Retive este trecho de uma conversa que ouvi na farmácia, enquanto esperava a minha vez, ainda os dias não celebravam, oficialmente, o Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e da Solidariedade entre Gerações. Frequentemente, confesso, vem-me à memória. O cenário e os rostos daqueles idosos, ali, à conversa, enquanto esperavam para comprarem a resma habitual de medicamentos. A farmácia, tal como as mercearias, os cafés e outros palcos, no caso, citadinos, são vida real a correr. Em direto, sem luz especial ou ajuste no som.
Todos sabemos disso e, mais ou menos atentos ao que nos rodeia, acontece que não podemos tapar os ouvidos, mesmo quando a conversa não é connosco. E, às vezes, aprendem-se lições. Lições anónimas aplicadas, aqui e ali, a situações bem familiares.
De certa forma, os anos europeus são catalisadores da ação. E deixam sementes, obra feita, projetos de continuidade. Não se têm ficado por logótipos e slogans. Com este, creio, não será diferente. A coordenadora nacional, Joaquina Madeira, é uma mulher de ação. Arregaça as mangas e “mete a mão na massa”. Já com Fernanda Freitas, no Ano Europeu do Voluntariado, foi igual. Não são mulheres de ficar a olhar para o cargo. Fazem e levam a fazer. Verdade seja dita. Adiante.
Este Ano Europeu quase dava dois. Eu explico: envelhecimento ativo e solidariedade entre gerações são temas tão vastos, tão importantes, tão atuais, tão pertinentes e de tão necessária abordagem que 365 dias me parece pouco para empreitada tão grande.
Por outro lado, é certo, também andam de mãos dadas. As notícias à volta destas matérias são bastantes. É natural. A Europa está envelhecida como nunca. Rugas, papos, barriga e pés de galinha. Uma tosse cavernosa, ultimamente. E até está um pouco desmemoriada. Às vezes, olhos postos nos menos fortes, temo que o Alzheimer a afete de vez e se esqueça de quem é, qual a sua matriz fundadora. E falo de valores, não de metal. Falo de união, não de cisma. Uma Europa cheia de idosos e sem crianças, com a esperança de vida a aumentar e as taxas de natalidade a cair a pique, com um Estado Social cada vez mais periclitante e a ter de ser reformulado, como tantas políticas económicas e sociais – urgentemente.
Mas, agora, vou tentar focar-me na solidariedade entre gerações. Bem sei que o principal objetivo deste Ano Europeu é a promoção das condições necessárias para um envelhecimento ativo, especialmente no que reporta ao emprego, à participação na sociedade e à manutenção de uma vida independente. E que, claro, pretende encorajar decisores e políticos a traçarem objetivos e a promoverem iniciativas nestas áreas. Mas, como disse, vou “à segunda parte” do Ano Europeu.
Já li por aí, “diálogo entre gerações ” em vez de “solidariedade entre gerações”. Um ou outro o importante é que aconteça. E que as gerações dialoguem e/ou se solidarizem. E se unam num combate que urge ser feito contra a solidão. E a favor dos afetos. E não é porque nos chegam, amiúde, cada vez mais casos de pessoas encontradas mortas, em suas casas, ao fim de dias e dias de abandono e esquecimento. Seja num apartamento em Paris ou no nosso país, é impossível não ficar indignado. Não é, ainda, porque a Câmara de Lisboa lançou uma campanha alertando para o facto de haver 85 mil idosos sozinhos na capital. No Porto, 33 mil pessoas com mais de 65 anos, vivem sós. E não é, também, porque os números do Instituto Nacional de Estatística quase arrefecem vontades: em 2011, mais de 1,2 milhões de idosos viviam sozinhos ou em companhia de outras pessoas com mais de 65 anos, representando cerca de 60 % da população idosa a viver nestas condições.
Na última década, os idosos a viver sós ou em companhia de outros idosos aumentou 28% , adiantam os Censos 2011. A população idosa, com 65 ou mais anos, residente em Portugal é de 2,023 milhões de pessoas, representando cerca de 19% da população total. Na última década, o número de idosos cresceu outros 19 por cento.
A objetividade dos números não deixa margem para “ses” nem “mas. É agir e pronto. Há cada vez mais velhinhos, idosos, seniores. Como entenderem e gostarem mais de lhes chamar. O problema é que estão sós e mesmo que, por hipótese e, até, por feitio, alguns lidem melhor com a solidão, a sociedade tem de dar resposta eficaz a este fenómeno. E quando digo solidão, não digo daquela, simpática e útil, que gera filosofia, mas da que gera angústia, tristeza, medo, depressão.
A fragmentação da família e os seus novos modelos, o crescimento das cidades, as alterações nas relações de vizinhança, a própria obrigação em relação ao outro, tudo isto e muito mais está sofrendo alterações constantes. São muitas as mutações sociais que nos obrigam a uma ação concertada, bem dirigida e, na atual conjuntura, muito mais criativa do que dispendiosa.
Principalmente, quando se trata de combater a solidão e fazer pontes entre os mais velhos e os mais novos. Começam a aparecer excelentes exemplos de projetos que promovem a intergeracionalidade. E era bom que aparecessem mais, não só dirigidos, por exemplo, a pessoas em situação de pobreza e exclusão social ou a incapacitados físicos, mas à população em geral.
A solidão não ataca os mais pobres, como se fosse um vírus a atacar o sistema imunitário mais fraco. Ataca, também, os que têm mobilidade, dinheiro e vontade de ir ao teatro, a um concerto, a uma biblioteca e não têm com quem. Os que querem ir ao restaurante, ao cinema, dar um simples passeio e, pura e simplesmente, não têm companhia. Interlocutor para uma conversa.
Li que a tendência atual é a de que as várias gerações dependam o mínimo umas das outras, estimulando a solidariedade entre elas. “No mundo ocidental, deixa de ser a obrigatoriedade, mas sim os vínculos afetivos estabelecidos, o que liga as pessoas.” Por isso, não é preciso saber fazer muito bem contas, para que fique claro que paralelamente às respostas da sociedade, nós temos de dar as nossas, individualmente. Começar por ter consciência, uma consciência prática, de que, em qualquer idade, devemos gerir o tempo de forma a privilegiar os afetos e a criar laços, é um passo positivo e difícil. Muito difícil, em determinadas fases da vida. Mas fundamental. É como investir num plano poupança reforma, ou noutro produto bancário. Só que muitíssimo mais importante.
Em vez de euros, depositamos tempo de qualidade, sorrisos, abraços muito apertados, cumplicidades de todas as espécies, silêncios acompanhados, aromas e sabores, gestos sentidos e outros mimos que fortalecem relações. Porque por muitas brigadas contra a solidão que se consigam mobilizar; por muitas iniciativas que se promovam e repliquem, como o exemplar programa Aconchego, dinamizado pela Fundação Porto Social; por muitos programas inovadores que se criem e mantenham; por muitos cuidadores que se formem e telemóveis que se ofereçam; por muitas infraestruturas que se ergam e manifestos que se escrevam, é preciso cultivar os afetos.
Porque – não é novidade nenhuma – “quem gosta cuida”. E, gostando de nós, entre família e amigos, a não ser por fatalidade, não nos deixam morrer sozinhos nem viver com esse medo, entalado no peito.