O casaco de João Gomes tem um vermelho tão vivo como as bagas de murta que Cláudia apanha para dentro do balde. Estamos nas margens do rio Teixeira, na freguesia de Arões, concelho de Vale de Cambra, e aqui não há vestígios de incêndios. É um oásis de verde numa região que o fogo tornou preta e castanha.
Dentro de um ano, essas bagas vermelhas estarão a ajudar a dar cor a uma das áreas ardidas na Serra do Caramulo, em Vermilhas, concelho de Vouzela, a umas dezenas de quilómetros, onde a associação de conservação de natureza Montis tem um terreno que não escapou ao fogo.
«Um dos objetivos da Montis é criar uma floresta madura, que resista aos incêndios», explica Luís Lopes, geógrafo físico, um dos sócios da associação que esta manhã guia João Gomes e Cláudia, do viveiro Sigmentum, especializado na produção de espécies autóctones, pelos caminhos nas margens do Teixeira. Consigo estão o vice-presidente da Montis, Nuno Neves, e outro membro da associação, Paulo Pereira, da Sociedade Portuguesa de Botânica. A ONG, criada em 2014, é composta por 350 sócios, e tem duas propriedades, uma em Vouzela e outra em S. Pedro do Sul, onde vão apalpando terreno sobre como melhor defender as espécies autóctones e aumentar o valor de mercado da biodiversidade.
«Temos uma estratégia a curto, médio e longo prazo quanto aos fogos», continua Luís. «A curto prazo, queremos conhecer melhor a propriedade que ardeu – o incêndio permitiu-nos, por exemplo, saber onde ficam as extremas. A médio prazo, precisamos de saber qual é a resposta da Natureza – esperaremos pela primavera para ver se os carvalhos rebentam novamente e, por isso, não vamos fazer cortes até essa altura.»
Na propriedade de Vermilhas, depois de conhecida a resposta da Natureza, plantarão no próximo outono e inverno o que germinar daquilo que João e Cláudia colocam agora dentro dos baldes. A Montis encomendou à Sigmentum 8 mil arbustos. «Vamos colocar 3 mil árvores pyrinaicas e robles [são duas espécies de carvalhos]. Queremos muitas árvores, para que elas entrem em competição umas com as outras e cresçam o mais rapidamente possível. Além disso, como queremos também aumentar a biodiversidade, vamos plantar azevinhos e medronheiros, entre outros arbustos, criando disponibilidade para alimentar a fauna e criando condições para os animais permanecerem naquele local.»
«Reset» em vez de «copy paste»
O que está dentro dos baldes viajará até Lisboa, mais concretamente à Tapada da Ajuda, para depois regressar, noutra forma, ao seu habitat natural. «O que estamos a apanhar são os frutos, as sementes estão lá dentro», explica João Gomes, meio empoleirado num arbusto. «Uma das regras da boa apanha é recolher apenas 30% de sementes», continua este arquiteto paisagista que nunca exerceu a atividade para a qual estudou e sempre foi fascinado por plantas. «Outro cuidado é apanhar frutos de vários indivíduos [plantas], porque a diversidade genética é particularmente importante.»
Cláudia está mais à frente, encantada com a pereira selvagem que os surpreendeu no caminho. Paulo Pereira, o botânico de serviço, confirma que são mesmo peras selvagens e Cláudia e Nuno Neves recolhem parte dos frutos.
«As sementes estão dentro dos frutos», esclarece João. «A primeira coisa que fazemos, no viveiro, é simular o que acontece no estômago dos animais: os sucos gástricos quebram o tegumento [a pele ou a casca], libertando as sementes. Depois disso, as sementes podem ser guardadas ou plantadas. O processo de germinação depende das espécies. Há sementes que precisam de fogo para germinar, porque provêm de meios em que há fogos florestais naturais, como o eucalipto, por exemplo.»
Muitas vezes, nas plantações para jardins utiliza-se a técnica da plantação por estaca – mas nunca, pelo menos idealmente, em reflorestação de espécies autóctones. «Quando retiramos um ramo a uma planta e plantamos por estaca, o que estamos a fazer é uma clonagem. É um processo de ‘copy paste’, de clonagem do mesmo indivíduo. Por semente, estamos a fazer ‘reset’: vamos à origem da base genética da espécie. Um exemplo: se este arbusto de onde estou a apanhar as bagas tiver sido atacado por um fungo e eu utilizar o processo por estaca, a nova planta não terá capacidade para resistir a esse fungo; mas se eu usar as suas sementes, elas não estão afetadas pela doença.»
VISITE AQUI O SITE – “Uma Redação com o Coração no Centro de Portugal”
Vamos ter uma redação itinerante no Centro do país durante todo o mês de Novembro, para ver, ouvir e reportar. Diariamente, vamos contar os casos de quem perdeu tudo, mas também as histórias inspiradoras da recuperação. Queremos mostrar os esforços destas comunidades para se levantarem das cinzas e dar voz às pessoas que se estão a mobilizar para ajudar. Olhar o outro lado do drama, mostrar a solidariedade e o lado humano de uma tragédia. Para que o Centro de Portugal não fique esquecido. Porque grande jornalismo e grandes causas fazem parte do nosso ADN.