João é apanhado no largo dos cafés de Vila Facaia quase em andamento. Sai da sua carrinha para entrar no nosso carro e ala que se faz tarde. A chuva que começou a cair logo de manhã estragou-lhe uma boa parte dos planos do dia; quer ir ver se o camião do betão chega a tempo de os seus homens ainda conseguirem fazer a betonagem da primeira placa do T2+1 que estão a construir de raiz, a expensas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, numa das entradas da aldeia de Nodeirinho, junto ao IC8.
“Andamos sempre num contrarrelógio”, já avisara ao telefone, da terceira vez que faláramos para acertar a hora de o apanhar. Da primeira, entre uma outra obra e o seu armazém, onde ia passar para buscar material, dissera: “A minha vida agora é como o fumo – tanto estou aqui como ali.”
Desde julho que João Antunes não sabe o que é fazer as coisas com calma. Toda a gente tem pressa e ele percebe que assim seja. De um dia para o outro, perderam-se casas inteiras, telhados, barracões, quando antes se trabalhava por fases. “As pessoas vendiam uns eucaliptos e mandavam fazer uns melhoramentos, uma cobertura nova. Mas com o fogo foi tudo ao mesmo tempo.”
O pior, diz, é quando se anunciam prazos impossíveis de cumprir. Aos 40 anos, os últimos 21 na construção civil, o dono da J. F. Antunes Construções sabe que não se deve passar por cima dos tempos naturais das obras e da meteorologia. Nem quer voltar fazer as coisas “à antiga” só porque o prazo está a apertar. “Quem marca os prazos esquece-se dos espaços de secagem entre as fases e esquece-se da chuva. Por isso há pessoal que faz a primeira placa, mete o tijolo e depois mete os pilares. O betão, a seguir, entra nos tijolos…”
Para quem as últimas frases são Mandarim, João aproveita o camião ter-se atrasado para subir para as fundações-mais-primeira-placa da casa e explicar o seu modus operandi: “Agora, avançamos com a betonagem da primeira placa; depois tem de secar; segue-se cofrar e encher os pilares; secar; desmoldar os pilares e começar a fazer a estrutura da segunda placa; e por aí fora. Não é que os outros façam casas piores, mas os métodos de trabalho vão evoluindo e ficando cada vez melhores.”
Ele bem gostava de entregar casas no Natal, mas não está a ver como. Nesta, no Nodeirinho, tem trabalho para pelo menos mais uns três ou quatro meses. Já entregou cinco obras mais simples, de reconstrução, tem em curso quatro casas de raiz e sabe que há projetos à sua espera, ainda por aprovar. Na empresa tem dez trabalhadores, contrata habitualmente mais uns dez e trabalha sempre com dois ou três subempreiteiros. Pelo caminho ainda é preciso acelerar os eletricistas, canalizadores ou serralheiros. “Faço o que posso, pressiono até onde dá”, diz.
Não chegamos a perguntar-lhe se é crente, mas uns minutos antes ouvimo-lo dizer “não era o meu dia” e presumimos que sim. Foi quando contou, na sua maneira acelerada de falar, mas com a voz carregada de emoção e o olhar longe, como na noite do fogo ia morrendo com os pais na EN236, entre Pobrais e Barraca da Boavista.
Os três escaparam ainda hoje não sabe como, com o fogo a passar-lhes por cima e a carrinha a ir-se a baixo constantemente. “De uma das vezes desacelerei, a minha mãe gritava, o meu pai estava calado, bloqueado, e eu pensei: ‘Há de ser o que Deus quiser, é o meu fim’. Mas de repente um meu vizinho de Pobrais, que vinha atrás de mim, bateu-me com o carro e acordei para a vida. Consegui sair, mas vi as pessoas a arderem nos seus carros, é uma coisa que não se esquece. Não era o meu dia. Fiquei cá para fazer estes trabalhos e ajudar.”
João Antunes, 40 anos
Pobrais (Pedrógão Grande)
Tem falta de mão de obra para dar vazão a todas as obras de construção civil que lhe pedem, sejam de reconstrução ou de raiz
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