A apresentação da dissertação de Alexandra Fernandes, em 29 de abril, não foi como ela imaginara quando se inscreveu no mestrado em Paleontologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT/UNL). A sala onde deveria defender a tese deu lugar a uma videoconferência num ecrã de computador na Lourinhã, onde vive, através do qual cerca de 30 pessoas em vários países assistiram à sua prova. Desde logo, o arguente, considerado um dos maiores especialistas mundiais na área da Paleontologia, que usou a plataforma Zoom a partir de Filadélfia, nos Estados Unidos. Mas também vários amigos de Alexandra, que viram a apresentação em tempo real, em países como o Reino Unido, Costa Rica ou Alemanha. Mas, para ela, a presença virtual mais importante foi a da família mais próxima, entre os quais os pais, que são portugueses e vivem em Nova Iorque, atual epicentro mundial da doença. Sem sair de casa, puderam ver a filha a obter uma classificação de 18 valores com uma dissertação sobre fosseis pterossauros de Angola. Mas não puderam abraçá-la.
Com o início do confinamento devido à pandemia de Covid-19, em março, as instituições de ensino superior tiveram de reinventar-se e experimentar soluções, de forma a manterem a sua atividade. Nas adaptações, perdeu-se muito, mas ganhou-se outro tanto – a pandemia permitiu experimentar ideias até então adiadas, que deverão manter-se quando a crise sanitária terminar.
Na opinião de Octávio Mateus, paleontólogo e professor associado na FCT/UNL, a maior desvantagem numa dissertação de mestrado por videoconferência é que se perde “uma pequena celebração de um trabalho de muitos anos. Não podemos falar uns com os outros um pouco no final. Agora despedimo-nos e acabou. Do ponto de vista profissional e funcional, não há limitação, mas não tem o mesmo encanto”, lamenta. No entanto, garante o docente, existem vantagens: “Como em todo o mundo estamos todos na mesma situação, podemos com muita facilidade convidar colegas estrangeiros que sejam os melhores na respetiva área. Já era possível, mas agora torna-se mais fácil, as pessoas estão mais disponíveis”, explica, acrescentando que o Zoom já era utilizado antes do confinamento para ter membros do júri que estivessem noutro continente, mas o “membro da arguência tinha de estar presencialmente, porque podia falhar alguma coisa. Agora, até o arguente tem de ser à distância”.
O presidente da Coimbra Business School, Pedro Costa, garante que a instituição que dirige começou a ter aulas por videoconferência logo a 11 de março, ou seja, um dia depois de ter suspendido as aulas presenciais. Neste momento, a quase totalidade das mais de 500 turmas estão a ter aulas à distância. “Os estudantes de todos os cursos conferentes de grau – licenciaturas e mestrados – estão a ter a totalidade das aulas nas plataformas digitais, tal como os que estão a fazer MBA (Master of Business Administration) e pós-graduações, à exceção das turmas de três cursos que estão a ser preparados para avançar brevemente nesse mesmo modelo”, conta. E a comparência às aulas não presenciais tem até sido superior, constata, acrescentando que isso pode ser explicado, pelo menos em parte, pelo facto de muitos alunos poderem, graças ao ensino à distância, “compatibilizar mais facilmente a frequência do ensino superior com a atividade profissional”, uma vez que encontram emprego ou outras saídas profissionais antes de concluírem os ciclos de estudos.
O legado da pandemia
A previsão menos arriscada sobre as consequências da pandemia é a de que o mundo não voltará a ser o mesmo. As instituições de ensino superior terão de desempenhar um papel importante para ajudar a moldar a era pós-covid-19 e, em simultâneo, terão a tarefa acrescida de se reinventarem. O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, defendeu a autonomia das instituições na avaliação da situação e na adoção de uma estratégia de regresso à atividade regular, designadamente no caso das aulas práticas e estágios curriculares, durante o ano de 2020. Em várias instituições, muitas aulas práticas foram adiadas. Outras, vão sendo dadas por videoconferência, com o docente a tentar exemplificar da melhor forma possível.
Segundo Pedro Costa, os estágios poderão ser substituídos por um trabalho na área em que os alunos “se proponham executar, aprovado pelo diretor do respetivo curso”. No caso dos mestrados, poderão ser substituídos “por uma dissertação ou pela apresentação de um projeto, por exemplo”.
Isto num primeiro momento, durante o qual não existe vacina ou tratamento eficaz contra a doença. É um momento de incerteza e os candidatos aos vários cursos tentam perceber se, este ano, a aposta na formação ainda vale a pena. No caso particular do curso que coordena, Joana Carneiro Pinto, responsável pelo Master Psychology in Business and Economics da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, afirma que as fases de candidatura para o próximo ano letivo estão a decorrer como previsto. “Na fase de early bird obtivemos um número de candidatos ao programa muito semelhante ao do ano anterior no período homólogo”, refere. No entanto, nota a docente, “nas entrevistas de admissão que estamos a realizar tem sido uma preocupação dos candidatos tentar perceber em que moldes iremos funcionar. Em particular, os candidatos internacionais, que gostariam de frequentar o programa presencialmente pelo desejo de poderem experienciar a vida no nosso país, cidade e campus. Quanto aos alunos que já estão integrados no programa atualmente, não se verificou qualquer suspensão de matrícula ou desistência na sequência da pandemia”.
PANDEMIA AFETA MAIS OS JOVENS E SEM DIPLOMA UNIVERSITÁRIO
A população mais jovem e menos qualificada será a mais atingida pela crise económica provocada pela covid-19, segundo um relatório da consultora McKinsey. O documento realça que a pandemia tem o potencial de acelerar perturbações que já se faziam sentir em vários setores da economia europeia e que os jovens até aos 24 anos, muitos dos quais procuram estrear-se no mercado de trabalho ou estão numa fase inicial da sua vida ativa, têm uma maior probabilidade de ser afetados. Cerca de 80% dos trabalhadores europeus que enfrentarão uma situação de insegurança no emprego não têm um diploma universitário, estima a consultora, referindo que este cenário só será mitigado com uma intervenção rápida e firme dos governos e das empresas. Sem as medidas adequadas, os postos de trabalho em risco na Europa rondam os 59 milhões – o equivalente a 26% do emprego total, refere o relatório.
O presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), Fontaínhas Fernandes, acredita que “o atual cenário de pandemia vai também deixar lições para o futuro, quer no funcionamento das instituições, quer na procura permanente de novas competências”. A defesa de provas públicas de mestrado e de doutoramento em formato não presencial poderá manter-se na era pós-covid-19, permitindo diminuir custos financeiros e a pegada ecológica. “Ao nível da educação ao longo da vida, no âmbito da qual ganham relevo novos formatos de formação contínua”, o ensino à distância “será, seguramente, uma das apostas da Europa”.
O paleontólogo FCT/UNL, que se diz adepto de “uma mudança inteligente”, espera que as aulas “que sejam uma repetição habitual de conteúdos possam estar gravadas ou que, ao dar-se a aula ela fique gravada e haja um repositório” que os alunos podem consultar quando lhes for mais conveniente. “Os professores poderão, assim, gerir o seu tempo nas aulas mais avançadas, que seriam presenciais”. Octávio Mateus antevê ainda uma maior partilha e colaboração entre universidades e um número crescente de cursos à distância. “Neste momento os recursos são fornecidos a quem paga as propinas. Mas muitas universidades, mesmo as mais prestigiadas, como Harvard, Yale e MIT, já têm os MOOC (Massive Open Online Courses), que podem consistir em dar os conteúdos a quem se inscrever e pagar, mas também podem ser algo intermédio. Quem quiser aprender descarrega e tem acesso a todos os conteúdos automáticos, tendo de pagar apenas os exames, as aulas práticas e um diploma. Isto já existe há vários anos e os custos são equiparados aos de uma propina anual”, exemplifica.
ALGUNS NÚMEROS
16.558 estudantes concluíram o mestrado em 2018, último ano para o qual existem dados disponíveis, segundo a Pordata. Além destes, o número de alunos com mestrado integrado, no mesmo ano, foi de 8461 e 2266 concluíram o doutoramento.
O presidente do ISEG Executive Education, Luis Cardoso, reconhece, por seu lado, que o ensino à distância é uma boa aposta quanto aos programas customizados e internacionais – uma vez que estes cursos se destinam a colaboradores de uma mesma empresa – mas realça a importância do networking nos programas executivos da instituição. Aqui, a preferência vai claramente para o ensino presencial. “Reagendámos as sessões presenciais a partir do mês de junho, altura em que esperamos retomar a atividade em segurança”, revela.
Um aspeto positivo da pandemia é que abriu possibilidades “de interação e trabalho com alunos com limitações físicas ou a fazer estágios fora do país”, observa Joana Carneiro Pinto. “O maior desafio é social – é sentirmos falta de estar todos juntos no mesmo espaço e da dinâmica que isso gera. Mas isso será ainda mais valorizado e precioso quando estiverem reunidas todas as condições de segurança. E, quem sabe isto não se torna uma grande possibilidade de futuro em que esta ou outras formações começam a ser oferecidas também em regime de ensino à distância”.
Catarina Burnay, coordenadora do Mestrado em Ciências da Comunicação, também da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, diz ser prematuro pensar nas alterações a introduzir no modelo de ensino praticado no mestrado que coordena. No entanto, avança, “o que potencialmente vai acontecer é o desenvolvimento de trabalhos de investigação sobre as consequências da pandemia nos media e nas organizações”. Quanto à importância deste curso no mercado de trabalho pós-pandemia, Catarina Burnay destaca, entre outras vertentes, “o papel do jornalismo e dos jornalistas para a transmissão de informação de qualidade no momento crítico que vivemos”, com a disseminação de “desinformação e notícias falsas”.
Mercado de trabalho incerto
O presidente do CRUP admite que dada a situação do país em termos de dívida pública, “é previsível que se avizinhem tempos difíceis nos próximos anos, com reflexos ao nível social, económico e financeiro”, mas, garante, “os diplomados vão ter um papel acrescido e prioritário na produção de novos produtos, tecnologias inovadoras e novas ideias, vitais para a valorização do país”. Segundo Fontainhas Fernandes, “o prestígio alcançado pelos diplomados portugueses nas últimas décadas e a dinâmica continuada permitem, seguramente, cimentar a certeza do seu valor económico e social para o futuro do país”.
Quanto às áreas em que um MBA ou uma pós-graduação farão a diferença, o presidente da Coimbra Business School considera que são as áreas da gestão, empreendedorismo e inovação, mas também, num mundo cada vez mais dependente dos sistemas informáticos, a gestão de risco e a cibersegurança. O novo contexto “implicará também mudanças profundas nas áreas comercial, marketing e logística, que terão de se refletir, quer na investigação a fazer, quer no ensino”. E haverá “seguramente muita procura de formação nas áreas da liderança e gestão de pessoas e equipas, com grande foco na motivação e reforço do trabalho em grupo”, prevê Pedro Costa.
Tecnologia salva ano letivo
Com a suspensão das atividades letivas, devido à pandemia de covid-19, as instituições de ensino superior tiveram de acelerar a adoção do ensino à distância. A principal dificuldade foi transpor em poucos dias para o meio digital conteúdos que foram concebidos para aulas presenciais. E, embora a tecnologia não se tenha revelado a alternativa perfeita, foi a aliada possível que permitiu dar continuidade aos vários cursos. Zoom, Teams e WeBex são apenas algumas das aplicações de videoconferência adotadas pelas universidades para juntar alunos e docentes nas aulas virtuais. Para trabalhos mais específicos, plataformas colaborativas como o Miro e o Trello têm também sido utilizadas por instituições de ensino superior. O Panopto é mais uma aplicação que se tem revelado muito útil em tempo de pandemia, principalmente nas aulas assíncronas, isto é, as aulas que são gravadas e ficam disponíveis para consulta. Os velhinhos e-mail e Moodle, tal como os portais das universidades ou o Skype, continuam a ter um papel importante nesta adaptação aos tempos de pandemia.
Em tempos de pandemia, e pelo menos enquanto ela durar, os profissionais de saúde como médicos e enfermeiros serão dos mais solicitados no mercado de trabalho, de acordo com o gigante de recrutamento Glassdoor, que divulgou recentemente dados sobre as profissões com maior procura.
Rui Coutinho, diretor de Inovação e Crescimento da Porto Business School, alerta para o facto de este ser um momento em que muitas pessoas terão de fazer grandes ajustamentos, procurando mudanças nas suas carreiras ou mesmo requalificações profundas. “O movimento do upskiling e do reskilling é uma forte tendência dos últimos anos que se aprofundará nestes tempos pós-pandemia. Por outro lado, este pode ser também o momento em que os profissionais poderão olhar para uma carreira empreendedora”, refere, lembrando que “as unicórnio portuguesas nasceram quase todas no contexto da crise de 2009-2012”.
Aos 36 anos, Alexandra Fernandes faz parte do grupo de jovens que passaram, há uma década, por uma grave crise financeira mundial e se veem agora a braços com uma pandemia que terá um impacto negativo tão ou mais grave num mercado de trabalho cada vez mais incerto. Alexandra estava a trabalhar em Nova Iorque quando viveu a primeira crise e não esperava viver outra. No entanto, vê nessa circunstância a vantagem de ter aprendido a poupar. Ao avaliar agora as suas opções, e como conta com algum dinheiro que nunca gastou, admite continuar a estudar e investir ainda mais na sua formação se nos próximos tempos o mercado de trabalho não for favorável.