no país. O vinho é dos produtos que melhor resiste (-20% em 2015) e destronou a cerveja como campeão das exportações. Jorge Monteiro, presidente da ViniPortugal, diz que algumas empresas suspenderam os programas promocionais, mas não vê os exportadores a desertarem. De resto, a recomendação saída da assembleia geral da ViniPortugal foi de manter em 2016 o nível de investimento. “As marcas portuguesas chegam às prateleiras dos supermercados e saem logo”, verifica Jorge Monteiro.
O otimismo é partilhado por Eduardo Medeiro, administrador da Bacalhoa, do universo Joe Berardo. Há um ano, a empresa “entrou em alerta máximo” com o espírito de quem se prepara para o pior, espera o melhor e aceita o que vier. A meio do ano, o ambiente ficou mais desanuviado e o balanço final não desiludiu. O segredo “reside na força das marcas e no profissionalismo e credibilidade dos dois parceiros com que lidamos”, diz o gestor. A Bacalhoa opera com distribuidoras locais, uma das quais do universo Teixeira Duarte, que “ajudam a impul sionar o negócio e respeitam os prazos de pagamento”.
Os principais grupos, como a Sogrape ou a Enopor, operam com distribuidoras próprias Angola é o quinto mercado da Sogrape e o primeiro da Enopor, que em 2015 beneficiou dos stocks acumulados pela filial local e não se ressentiu das adversidades. Mas ninguém escapa ileso à desvalorização tão violenta do kwanza.
SECTORES
1,8
mil milhões de euros é a carteira atual das construtoras em Angola. Representa 32% do negócio no exterior. Mas o ritmo da produção irá reduzir-se para ajustar os trabalhos aos pagamentos
550
milhões de euros é o valor que a Mota-Engil tem a receber de Angola. Representa mais de 120% cento da produção anual do grupo
80
milhões de euros é o valor que a indústria cervejeira perdeu com a redução das exportações em 2015. É o sector mais fustigado e a Unicer a empresa mais penalizada. A fileira da construção vem a seguir, com perdas de 45 milhões de euros
75
milhões de euros exportou em 2015 a viticultura portuguesa. O vinho destronou a cerveja e tornou-se no produto que mais fatura em Angola
130
milhões de euros é o investimento que a Unicer tem previsto na fábrica de cerveja em que trabalha há 10 anos. A morosidade angolana afeta igualmente o projeto da cimenteira Secil, orçado em 80 milhões de euros
Dias de um novo regresso
Com o fim da bonança petrolífera, a nova geração de consultores portugueses está de malas feitas, mas a maioria dos emigrantes lusos quer ficar em Angola
Todos viam Angola como um paraíso, e angolanos e portugueses andavam doidinhos por prosperar a céu aberto. O dinheiro mandava em tudo. O dinheiro comprava tudo. Comprava vistos de entrada, comprava vistos de trabalho, comprava bilhetes de identidade e até cartões de residência.
Os portugueses, de repente, começaram a chegar em massa, numa proporção que, aos poucos, se aproximava da vaga de “retornados” que em 1974 foi obrigada a abandonar Angola.
“Estão a vir a pé!” era assim que os empregados de mesa de muitos restaurantes se referiam às enchentes geradas pela procura dos seus serviços por parte de uma nova geração de consultores portugueses contratados pelo Estado. “Aqui no Kimbo, para almoçarmos, ou chegamos muito cedo ou não há hipótese, pois praticamente foi tomado pelos cooperantes portugueses que trabalham na Ensa”, revelava um funcionário da Sometal.
No auge do boom petrolífero, tudo era fácil para os angolanos, que reluziam de júbilo com um sonho que os fazia crer que o seu país era o novo ‘Dubai de África’. Um sonho fácil de absorver num sonambulismo que os levou, a dada altura, a julgarem que Angola, como potência regional emergente, poderia disputar a liderança económica do continente com a África do Sul.
Tudo era fácil. Era fácil importar capatazes para tomar conta das fazendas de latifundiários angolanos de fato e gravata que odeiam o meio rural ou mandar vir a granel consultores saídos diretamente das universidades por via de processos nebulosos, que encobriam, em muitos casos, esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e enriquecimento fácil.
“Tínhamos e temos uma elite governante que não estava, tal como não está, comprometida minimamente com o país”, assinala Jeremias Chissonde, professor universitário no Huambo. Era, por isso, fácil angariar jornalistas desempregados em Portugal, que não tinham a mínima noção da realidade angolana, contratar, ao arrepio da lei, escritórios de advogados portugueses a quem altos responsáveis do Estado passaram a encomendar a elaboração de chorudos contratos utilizando escritórios de advogados de angolanos que tinham como único ativo o network do governo.
Era também fácil impor parcerias aos portugueses, que investiam dinheiro e know how em troca do tráfico de influências. Angola fervilhava de dinamismo económico e transpirava dinheiro fresco, em remessas industriais de dólares, por todos os poros. Com a maior das facilidades, apanhava-se um avião e ia-se a Portugal passar o fim de semana para ver um jogo de futebol.
Para atrás ficara um tempo em que, auferindo um ordenado de pouco mais de 2500 dólares, alguns cooperantes portugueses (e de outras nacionalidades) dispunham de um cartão especial de abastecimento que lhes permitia ter um estatuto diferenciado em relação aos funcionários públicos angolanos.
Cooperantes de luxo
“Nunca soubemos transformar a cooperação numa política genuína de migração e acabámos por ser os fomentadores da criação de cooperantes de luxo logo depois da independência”, recorda Ruy Mingas, antigo secretário de Estado da Educação Física e Desporto.
Mas, sendo outros os tempos, a culpa é dos portugueses? Não. Esta é a resposta unânime dada por uma nova geração de angolanos, que está a crescer com novas ideias, com olhos abertos para um mundo descomplexado. Uma geração que, tendo perfeita noção de que “não foram os portugueses que se portaram mal”, não poupa críticas à forma “descuidada e leviana” como as autoridades, “entontecidas com o que vem de fora”, escancaram, sem critérios, as portas do país aos estrangeiros.
“Os responsáveis por isso e por investimentos errados, má distribuição da coisa pública, venalidade nos negócios em que o Estado é parte interessada […] é gente com nomes e apelidos, nomes da guerra e da paz”, diz o historiador Fernando Pereira.
Gente que constitui o “núcleo duro” dos novos empresários do governo, que no passado, ao investir em Portugal, refere o engenheiro Galvão Branco, davam “um sinal de absoluta falta de confiança na estabilidade política, económica e social de Angola e seus reflexos na garantia e na rentabilidade dos capitais investidos”.
Esse foi um tempo em que se, por um lado, os angolanos não se importavam de dar chorudas gorjetas aos empregados dos restaurantes e cabarets, por outro lado pareceu sempre inverosímil vêlos pensar em transferir os dividendos dos seus investimentos em Portugal, “por não constituir uma reserva de valor seguro, por razões decorrentes da nossa política monetária cambial”, sublinha Galvão Branco.
Era o tempo em que a excentricidade do novoriquismo angolano, ancorado na vaidade e no complexo de ter estrangeiros ao seu serviço, dava para importar empregadas domésticas oriundas das Filipinas, massagistas chinesas e brasileiras ou esteticistas portuguesas.
“Um estrangeiro negro, mesmo que venha dos Estados Unidos ou da África do Sul, não encontra emprego nem tem as mesmas facilidades que o estrangeiro branco”, diz o professor universitário Ismael Mateus.
Era o tempo em que a mão-de-obra portuguesa e brasileira (sobretudo esta) funcionava como uma espécie de chineses. Ismael Mateus, jornalista licenciado em Coimbra, lembra que “há portugueses competentes e não competentes, que fazem parte de uma mão-de-obra relativamente barata e rentável”.
Mas acrescenta: “Há situações em que vivem 16 pessoas amontoados em casas de trânsito, ganham bem, têm toda a família em Portugal, mas, mesmo dispondo de condições diferentes, a filosofia é a mesma que a das camaratas chinesas.”
Era o tempo em que o dinheiro fácil, extraído dos diamantes ou do petróleo, dava para importar jogadores de futebol ou de basquetebol de Portugal, do Brasil ou dos Estados Unidos, que auferiam vencimentos fora do alcance de alguns dos mais diferenciados professores universitário, médicos e engenheiros angolanos. “A maior parte desses atletas, incluindo uns poucos angolanos que já jogaram e têm a vida instalada em Portugal, com a crise, estão hoje novamente de regresso”, disse à EXAME uma fonte da federação angolana de futebol.
Taxistas sem clientes
Era o tempo em que, como se tivessem ganho o totoloto, os angolanos passaram a pretender comer caviar e a oferecer aos filhos, como presente de aniversário, um Ferrari. Esse tempo acabou. Acabou de tal forma que alguns portugueses, como Vera Ferreira, ligada à empresa Semba Comunicações, preferiu pôr fim ao seu vínculo contratual, deixando para atrás ordenados em atraso no valor de 20 mil dólares. Com o fim da bonança petrolífera, as sessões de leilões de divisas no Banco Nacional de Angola tendem cada vez mais a rarear por falta de dólares.
Acabou ainda para muitos dos consultores portugueses que trabalham no Banco Nacional de Angola depois de o governador desta instituição, José Pedro de Morais, em reunião restrita, ter informado que a partir de então chegara ao fim o recurso à cooperação estrangeira.
Acabou para a generalidade dos angolanos, mas não para todos. Como dois secretários de Estado das Finanças que, perante a crise que o país vive, não poderiam ser mais originais: “Não deve haver grande preocupação, o preço do petróleo para o mês que vem vai subir e tudo volta à normalidade!”
Acabou o vai e vem
“Continuam a não ter chão”, lamenta o empresário Isaías Ferraz. No chão parecem estar agora também dezenas de taxistas, fustigados com a brutal subida do preço dos combustíveis e com a “deserção” de muitos expatriados da jovem geração, que estão de malas feitas de regresso definitivo a Portugal. Depois de um permanente ‘vai e vem’, quando não de quatro em quatro meses, em classe executiva, os bilhetes de passagem para muitos consultores portugueses passaram a ter agora apenas o trajeto de ida.
E isso começa a ser uma dor de cabeça para Aurélio Sapalo, motorista há cinco anos de uma empresa de táxis personalizados, que, passando agora por longas horas de espera no aeroporto para apanhar um cliente, exibe hoje um rosto esculpido pelo desespero. A chegada dos voos de Lisboa ou do Porto já não é o que era. “Como a maioria dos angolanos que reduziram as viagens para o exterior têm meios próprios, com a ida dos portugueses andamos a perder muita clientela”, lamentou Anastácio Joaquim, outro taxista.
“Com a desvalorização galopante do kwanza, passei a ganhar quase duas vezes menos, deixei de poder enviar dinheiro para Portugal e começo a ter já dificuldades para pagar a renda de casa”, lamenta Gervásio Puleta, consultor de uma seguradora para quem o antigo Eldorado angolano definitivamente chegou ao fim. As dificuldades atingem também os cubanos e até alguns asiáticos, como chineses e viet namitas, libaneses e africanos oriundos dos países vizinhos e da África Ocidental e do Oeste malianos, senegaleses, gambianos, camaroneses e guineenses, que viam Angola como espaço de fácil prosperidade.
Mas para o oficioso Jornal de Angola essa bonança continua a ter pernas para andar. Por isso, no início deste ano, quando o preço do petróleo já estava em queda livre, estampava em editorial que “a crise é uma vaga de fundo que veio de fora”. E sublinhava em grandes parangonas, dias depois, que em Angola “economia robusta continua a crescer”. “Não vivem aqui”, reagiu, revoltado, um membro do governo, que pediu anonimato. “Quem aqui vive sabe que o ambiente de negócios tem-se estado a deteriorar a uma velocidade muito perigosa.”
Emigrantes querem ficar
“É preponderante e perturbador o peso burocrático da fileira de procedimentos administrativos, onde a ineficiência de alguns atos como a concessão de licenças e alvarás, a obtenção de vistos, associada aos défices ainda existentes em algumas infraestruturas, como é o caso do fornecimento de energia elétrica e água, a baixa qualificação do capital humano, desestimula o investimento estrangeiro”, denuncia o consultor Galvão Branco. E adverte: “Ao prolongar-se e ao agravar-se a escassez de divisas, e assumindo que esta situação não só penaliza a importação de produtos acabados mas também o suprimento em matérias-primas, acessórios e assistência técnica de que o sector produtivo necessita para a sua plena atividade, estaremos em presença de mais um fator inibidor do investimento direto.”
Mas nem toda a gente vê a crise com o mesmo alarmismo. Apesar das dificuldades, Ismael Mateus gosta da crise. “Não havendo [dinheiro] para exotismos, a aposta tem que voltar a ser nos quadros angolanos, e desta forma repõe-se a normalidade.” Este analista critica ainda os excessos do discurso oficial da elite local, ao ter criado a falsa e caluniosa ideia de que “os angolanos não só não gostam de trabalhar” como, “para ter sucesso, têm de ter empregados estrangeiros. A crise veio desmentir isso e ainda vai acentuar mais esse regresso à normalidade”.
Apesar da crise, a maioria dos portugueses radicada em Angola não pensa em regressar a Portugal. “Vou lá fazer o quê? Mal ou bem, aqui ganho a vida e sustento a família que aqui constituí”, diz António Barreiro, comerciante do Bairro de S. Paulo, que veio para Angola depois do fim da guerra, em 2002, tendo-se instalado inicialmente no Huambo, antes de vir para Luanda.
Para contornar a falta de dólares no mercado, os proprietários da Soipa Socie dade Industrial de Produtos Alimentares, associados à Sicarze Sociedade de Carnes de Terras Novas, estão a exportar ananás para Portugal e a comprar enchidos e carne, que vendem em Angola.
“Há muitos portugueses que investiram aqui em bens e património e não é por causa dessa momentânea turbulência que vão querer abandonar tudo isso para ir para Portugal”, disse à EXAME Amílcar Silva, presidente da ABANC Associação dos Bancos de Angola.
Este artigo é parte integrante da edição de fevereiro de 2016 da Revista EXAME