As vozes são como os cheiros: atraem-nos ou repelem-nos.
Ao longo do tempo, tenho reparado que raras vezes me engano quando me baseio nestes dois princípios básicos na escolha das minhas preferências. Se o instinto não ajuda, é melhor recuar ou mudar de direção.
Hoje aconteceu-me uma coisa curiosa. Há anos que, quando peço ou recebo uma chamada da central telefónica do hospital, sou atendida frequentemente pela mesma telefonista. Numa dada altura começou a tratar-me por doutora Teresinha.
– Ah, é a doutora Teresinha? Está boa? Diga o que quer…
Um dia decidiu ir mais longe.
– Oh doutora Teresinha, gostava tanto de conhecê-la!
Achei graça aquilo. Imaginei uma senhora de meia idade por trás daquele telefone, cabelos encaracolados (com “mise”), saia de fazenda cinzenta abaixo do joelho, sapatos de meio tacão com meias de mousse cor de pele (só pelo joelho, compradas na mercearia), camisola castanha de angorá e casaco azul por cima. A completar, um colar de pérolas (falso), um lenço com flores ao pescoço, uns óculos de aros de massa anos oitenta, duas alianças no anelar esquerdo (já fez as bodas de prata), as mãos estragadas pelo “sonasol verde”. Uma mulher viva e calorosa, com seios grandes e ancas largas, rugas de muito riso e alguma dor ultrapassada.
Que bom poder conhecer alguém que já pensamos conhecer! Comparar a nossa fantasia com a realidade (ou o contrário?) sem o risco da desilusão. Apenas um jogo inocente.
Mas o tempo passava e continuava apenas a conhecer-lhe a voz e a imaginar-lhe a figura.
Hoje pedi nova chamada.
– Doutora Teresinha, está cá de urgência? Que bom! Daqui a um bocadinho vou sair…quer vir tomar um café comigo para nos conhecermos?
– Claro que sim! Onde nos encontramos? No bar?
Ficou combinado para dali a meia hora. Engraçado, estava nervosa. Penteei-me e pus um bocadinho de baton nos lábios. Tinha medo de desiludi-la.
Fui para o bar. Não me deu tempo de falar.
– Ah, afinal já a conhecia! Não a ligava à voz…
Eu também não. Uma cara grande e gorda sem rugas, sem idade. Uns olhos pequeninos azulados, cabelo de um castanho a lembrar-nos que foi loiro, sorridente, vestida aproximadamente como o imaginado. Mãe de dois filhos, um de vinte e três a terminar a faculdade, outro de catorze, ainda no liceu. Um marido a aproveitar o fim de semana a tratar da horta em Amarante (-Construímos lá uma casita….). Hoje deixou-se ficar mais uma horas para dar um jeito a um colega – o Costa- que sentiu uma pontada no coração (- Temos que ser uns prós outros, num acha senhora doutora? Uma mão lava a outra e as duas lavam a cara!).
– Conheço-vos as vozes a todos! O doutor Machado, coitadinho, andava tão triste quando lhe morreu a mulher! A doutora Umbelina, nervosa, nervosa, depois que o marido a deixou. A enfermeira Luísa, como lhe ficou a voz diferente quando o filho se meteu na droga… ah doutora Teresinha, a voz diz tudo. Eu sei-lhe dizer em dez minutos, não preciso de mais, se é boa ou má pessoa, se é nervosa ou calma, se o casamento funciona. Olhe, isto é uma “bucaçom”. “Beija” lá, num tenho estudos mas ouço uma voz e nunca mais a esqueço. Tenho este poder de “ficção”.
Apeteceu-me pedir-lhe para me ler “a sina” mas tive medo da verdade. Acreditei na “bucaçom”, a mulher sabia do ofício.
– Olhe senhora doutora, eu gosto muito do que faço. Já podia ir reformada, tenho trinta e seis anos de casa, mas não consigo largar isto.
A mulher falava, falava. Eu ouvia-a feliz. Sentia-me eleita por ela. Afinal, o que tem a minha voz? Lembrei-me das crianças afásicas que vi ultimamente na consulta. Com estes a dona Fernandinha não pode exercer a “bucaçom”. Apeteceu-me perguntar-lhe qual era a imagem do silêncio, mas decidi guardar para mim estes pensamentos circulares. Sinto-me é feliz por ter voz e ter conhecido a dona Fernandinha.