Sem a Noruega, Portugal seria um sítio muito triste. Nada de bacalhau com todos na mesa de Natal, nada de pasteis de bacalhau para acompanhar uma cerveja fresca, nada de bacalhau à Brás nos piqueniques. Pobres de nós. Condenados a comer cavala à Gomes de Sá, feijoada de sardinha e rissóis de carapau. É muito difícil imaginar uma vida sem este peixe que nos sustenta de 1001 maneiras. O peixe que faz as delícias mesmo de quem diz não gostar de peixe e que, por oposição aos seus pares, consegue mesmo puxar a proverbial carroça. Não é por acaso que a Noruega foi a convidada especial da edição deste ano do Festival do Bacalhau de Ílhavo. Uma oportunidade bem aproveitada para celebrar esta herança conjunta e aprender com as tradições gastronómicas de ambos os países.
A chef Kristine Øvrebø, parte da comitiva norueguesa que visitou Ílhavo por estes dias e que fez diversas sessões de showcooking durante o festival, atira logo uma provocação: sabe que os portugueses gostam muito do seu bacalhau salgado, mas acha que devíamos comê-lo fresco. Bacalhau fresco é, de resto, algo que remete para a sua infância. “Encorajo toda a gente a experimentar bacalhau fresco. É algo a que fui habituada desde criança. A minha família vivia perto do mar e, ao fim-de-semana, metíamo-nos no nosso barquinho e íamos pescar. Havia sempre uma grande competição para vermos quem pescava primeiro, mais ou o maior peixe. Depois voltávamos para casa e cozinhávamos os nossos peixes, que acompanhávamos com batatas e cenouras cozidas e manteiga derretida. Nada sabe tão bem como um peixe apanhado por nós”, conta. A chef garante ainda que, de um ponto de vista profissional, o bacalhau fresco também é mais interessante porque oferece mais possibilidades de confeção.

Kristine sabe do que fala. Com quase 30 anos de experiência, actualmente trabalha para a Marinha Norueguesa como consultora e líder de chefs aprendizes e é a embaixadora norueguesa para a World Chefs Without Borders, uma organização humanitária que oferece apoio a populações necessitadas ou vítimas de desastres naturais. A chef conta que, durante as suas missões, viu pessoas com fome e a viverem em casas feitas de plástico. “Há muita gente a morrer à fome pelo mundo e é nossa responsabilidade social ajudá-las. Somos muito abençoados por irmos para a cama, todas as noites, de barriga cheia. Temos de aprender a cuidar dos nossos recursos e, acima de tudo, a não desperdiçar comida”, diz.
Esta preocupação em aproveitar e valorizar os recursos é algo que lhe foi transmitido em criança. A chef conta que quando era pequena passava muito tempo com os avós. “Foram eles que me ensinaram a alegria de comer, mas também a importância de cuidar dos alimentos. Vivíamos numa pequena quinta onde havia uma forte ligação entre as estações do ano, os animais e os alimentos. Naquele ambiente, o amor e o cuidado eram os alicerces de tudo.” Kristine conta ainda que uma das suas memórias mais queridas da infância é de estar sentada na bancada da cozinha a ver a avó fritar línguas de bacalhau [ver caixa]. “Espetava-as com um garfo e comia-as, mal acabavam de sair da frigideira.”

Aos portugueses relutantes em comer bacalhau fresco, Kristine Øvrebø diz que deviam experimentar comê-lo com soda cáustica, que é como quem diz, lutefisk, uma iguaria tradicional da Noruega. A chef diz que este é um dos seus pratos favoritos e que é comum os noruegueses comerem-no no Natal. “Lutefisk é bacalhau seco que foi demolhado, mergulhado em soda cáustica e depois lavado com água. Não sabemos muito sobre a origem do lutefisk. Uma teoria interessante é que um armazém de peixe seco foi atingido por um raio e ardeu. O peixe seco ficou no meio das cinzas e depois encharcou na chuvada que se seguiu. Eram tempos de grande pobreza e as pessoas não podiam desperdiçar peixe, por isso lavaram-no e aproveitaram o que podiam. E terá sido assim que descobriram o lutefisk, tendo passado a usar soda cáustica, que tal como a cinza é alcalina, para o preparar”, explica.
Não obstante todas estas tradições, não só da sua família, mas do seu país, Kristine Øvrebø acredita que o bacalhau tem um papel mais preponderante na gastronomia portuguesa. “O bacalhau era um importante produto de exportação, pelo que a maioria dos noruegueses não se podia dar ao luxo de o comer.”
Sobre as diferenças entre as duas culturas gastronómicas, Kristine diz que a cozinha norueguesa é caracterizada pela sobriedade e o uso eficiente dos recursos. “Comemos muitos tubérculos que armazenamos durante o Inverno, e preservamos a carne e o peixe, que consumimos fumados, salgados ou secos. Mas a maior diferença entre as nossas gastronomias é, provavelmente, as especiarias e os sabores. Portugal tem uma tradição de comida mais condimentada com mais variações de ingredientes, ervas e vegetais do que a Noruega. Ao mesmo tempo, partilhamos a alegria e o entusiasmo pelo mar e todas as possibilidades que existem com os seus maravilhosos peixes e mariscos. Apesar de sermos diferentes, temos muita história que nos une.”
Receita: As Línguas de Bacalhau Fritas da infância de Kristine Øvrebø
Ingredientes
– 200 a 250 g por pessoa de línguas de bacalhau frescas
– Farinha de trigo q.b.
– Manteiga para fritar (quantidade generosa)
– Sal e pimenta q.b.
Preparação
Passe as línguas de bacalhau por água fria e seque com um toalhete de papel. Ponha a farinha de trigo numa taça e adicione o sal e a pimenta. Envolva as línguas nesta mistura. Derreta a manteiga numa frigideira e adicione as línguas quando esta começar a ficar castanha. Vá virando as línguas para que fritem dos dois lados, até que obtenham a cor certa e ganhem crosta. Podem ser servidas com molho tártaro, cenoura ralada e batatas cozidas (ou comidas à garfada, mal arrefeçam, como fazia a pequena Kristine).