Professora catedrática pela Faculdade de Direito de Lisboa e autora do Tratado de Direito do Trabalho, em três volumes. Maria do Rosário Ramalho defende que há ainda pontos de rigidez na legislação laboral, mas não em relação aos despedimentos.
O que mudou com a intervenção da Troika?
A contratação não foi muito mexida. Continua tudo pensado para os contratos de trabalho por tempo indeterminado.
Já nos despedimentos, houve mudanças.
Com o despedimento por inadaptação e com a descida do valor das indemnizações.
Foi a maior alteração no direito do Trabalho decorrente da intervenção da Troika?
Sim. Já não se pode dizer que o regime português é rígido. Aliás, as compensações por despedimento desceram brutalmente. Hoje, são 12 dias por cada ano de trabalho. É baixo. Somos menos compensados por despedimento do que a média dos europeus.
Flexibilizou-se para despedir. E para contratar?
A rigidez mantém-se na contratação coletiva e nas remunerações. Há pouca indexação à produtividade. A lei permite, mas as convenções coletivas não têm essa tradição. E quando a contratação coletiva não flexibiliza, aumentam os abusos.
Que abusos?
A lei prevê flexibilização dos contratos coletivos ou individuais no tempo laboral. Se a convenção coletiva não gerir a matéria, o trabalhador vai-se sujeitar a tudo porque não tem liberdade negocial. A maioria da população depende do trabalho para subsistir.
Quais são as principais diferenças entre contratação coletiva e individual?
O valor do acréscimo remuneratório por trabalho suplementar, as indemnizações por cessação de contrato, benefícios como planos de saúde. Resultam das contratações coletivas. É aquilo em que se deve apostar.
Mas critica a rigidez da contratação coletiva.
Sim. Devia ser reconhecida maturidade aos parceiros para, em situações menos favoráveis, poderem reduzir regalias.
Temos taxas de sindicalização baixas?
Sim, entre 20 a 30 por cento. Mas quem não é sindicalizado pode ser abrangidos pelo contrato colectivo.
É obrigatório abranger todos os trabalhadores pelos benefícios do contrato coletivo?
Não. É necessária uma portaria de extensão. Cria uniformidade, mas é uma perversão do sistema: é tentador não assumir a sindicalização e beneficiar do regime.
O que acontece quando não há acordo sobre alterações ao contrato coletivo?
Após 5 anos sem se renegociar uma contratação coletiva, ela caduca. Sujeitam-se ao Código do Trabalho. A Convenção Coletiva não é para toda a vida. Instituiu-se um mecanismo de caducidade, depois de se dar imensa hipótese de renegociação.
A crise provocou mais abusos laborais?
A possibilidade de mau uso das normas pelos empregadores, cresce. Há más práticas. Mas não há dados. Uma boa percentagem dos trabalhadores a quem não renovam os contratos são mulheres ou grávidas.
O desemprego também resulta daí?
O grande aumento do desemprego não decorre dos despedimentos. A principal causa é o fim de contratos a prazo. Depois é o fim do ciclo de estudos – o primeiro emprego – e só em terceiro lugar os despedimentos coletivos ou insolvências.
O desemprego decorre do receio de contratar?
Exactamente. Daí os contratos a termo. Mas é melhor um emprego precário do que emprego nenhum. Um trabalhador subordinado com um emprego precário tem protecção. Quem está a recibos verdes não tem, a não ser que vá a tribunal. Mas esse trabalhador, se puser uma ação, perde o emprego. É um entorce. Para favorecer os trabalhadores por tempo indeterminado, fecha-se tanto a porta que há um salto pela janela.
Flexibilizou-se o despedimento, mas não a contratação. Não é contraditório?
Foi uma opção. De resto, o nosso regime laboral é flexível. Em tempo de trabalho, até mais do que devia. Em relação ao local e à função também. Algumas regras de flexibilização do tempo de trabalho, como os bancos de horas, eram desnecessárias.
A crise levou à desvalorização do trabalho?
O trabalho é sempre um bem valioso. Mas a valorização do trabalho em Portugal é má. Não temos de competir com a Ásia.
O problema da competitividade está nos trabalhadores ou nos empregadores?
Os nossos empresários são tradicionais. Gostam do trabalhador extensivo, que passa muito tempo no emprego. Trabalha-se mais horas do que na Alemanha porque não se paga em função da produtividade, mas sim do tempo. Podiam combinar-se as duas variáveis. Não acho que os portugueses sejam menos produtivos, mas ganhar mal e passar demasiadas horas no trabalho não estimula. Lá fora somos mais produtivos.
Nos últimos três anos ouvimos várias vezes que é preciso baixar salários para sair da crise.
Pois ouvimos, mas mal. O trabalhador do século XXI não é o do fim do século XIX. Hoje está sujeito a pressões enormes. No filme de Chaplin, o capataz apitava quando o trabalhador olhava para o lado. Agora um telemóvel simpaticamente cedido pelo empregador pode tocar às 3 da manhã. A possibilidade de condutas invasivas à vida do trabalhador é muito superior.
O progresso nas condições laborais é ilusório?
É verdade nuns aspetos, mas noutros também é mais fácil pôr direitos em causa devido aos novos esquemas de controlo.
A tecnologia criou novas questões laborais?
Facilita a invasão de privacidade. Com um sujeito 8 horas por dia no mesmo sítio, a possibilidade de invasão é exponencial. Pode aceitar-se um telemóvel como instrumento de trabalho, mas deve desligar-se quando se vai para casa. A disponibilidade é a do tempo do contrato de trabalho. Não é total.
Mail e redes sociais dão origem a processos?
Os trabalhadores têm direito a mensagens de carácter pessoal e o empregador não pode aceder a esses mails. Não os pode usar contra o empregado. Mas o trabalhador também tem deveres. Um deles é o de lealdade e de respeito, mesmo fora do local de trabalho. Não pode usar esses meios para dizer mal da empresa.
A fronteira entre trabalho e vida privada está mais difusa?
A conciliação entre vida profissional e familiar nunca foi tão difícil. Os horários das crianças são os mesmos, os das mães é que não. O mercado de trabalho tornou-se muito competitivo e o modelo de contratação é masculino. Há empregadores a dizerem às trabalhadoras que não podem engravidar.
Reconhece-se o direito à mentira?
Sim. Podemos dizer que não queremos estar grávidas, querendo. O empregador não pode fazer a pergunta. A lei não permite. A outra parte tem o direito a dar a resposta mais adequada para evitar o efeito daquele ato ilícito. A pergunta é abusiva.
Fala-se dos trabalhadores como um peso. Isto altera o equilíbrio de forças?
O medo do desemprego leva a aceitar alterações do estatuto laboral que não se admitiriam numa conjuntura mais favorável. A nossa taxa de desemprego é estrutural: 50% estão sem trabalho há mais de um ano. Os trabalhadores não se salvaguardam tanto nos seus direitos. Querem é o emprego. Se muitos empresários não se valem disso para práticas menos éticas, outros haverá que abusam. São tempos difíceis.