No Outono eu não paro. Tanto que fazer! As folhas caem. Há que varrer. Os frutos estão maduros. Faço compotas. As castanhas cobrem o solo. Há que apanhá-las. As hidrângeas estão secas e desgrenhadas. Podo-as bem rente. Seco a lúcia lima, a erva príncipe, o tomilho, a hortelã, a sálvia. Planto de novo, divido as orquídeas dos vasos para replicarem, coloco-as debaixo dos alpendres para as proteger das geadas, retiro as estacas e as redes da horta, por onde subiram tomateiros, vagens, ervilhas de quebrar.
Os dias encurtam e à noite apetece uma manta enquanto vejo um filme deitada no sofá. As roupas leves e alegres são substituídas pelas fazendas e lãs.
Dantes, era o tempo de comprar cadernos, livros, mochilas, compassos, lancheiras. Nos supermercados, passo nos corredores do material de papelaria e olho com gula para todas aquelas canetas coloridas e novinhas de que não necessito. Sinto saudades do tempo em que iniciava um novo ano escolar. Do meu e do das minhas filhas. Agora, as novidades são menos, mas os prazeres diferentes, mais delicados e degustados mais lentamente. As árvores. Descobri as árvores depois dos quarenta. Até lá, estava demasiadamente centrada em mim, não tinha tempo para ver. Aos poucos, fui olhando para fora e descobrindo um mundo de coisas novas. Aprendi a distinguir um carvalho dum castanheiro, um sobreiro duma azinheira, um pessegueiro duma pereira. Tornaram-se minhas amigas desde que as trato por tu.
-Como estás, Teresa? – perguntam quando passo.
E os pássaros que lá habitam, chilreiam à desgarrada, tentando em vão que os distinga.
Um dia talvez consiga, quando o tempo me sobrar…..
Hoje acordei espontaneamente e sei, pela luz que entra da janela, que ainda não são sete horas. É domingo, poderia dormir até mais tarde, mas sou cotovia e não posso contrariar a minha natureza. Tomo o pequeno almoço, dou um jeito à sala e à cozinha, lavo-me, visto roupa velha e confortável e calço as galochas vermelhas. A Fly dá pulos de contentamento ao meu lado. Ela conhece as nossas rotinas e sabe que vou caminhar pela quinta. Passeio na ala dos choupos e bétulas que estão quase despidas e já não oiço o seu rumorejar com o vento. As galochas afundam-se nas folhas amareladas e fazem um som estaladiço. À frente, os castanheiros começam a falar. De vez em quando ouve-se um “ploc” de um ouriço a cair no chão. Este ano há muitas castanhas. Olho de forma atenta e sistemática para o solo e percorro o perímetro de baixo do castanheiro, apanhando com cuidado as castanhas que já saíram dos ouriços. Mais uma vez faço comparação com mulheres grávidas de gémeos. São raros os ouriços que contém duas ou três castanhas do mesmo tamanho. Normalmente, há uma grande e uma ou duas mais pequenas. Por vezes são as três pequenas, raramente as três grandes. Umas saem facilmente dos ouriços, são partos fáceis, outras só com a ajuda das minhas mãos… Quando o cesto já está cheio, regresso a casa por um outro caminho, entre jovens faias que vieram da Suécia. De relance, avisto um velho pinheiro de natal que há muito plantei após ter servido de decoração festiva. Está maravilhoso! No caminho vou arrumando pinhas na berma, fazendo montinhos que depois virei buscar para acender as lareiras. Passo pela horta onde depenico um resto de morangos tardios. Como-os mesmo ali, um pouco mornos. Olho para a esquerda onde estão os marmeleiros carregados de frutos já prontos a apanhar. Amanhã farei marmelada e geleia. São velhos rituais que repito todos os anos, tal como minha mãe, tias e avós fizeram. Gosto das panelas grandes sobre o fogão de lenha, do cheiro das compotas a ferver, o odor a canela e a limão do doce de abóbora, de ver no fim aquele batalhão de frascos e malgas repletas de doces, de etiquetar, dar à família e aos amigos e armazenar. Tradição. Sou formiga, gosto de ver a minha dispensa cheia, preparada para o Inverno.
Também eu estou no Outono da minha vida e, felizmente, também tenho uma dispensa bem abastecida de família, amigos, afectos e bens, que acumulei com trabalho e persistência ao longo da minha Primavera e Verão. Tenho rugas, artrose, olhos muito cansados de tanto ler, cabelos brancos, mas uma consciência tranquila de dever cumprido. Sinto-me merecedora de tudo o que possuo. Sinto também gratidão por, até agora, ter tido saúde suficiente para trabalhar e investir na minha vida. Por ter tido uma família, filhos que aprenderam os ensinamentos que lhes demos, que trabalharam para possuir o que têm hoje, que prezam a família e que também são gratos. Grata por ter feito bons amigos ao longo de toda a minha vida. E por conservá-los. Grata por ter ainda pais, irmãos, tios, primos, sobrinhos, de que tanto gosto. Por isso, habitualmente, as rugas não me atormentam. Cada uma corresponde a algo que conquistei ou superei com esforço.
Mas há dias e dias. Por exemplo ontem, sábado, andei a fazer limpezas. Ainda sem tomar banho, de camisa de noite, chinelos e cabelo atado para não atrapalhar. No quarto há um espelho grande, corpo inteiro, por onde passei.
-Ui, que está a fazer aqui a tia Marina? – exclamei.
Dei um passo atrás e olhei melhor. Era eu! Igualzinha à minha tia!
Suspirei fundo e fui arrumar o roupeiro. Decidi dividi-lo em três secções: sim, talvez e nunca mais. O “nunca mais” foi muito difícil: há roupas que têm uma história – “a camisola que um dia guardou a minha alegria “ – e de que nos custa separar. Outras, embora nos custe admitir, em que nunca mais caberemos. Mas há que decidir largar, para continuar em frente. Tirei-as do roupeiro e meti em sacos. Primeiro arrumo e depois, feito o luto, ofereço a pessoas que nunca mais verei. É que pode doer-me ver aquela peça de que me desfiz, a brilhar num outro ser. É um sentimento feio mas muito humano.
Envelhecer custa. Ver envelhecer os outros também. Não são assim tantas as coisas boas que a idade nos traz. Mais juízo? Mas para quê o juízo numa altura em que até já não necessitamos muito dele? Mais tempo para nós? Sim, mais tempo para mim, mas menos tempo à minha frente. Algumas coisas que sonhei fazer ou ser são como as roupas em que nunca mais caberei: “nunca mais”.
Mas hoje já estou contente. Esqueci as roupas, esqueci os sonhos por realizar. Assei castanhas, tenho jeropiga e acendi a lareira só para ter o prazer de ouvir o fogo a crepitar. A Fly deita-se a meu lado no sofá, poisa a cabeça no meu colo e suspira de prazer.
– Os dióspiros estão melhores que nunca! – diz o meu pai com quase 91 anos, que está sentado à mesa.
Fico contente só de olhar para ele, já tão velhinho mas tão bonito, ainda autónomo e com prazer de viver.
E penso que tenho ainda a secção do “sim” e do “talvez” para aproveitar…..