O vídeo não difere muito do quadro negro das salas de aula. Passo a passo, uma caneta virtual desenha os números e símbolos que ilustram a explicação sobre a tabuada da multiplicação, dada por uma melódica voz masculina. O discurso, simples e direto, é acompanhado atentamente pelos alunos do 4.º ano da escola básica da Bandeira, em Vila Nova de Gaia. Mesmo sem animações especiais, é apelativo q.b para os cativar. “Temos de chegar ao grande grupo. Há alunos com maiores dificuldades e, se insistirmos em explicar sempre da mesma maneira, os outros cansam-se”, diz Manuela Casais, uma das professoras.
Desde que, há seis anos, o estabelecimento de ensino instalou computadores e quadros interativos em todas as salas, os recursos virtuais são uma ferramenta utilizada quase diariamente. “Cada professor tem o seu método, mas as novas tecnologias ajudam a consolidar o que já foi ensinado”, defende Isabel Carvalho, docente há 34 anos. Mãe de David Azevedo o português que criou um canal de vídeos no YouTube chamado TV Ensino, não queria acreditar quando, ao entrar na sala de uma colega, ouviu a voz do seu filho. “Foi pura coincidência, não tinha feito publicidade. Mas fiquei toda orgulhosa quando, no final, os miúdos disseram: ‘Parabéns, professora! O seu filho explica muito bem!'” David Azevedo, 31 anos, professor de matemática a dar aulas na Suíça, começou a traduzir os vídeos da Academia Khan para português, no verão de 2010.
Editor do blogue Ensino Básico, tinha-se deixado fascinar pelo trabalho de Salman Khan e pelos vídeos educativos das mais diversas disciplinas matemática mas também economia, finanças, física, história, química… disponibilizados na internet. À sua imagem e semelhança, e com a devida autorização, criou o canal TV Ensino e colocou lá as primeiras lições de matemática. “Pareceu-me logo uma ideia extraordinária e uma oportunidade a aproveitar”, recorda o professor.
A sua intenção é colocar online o currículo completo do 1.º ao 9.º ano de escolaridade um trabalho a ser posteriormente incluído na videoteca Khan, ainda em 2012, anunciado como o ano de expansão para outras línguas, inclusive o português.
Uma sondagem improvisada na sala de aula, na escola de Gaia, indica que o projeto está no bom caminho: muitos daqueles miúdos recorrem a estas lições virtuais, tanto em casa como na escola. “Eu aprendo melhor com os vídeos, explicam tudo”, diz um. “Mas também tens de pensar, não é só ir ao computador”, rebate logo outro.
As professoras reforçam: “Usamos os vídeos como complemento, sempre interligados com aquilo que ensinamos.” O facto de os alunos aprenderem ao seu ritmo, repetindo o vídeo quando algo fica para trás, é valorizado por todos. “Hoje é mais difícil manter os miúdos concentrados e este é um bom recurso.” Na TV Ensino, as lições de matemática da Academia Khan estão em destaque.
“Os vídeos ajudam a desmistificar o bicho de sete cabeças associado à disciplina”, defende Manuela Casais. Quando constatou os erros sistemáticos nas respostas a uma pergunta de um teste, não hesitou em regressar à matéria através de uma aula virtual. “Assim não dizem que sou chata.” Em casa, os pais também agradecem esta ajuda extra. “Muitos querem acompanhar os filhos nos estudos, mas já esqueceram a matéria ou aprenderam através de métodos antigos. O site ajuda a ultrapassar essas dificuldades”, observa Isabel Carvalho.
Aspirando a um dia darem aulas como na academia de Salman Kahn porque, diga-se, ainda não exploram o software em toda a sua plenitude, as professoras acreditam: “Isto é o futuro do ensino.”
DA BOLSA PARA O YOUTUBE
Sim, tem o mesmo nome de um famoso ator de Bollywood, meca do cinema indiano.
Tem também cara de miúdo, apesar de muito rodado. Salman Khan, o homem de quem se fala, faz furor nos meios educativos desde que apresentou o seu método, durante as famosas conferências TED, há um ano. “A mais-valia destes vídeos é que podem ser vistos por quem quiser, em qualquer hora e em qualquer lugar.” As estatísticas da sua página em www.khanacademy.org garantem que dispõe de mais de 3 mil vídeos e tem mais de 3 milhões de visitas, contabilizadas em mais de mil acessos por dia.
A história destas lições digitais começa em 2004, ainda Salman era corretor na bolsa, vivia em Boston e dava explicações aos miúdos da família, quando ia a Nova Orleães. Nesse verão, acedeu a ajudar a sobrinha, Nadia, então aluna do 7.º ano, no seu trabalho de casa. Os sobrinhos mais novos, Arman e Ali, seguiram o exemplo de Nadia. Como estava longe, Salman começou a postar os vídeos online.
“A partir daí, os miúdos passaram a gostar mais de me ouvir no YouTube do que em pessoa”, lembra.
O primeiro post data de 16 de novembro de 2006. Seguiram-se outros, à velocidade das dúvidas dos sobrinhos. Em breve, descobriria que muitos outros estudantes também assistiam. E não eram só crianças. “De repente, estava a fazer algo de cariz social!”, exclama, perante a dita plateia TED, completamente extasiada.
“E como era uma experiência interativa, tentei que também fosse divertida.” Os holofotes não tardaram a acender–se sobre ele. Um nome a fixar, considerou logo a revista Forbes. O melhor professor do mundo, classificou Bill Gates: “Morro de inveja dele! Não consigo ensinar os meus filhos, Jennifer e Rory, como ele o faz”, confessou o patrão da Microsoft à Fortune, antes de doar 1,5 milhões de dólares à Academia Khan.
Nascido e criado em Nova Orleães, filho de imigrantes da Índia e do Bangladesh, Salman foi, durante muito tempo, uma estrela académica. Além do mestrado em administração tirado em Harvard, tem três cursos do MIT: Matemática, Engenharia Eletrónica e Ciências da Computação. Deu aulas à sua turma, no mesmo Instituto de Tecnologia do Massachusetts, e foi professor voluntário de crianças desfavorecidas, em Brooklyn.
Da sua história de vida, consta ainda o desenvolvimento de um software para ensinar miúdos com défice de atenção.
Enfim, um talento nato.
Os vídeos tornaram-se tão populares que, em setembro de 2009, Salman deixou o emprego na bolsa para fundar a Academia Khan, ao estilo da que o filósofo grego Platão criou em Atenas, em 385 a.C.: não fornece nenhum diploma nem cobra propinas aos estudantes. Quem frequenta a sua academia fá-lo por gosto.
“Troquei o mercado financeiro pela educação, porque descobri que as aulas me divertiam e me desafiavam intelectualmente como nenhum outro emprego em Sillicon Valley. Vi que tinha jeito, quando os meus seguidores se multiplicaram na internet”, disse recentemente, em entrevista à revista Veja. A partir daí, foi gravar, gravar, gravar, até um máximo de dez vídeos por dia.
ADMIRÁVEL MÉTODO NOVO
O objetivo, afirma Sal como é conhecido entre os amigos, será formar uma sala de aula do tamanho do mundo, e não faltam professores e explicadores a ficarem-lhe agradecidos. Nas primeiras experiências, os alunos viam os vídeos na aula e faziam logo os trabalhos de casa.
Depois, as lições passaram a ser estudadas em casa e os exercícios feitos na escola.
Aquele que é hoje o site educacional mais popular do mundo fez com que a tecnologia aliada à educação se tornasse mais humanizada.
São mais de 3 mil vídeos. Duram pouco mais de dez minutos, apresentam exercícios que permitem testar os conhecimentos adquiridos em cada lição e tudo isto numa linguagem muito próxima do videojogo.
Além disso, a Academia Khan oferece um software que serve de professor, ou seja, que dá a pais, professores e educadores a possibilidade de acompanharem o desempenho dos alunos, com a ajuda de gráficos, que identificam quem está com dificuldades e em quê. Simples e em tom de conversa, o rosto de Khan nunca aparece e os espectadores apenas veem os esquemas e diagramas, passo a passo, num quadro negro eletrónico.
O melhor? Cada aluno só avança para o nível seguinte depois de “passar” no anterior.
A escola norte-americana de Los Altos foi a primeira a render-se a este admirável novo método de ensinar mas como se viu no início destas linhas, o sistema poderá ter seguidores em lugares tão insuspeitos como Vila Nova de Gaia.
A comprovar este reconhecimento global, a Google atribuiu-lhe o prémio Ideias para mudar o mundo. É caso para perguntar: e as outras escolas, do que estão à espera?
Os vídeos traduzidos podem ser vistos no canal www.youtube.com/tvensino
Três perguntas a…
Bilal Musharraf : ‘Queremos chegar às dez línguas mais faladas do mundo, em 2012’
Hoje com 40 anos, o filho mais velho de Perez Musharraf, ex-Presidente do Paquistão, começou a traduzir os vídeos para uma empresa privada de educação. Apresentou-se a Salman durante um evento em que este mostrava o seu trabalho. “Foi quando ele me desafiou para fazer a tradução para mais línguas”, conta, ao telefone, a partir do seu escritório em Sillicon Valley.
Como explica todo este sucesso?
O paradigma tradicional estabelece que todos aprendem ao mesmo tempo, uma pessoa dá aulas para uma turma inteira, todos no mesmo nível. Tal ideia, vê-se agora, está errada. A mais-valia desta plataforma é permitir que cada aluno avance ao seu ritmo e sem prejudicar outros. As pessoas veem que, afinal, é possível introduzir qualidade na educação com a ajuda da tecnologia.
O professor pode aproveitar melhor o tempo que passa com o aluno e não precisa de estar sempre a repetir o mesmo. Para isso, está lá o vídeo.
Acredita que pode mudar a forma como ensinamos?
Esperamos que sim. Ainda estamos numa fase muito inicial mas já trabalhamos com alguns professores para ver como o método se adapta à sala de aula e os resultados estão a ser extraordinários.
O melhor é que mesmo nos sítios onde não há internet, é possível usar estes vídeos, seja a fazer download ou a usar os DVD. Como somos uma organização sem fins lucrativos, todos os podem usar.
E já estão a ser traduzidos?
A prioridade é chegar às dez línguas mais faladas, durante 2012. Alguns terão legendas, outros serão dobrados, de preferência. Estamos a trabalhar com organizações independentes que fazem a tradução neste momento, a brasileira Fundação Lehman conduz o processo da língua portuguesa. Mas é um projeto aberto.
Qualquer um pode voluntariar-se para ajudar.