“Leiam o Bismark”. O pedido foi feito, na quinta-feira, 31, de manhã por Adriano Moreira na sala de conferências do Comité Olímpico de Portugal (COP) e todos ficaram em suspenso para saber a razão porque, na abertura de uma conferência sobre “Migrações, Desporto e Religiões”, o velho professor ia buscar a referência do “chanceler de ferro” que moldou a Alemanha, no século XIX, para o ajudar a traçar o retrato do mundo atual. A justificação foi dada logo de seguida, com uma citação do líder prussiano: “Uma simples leviandade pode provocar um desastre global”.
Estava desfeito o mistério. E, em simultâneo, o momento de alertar para as consequências do desabamento da estratégia do globalismo e dos grandes fluxos migratórios que prevê que possam intensificar-se por causa das alterações climáticas.
“A I Guerra Mundial começou, como sabemos, por causa de uma leviandade”, prosseguiu, recordando como um ação que parecia de impacto limitado, como “o assassinato de um arquiduque” (o herdeiro da coroa do império Austro-Húngaro), fez dezenas de nações envolverem-se numa guerra sangrenta e global.
Para Adriano Moreira, o mundo está a viver uma situação semelhante e esses tempos, à mercê de uma qualquer “leviandade” que possa provocar o “desastre global” de Bismarck. Perante a plateia, no seu tom professoral, disse que existem, no planeta, “riscos de agressão armada no horizonte, que deviam estar a exigir ações preventivas”. Mas não esconde o desânimo nem muito menos o alarme quando precisa de identificar o perigo principal. Nesse momento, ergueu a voz e clamou: “A maior ameaça atual ao mundo é a incultura e a leviandade do Presidente dos EUA”. E, mais à frente, voltou a bater forte e feio em Donald Trump, criticando a desfaçatez com que este aplaudiu o facto de o Tribunal Penal Internacional se ter declarado incapaz de perseguir crimes de guerra e contra a humanidade por causa da recusa de colaboração dos estados. “E Trump classificou isso como uma vitória”, indignou-se… com a “leviandade”.
Apelo à “união dos utopistas”
Aos 97 anos, o professor de Ciência Política e de Relações Internacionais continua a manifestar uma vitalidade invejável e uma extraordinária lucidez e sabedoria na forma como olha para o mundo, cruzando referências, experiências e uma vivência ímpares. Apresentado pelo presidente do COP, José Manuel Constantino, como uma “autoridade moral”, Adriano Moreira foi o escolhido para abrir os trabalhos do seminário “Migrações, Desporto e Religiões”. E depois de Rui Pedro Garcia, catedrático da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, coorganizadora do encontro, o ter elogiado como “uma das pessoas mais cultas de Portugal”, Adriano Moreira deu uma autêntica “lição” de 30 minutos que prendeu a atenção de todos os presentes, que o aplaudiram demoradamente no final.
Na sua apresentação, em pé, o professor fez alertas, apresentou contextualizações, recordou o passado e pediu, repetidas vezes, para que o “nós” se sobreponha ao “eu”. Afirmou que a nova força do racismo “é um dos piores sinais do nosso tempo”, até porque representa um regresso a conceções de 1859 quando surgiram as primeiras teorias de que a “mestiçagem eram a causa da decadência das nações”, com as consequências que isso teve, nomeadamente no nazismo.
“Esse conceito reapareceu em força, nos últimos anos, com o drama das migrações e dos refugiados”, que veio também criar um novo conflito, nas sociedades europeias, entre os deveres de segurança e de humanidade. E não escondeu a sua indignação com a decisão de Itália de punir com 20 anos de prisão aqueles que tentam salvar as vidas dos refugiados que procuram desembarcar na Europa. “O Mediterrâneo das nossas glórias do passado foi transformado no cemitério dos abandonados do presente”, lamentou, num tom emotivo.
Para resolver o problema das migrações, Adriano Moreira só encontra uma solução: “O remédio é repor a ordem nos países de origem, para que as pessoas tenham um futuro, mas, mais urgente ainda, um presente com dignidade”.
Para alcançar esse objetivo, alertou, preconizou “a união de todos os utopistas”. Nesse sentido, e tendo presente o local onde se encontrava e o tema do encontro, Adriano Moreira afirmou que “o desporto é o grande instrumento para apagar as linhas vermelhas que dividem o mundo”. Considerou que o desporto é uma solução para a integração das comunidades, já que possui uma linguagem comum universal e a capacidade de aglutinar interesses. Lembrou, a propósito, que não foi por acaso que, na sua recente viagem a Moçambique, o Papa Francisco fez questão de evocar Eusébio, exatamente porque os seus feitos como desportista geraram sempre união e não divisão – foram, no fundo, um contributo para a construção da Terra como “casa comum dos homens”, o princípio central na origem das Nações Unidas, como tentativa de ordenar um mundo em paz, que Adriano Moreira considera que deveria ser o desiderato mais importante de qualquer líder.
Mas será que pode o desporto possui mesmo as caraterísticas que possam mudar o mundo? Adriano Moreira não mostrou dúvidas a esse respeito: “O desporto é alegria e saúde, é paixão. Faz sonhar e isso é das melhores coisas da vida”, concluiu.
Um dia de discussão sobre o desporto e o mundo
O seminário “Migrações, Desporto e Religiões” decorreu na quinta-feira, no Comité Olímpico de Portugal (COP), numa parceria com a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP) e com o apoio da VISÃO.
Na abertura dos trabalhos, José Manuel Constantino, presidente do COP salientou a importância da “linguagem comum” do desporto no processo de integração de migrantes e refugiados, enquanto Rui Proença Garcia, professor catedrático da FADEUP alertou para o facto de que “só o desporto com valores poderá ter utilidade para o acolhimento”.
Na sessão da manhã, participaram ainda Pedro Vaz Patto, juiz e Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Paulo Mendes Pinto, diretor do Departamento de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, e Gonzalo Barrio, gestor do projeto da equipa olímpica de refugiados no âmbito da Solidariedade Olímpica e do Comité Olímpico Internacional.