Ó menina/Ó menina/Ó menina. Na, na, na, na . Girando, girando, girando… Alunos do 3.º ano do curso de dança do Balleteatro reproduzem pregões a lembrar o ambiente das feiras, mexendo braços e pernas, com movimentos de dança contemporânea. Na sala de ensaio da Casa da Música (CdM), no Porto, cerca de 50 pessoas de etnia cigana de dois bairros de Matosinhos Biquinha e Seixo riem. À espera de vez para subir ao palco de Romani, Taissa de Sá Maia (Tay) dá o iogurte à filha, Shalom, 2 anos. Vem do Bairro do Seixo. Ao canto, Filipa Salazar, 19 anos, da Biquinha, dá de mamar à filha de sete meses. Faltam quatro ensaios para Romani chegar à sala Suggia e ao confronto com o público, no próximo dia 29, e o espetáculo “ainda não está cosido”. “Temos cenas soltas e vamos tentar uni-las”, lembra-lhes Isabel Barros, a diretora artística.
A preocupação de Lília Pinto, diretora técnica da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos (ADEIMA), financiadora do projeto, é outra: o receio de que nem todos apareçam nos últimos ensaios. Por isso, há uma folha a passar de mão em mão onde cada um deve escrever o nome. “Como se diz na etnia cigana, hoje vão ‘dar a palavra’. A partir de agora só faltam se trouxerem declaração médica”, diz Lília, ao microfone. Contas feitas, há 44 participantes das comunidades ciganas (30 do Seixo e 14 da Biquinha), entre os cinco e os 48 anos, que “deram a palavra”.
Em novembro, quando a CdM os desafiou a participarem no projeto Ao Alcance de Todos eram o dobro. Desistiram uns, apareceram outros, mantiveram-se alguns. “Inicialmente reagiram com desconfiança mas dissemos-lhes que era uma oportunidade de mostrarem a sua cultura e tradições”, conta Lurdes Queirós, vereadora da ação social de Matosinhos. Lília Pinto deseja que o projeto lhes permita “criar uma relação de maior confiança no terreno” onde, por exemplo, o abandono escolar continua a ser uma realidade difícil de combater. Jorge Prendas, coordenador do serviço educativo da Casa da Música, quer, sobretudo, que seja “uma grande festa cigana e de inclusão”.
A “falta de compromisso” tem sido um dos maiores desafios. Há dias, num dos ensaios no Bairro da Biquinha, um grupo de uns 15 elementos de etnia cigana, misturado com 11 técnicas de ação social, que também integram o espetáculo, ensaiava uns passos.
Um ritmado bater de pés, para a frente e para trás. “É cansativo isto”, suspirava Morgana Maia, 20 anos. “Cansam-se rápido, não estão habituados a ficar concentrados”, diz Lília Pinto. O ensaio previsto para durar toda a tarde acabaria interrompido. António Maria, o Tio Nabarro como é conhecido por ali, patriarca de muitas das famílias dos dois bairros, estava a ser operado no hospital e era preciso orar por ele. Foi o que bastou para, aos poucos, o grupo se desfazer. Restam Artur Santos, 43 anos, e meia dúzia de mulheres. Habituado a animar festas e casamentos, Artur dedilha a guitarra, como a vida lhe foi ensinando, e canta “Apanha os meus amigos e lá vou eu/ Amo-te, amo-te. Dá-me o teu amor…”. Música que há de acompanhar a dança cigana de encantamento entre José Maia (Gígio), 33 anos, e Lara Maia, 17. “É uma experiência nova. As pessoas começam a ver do que somos capazes, tá a ver?”, diz Gígio, cabelo espetado, estilo gingão.
Músicas do mundo e de Deus
Entre a comunidade dos dois bairros há diferenças.
A do Seixo veste-se de cores fortes, camisas vincadas, sapatos de cunha e salto alto, enfeita-se com pulseiras e colares brilhantes.
A Biquinha vai de chinelas, casaco de malha, camisola de algodão: são “os ciganos do mundo”. Os primeiros pertencem à Igreja Evangélica Filadélfia, praticam o Culto.
Os dois grupos não se juntam na maioria das atuações. “Somos seguidores de Cristo, não nos misturamos”, declara Graciano Cardoso, 31 anos, que, juntamente com a mulher Tay, 28, de longos cabelos louros, apenas cantará “para Deus” tal como acontece nas quatro sessões semanais do Culto e nos encontros que juntam milhares de fiéis.
Durante a construção de Romani, a equipa de produção foi obrigada a reunir com o pastor da Igreja para perceber se o seu “rebanho” poderia bater com os pés ou ecoar pregões.
Não podia. “Bater com o pé no chão é considerado profano”, explica Graciano, que já tem dois discos gravados com a mulher.
No passado domingo, 19, num dos últimos ensaios na Casa da Música, não escondia o nervosismo: “Enfrentar o público e as câmaras de televisão não vai ser fácil.” Mas “vale a pena”. O casal quer romper preconceitos e mostrar que “o cigano tem a sua cultura própria, oposta àquilo que as pessoas pensam “. E dá exemplos: “Não há casamento obrigatório. Só casa se gostar, se não gostar não casa. Nenhum pai casa uma filha com 12 anos! Isso é crime.” Quando Jorge Queijo, diretor musical, iniciou o projeto Romani estava à espera que “trouxessem mais repertório cigano”.
Mas a globalização chega a todo o lado.
“Esta comunidade é muito citadina, ouvem kizomba, rumba. Não sabem ler música, nem uma pauta, são músicos intuitivos.” A coreógrafa Isabel Barros tem trabalhado para que o espetáculo mostre “a alma cigana “: “Um projeto deste género tem que dar maior relevo ao que vem de lá do que ao que vem de cá.” E a timidez que encontrou no início entre os ciganos tem-se esbatido.
Talvez se deva aos 23 finalistas do curso de dança que com eles se misturam em palco.
No ensaio do último domingo, as diferenças entre os “ciganos do mundo” e “ciganos do Culto” já pouco se notavam. Maria da Conceição Salazar, 45 anos, não pára de sorrir. “Está a ser bué fixe”, diz. “Mãe, não deves falar assim. Deves dizer está a ser muito bom”, avisa o filho, Diogo, 12 anos.
Romani terminará em festa. Elas com vestidos compridos de cores fortes, eles de preto e branco. E com uma das músicas cantadas nos típicos casamentos ciganos, na voz de Conceição. Durante o ensaio, não controla as gargalhadas. “No dia do espetáculo não te podes rir, vê lá!”, avisam as amigas. E ela, mãe de quatro filhos, destemida na vida mas tímida no palco, sai da sala dançando e sorrindo.