Um funcionário que acumula um trabalho a tempo inteiro com um em part-time faz lembrar o personagem Clark Kent, que deixava o trabalho de jornalista a meio para vestir a pele de Super-Homem. Hoje, como os empregos para toda a vida acabaram, estão a nascer novas oportunidades, que devem ser encaradas como desafios para colaboradores e para empresas.
Mónica Santana Lopes sente-se mais realizada por acumular um emprego a full-time com um extra, neste caso o blogue remunerado A Mulher É que Manda, que nasceu em outubro. A bloguer, que também trabalha há um ano no departamento de comunicação de uma empresa privada da área hospitalar, cujo nome não quis revelar, foi atrás de um desejo: “A vontade de escrever e partilhar com outras mulheres questões que nos interessam ou que nos preocupam diariamente.”
Mónica considera que as duas atividades se completam: “Não me vejo sem uma delas.” Assim, ao final do dia, depois de deitar as filhas e organizar a casa, ocupa o tempo a investigar e a escrever. Há dias em que “os minutos são contados”. O segredo, confessa, é uma boa gestão do tempo.
Além do fator financeiro que advém da associação a marcas, o maior ganho com do blogue é estar ” a par dos temas da atualidade. Quanto mais informados somos e com uma mente mais dinâmica e aberta, melhor conseguimos desempenhar as funções, sejam elas no emprego permanente ou em casa”, diz. Essa capacidade potenciada leva-a a estar constantemente a pesquisar exemplos de outras instituições nacionais ou internacionais que sirvam de exemplo para a sua empresa.
Além disso, Mónica Santana Lopes já promoveu no blogue ações de solidariedade desenvolvidas pela entidade patronal e, devido ao facto de o seu espaço online ser dedicado ao público feminino, no Dia da Mulher deu uma palestra para utentes sobre “Como Melhorar a Autoestima”.
Desconfiança dos gestores
A acumulação de um trabalho a tempo inteiro com um em part-time, como a criação de um negócio próprio, a escrita de livros e blogues ou a formação online, é uma realidade evidente no mercado português, daí gerar alguma desconfiança entre as entidades patronais. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2012 foram 209,1 mil as pessoas que acumularam o seu emprego com uma atividade remunerada extra (165 mil tinham como atividade principal um emprego a tempo inteiro e 44,1 mil um trabalho a tempo parcial).
Luís Bento, presidente da Associação Portuguesa de Gestão de Pessoas (APG), explica que “Portugal não tem tradição de desenvolvimento de trabalho em part-time, ao contrário de outros países”. Segundo Eduarda Luna Pais, também especialista em recursos humanos, trata-se de um fenómeno dos “últimos cinco anos”. Contrariamente aos Estados Unidos, onde as pessoas começam a trabalhar muito mais cedo, não raras vezes ainda durante o ensino secundário, a mentalidade no mercado de trabalho europeu é muito mais fechada, observa.
Na visão da gestora e consultora, que fundou a ElPing Organizacional Fitness, “a maior parte das empresas continua a privilegiar colaboradores que tenham uma dedicação exclusiva e que não se dispersem com outras atividades”.
“A pessoa tem sempre capacidade de fazer muito mais, tem é de saber gerir o seu tempo”, sublinha Eduarda Luna Pais, que diz desconhecer casos de insucesso de acumulação de empregos. Contudo, adverte, a atividade secundária não deve ser demasiado paralela à atividade a full-time, o que pode gerar “receios fundamentados” por parte das entidades patronais. É também importante que a segunda atividade não se torne num negócio de grande dimensão.
Ainda que Portugal tenha legislação sobre a flexibilidade de horários e formas de contratação, isso não se vê na prática, sobretudo por “medo e inércia” das entidades patronais em alterar modelos de organização de trabalho, destaca, por seu lado, Luís Bento.
Leonor Ferreirinho quebrou a inércia quando percebeu que podia fazer mais do que ser apenas secretária de administração do grupo Hospitais Privados de Portugal Saúde, que ocupa há 11 anos. Recorda as relações tensas habituais no meio empresarial e como isso a perturbava e limitava o seu desempenho. Decidiu “explorar matérias relacionadas com a mente”, começando a estudar hipnose clínica, atividade que exerce há seis anos, em part-time. “A hipnose põe-nos em contacto com os nossos recursos mais profundos, com aquilo que nós realmente somos […] É estudar aquilo que pode rentabilizar as nossas competências”, explica a hipnoterapeuta, que através desta ciência conseguiu desenvolver a concentração, a assertividade e a empatia, qualidades que agora aplica no seu emprego no grupo HPP Saúde.
“O facto de ter um relacionamento franco, aberto e empático com os colegas da empresa permite-me conseguir deles muito mais coisas” e os ganhos para a empresa “são quase quantificáveis”, vinca. Como assistente de um conselho de administração, precisa de ter a “abordagem certa para conseguir contactos com organizações de uma forma rápida e eficaz, deixando uma imagem positiva e credível da empresa”. Quando sai do trabalho, Leonor não lhe vira costas e, por isso, já chegou a recomendar a pacientes seus serviços do HPP Saúde, algo que a deixa “feliz. Quando sugiro os serviços da HPP, é porque eu confio plenamente neles. Nunca o faria a um paciente meu que supostamente confia em mim”, justifica.
Há alturas em que a profissional termina a jornada muito tarde, após consultar pacientes na HypnoSaúde, e nesses dias confessa-se “muito cansada”. Porém, garante que isso não se evidencia no desempenho das suas funções. “Pelo contrário, trabalho até com muito mais entusiasmo, porque sou uma pessoa muito mais realizada. Quanto mais ociosa é a vida das pessoas, menos vontade têm de desenvolver qualquer tipo de tarefa”, assevera.
Quando o part-time atrai recrutadores
Se o duplo emprego assusta uns empregadores, atrai outros. No caso de Hugo Nunes foi a existência de um part-time que o aproximou da atual entidade patronal. Há quatro anos lançou o blogue Web Marketing Tuga, porque queria ser uma referência no setor, e conseguiu-o: hoje é um dos espaços da blogosfera mais visitados na área do marketing online, contando com cerca de mil visitantes por dia.
No ano passado, ao ser contratado para a empresa de marketing digital StepValue, o blogue foi um fator de aproximação. Ainda hoje chegam pessoas à empresa, como é o caso de novos colaboradores, através de um primeiro contacto com Hugo Viegas Nunes naquele espaço online.
“O part-time é uma extensão do meu trabalho a full-time. Faço-o por paixão. Sinto-me mais motivado em fazê-lo do que em estar a jogar ou a ver televisão”, realça o bloguer. Acontece também frequentemente desenvolver ideias para aplicar no emprego a partir de informações que recolhe para o espaço online.
A existência de uma segunda fonte de rendimento pode traduzir-se em ganhos de confiança dentro da empresa e, consequentemente, em atitudes ou propostas mais arrojadas, porque o medo de ficar desempregado deixa de determinar os movimentos.
Devido ao blogue, Hugo sente-se não só “muito mais à vontade a nível de conhecimentos” e com melhor “reputação” dentro da empresa, como também amparado, dado que se ficar sem o trabalho principal os rendimentos que obtém do Web Marketing Tuga dariam para sobreviver.
Ainda assim, o especialista em webmarketing esclarece que a parte financeira do blogue surgiu “como uma evolução natural” e tem feito posts pagos para “muitas empresas relevantes no setor”.
O poder da partilha dedicada
Chris Guillebeau, autor do livro A Start-up de $100: Abra o Negócio dos Seus Sonhos e Reinvente a Sua Forma de Ganhar a Vida, explica à EXAME que “é melhor as empresas incentivarem os funcionários que têm outros projetos”, até porque, “quando alguém se desloca para o emprego quando podia estar a trabalhar em algo seu noutro lugar, isso é um sinal de que esse empregado é dedicado”.
Além disso, o empreendedor norte-americano, que ficou famoso com o blogue The Art of Non-Conformity (“A Arte da Não-Conformidade”) e que já visitou pelo menos 185 países, ajudando as pessoas a transformar as suas ideias em dinheiro, reforça que uma pessoa com outra atividade “é provavelmente um funcionário mais motivado. São empreendedores, conseguem equilibrar melhor o seu tempo e têm iniciativa”.
Chris Guillebeau reconhece que existe o risco de um funcionário com outra atividade sair, mas, vinca, “é por isso que as empresas devem garantir, desde logo, que os funcionários estão satisfeitos”.
Para Luís Bento, a procura de uma segunda atividade é vista pela empresa como um problema ou uma falha para conquistar a sua total atenção, e nunca como uma oportunidade, “principalmente quando o trabalhador é altamente qualificado e tem uma boa prestação. Uma empresa que não cuida bem dos melhores trabalhadores é evidente que corre o risco de os perder a qualquer momento, mas em muitas circunstâncias isso deve-se ao facto de as empresas não envolverem na totalidade os seus trabalhadores nos seus próprios projetos”, diagnostica.
Reconhecendo que em Portugal existe “uma tradição em que as administrações decidem e os trabalhadores cumprem”, o presidente da APG diz que é crucial “as pessoas identificarem-se com o projeto da empresa e verem nele potencialidade para elas próprias crescerem do ponto de vista pessoal e do ponto de vista profissional”.
Eduarda Luna Pais advoga que “as empresas têm de ser mais criativas na forma como lançam desafios a quem começa a dar sinais de se sentir estagnado”. E isso não tem de passar, necessariamente, por novos cargos ou maiores vencimentos. Basta “dar um bom ambiente de trabalho” e “proporcionar desenvolvimentos adequados”, como, por exemplo, manter a pessoa no mesmo cargo mas incumbi-la de liderar um projeto adicional.
Em contrapartida, corrobora, trabalhadores com atividades remuneradas extra são pessoas “dinâmicas, atiradas para a frente e com energia”, e tudo isso normalmente é aplicado de igual modo no local de trabalho ou num projeto particular.
Este artigo é parte integrante da edição de maio da Revista EXAME