Para começar, imaginemos uma tarde de verão de 1485 no campo.
Um silêncio como já não há, uma nitidez de recortes hoje difícil de conceber, alguma frescura visível no movimento das ramagens. Levanta-se então do poente uma nuvem de pó. Aproxima-se o séquito da rainha D. Leonor de Avis (também chamada de Lencastre e de Viseu) homens montados em cavalos ricamente ajaezados e damas transportadas em liteiras. O conjunto forma uma mancha de cor.
A esposa e prima de D. João II viaja com luzida escolta entre Óbidos e a Batalha, espreitando a paisagem pela janelinha. De repente, prende-lhe a atenção um quadro insólito. Alguns desgraçados pobres de Cristo como a esmagadora maioria do milhão de portugueses que constitui a população tomam banho numa nascente de água fumegante e parecem sorrir de prazer. D. Leonor chama uma aia, manda parar a comitiva e informa-se do que se passa. Alguém lhe explica que aqueles homens e mulheres do povo são doentes de “frialdades” que nas águas quentes encontram consolo para o seu mal.
Logo ali a rainha, muito dada ao que hoje designamos por causas sociais, resolve melhorar as condições de utilização das tais águas quentes. Daí a poucos anos erguia-se no sítio um hospital. O local ermo onde Leonor de Avis deparara com o espetáculo insólito do banho dos pobres é o mesmo onde hoje se ergue ainda o Hospital Termal das Caldas da Rainha.
A Rainha é ela. As Caldas são as nascentes de água quente. A cidade que hoje conhecemos nasceu assim.
Para baixo todos os santos ajudam
Os hospitais, naquele tempo, não passavam de albergues dos pobres (doentes ou não), onde lhes era disponibilizada uma enxerga, uma bilha de água e uma côdea.
Jamais passaria pela cabeça de um rico pedir abrigo ao teto de um hospital. Os poderosos morriam em casa, rodeados de intrigas familiares e de orações.
Alguns anos depois da cena do banho das Caldas, em 1492, a rainha desempenharia papel ativo na fundação do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, que ocupava o quarteirão oriental do Rossio.
Arruinado pelo terramoto e pelos incêndios de 1 de novembro 1755 (ironicamente, no próprio Dia de Todos os Santos), os seus serviços seriam “provisoriamente” transferidos para o edifício do Colégio de Santo Antão, confiscado aos Jesuítas, onde ainda hoje permanecem: é o Hospital de S. José. O esprital inaugurado por D. João II seria ao tempo considerado o melhor da Europa, superior até ao do Espírito Santo, em Roma. E D. Leonor, a Rainha das Caldas, era a “alma” do grande hospício, enquanto inspiradora das ações do marido e primo no campo social.
Para condizer com o cognome de D. João II, o Príncipe Perfeito, há quem chame a D. Leonor Princesa Perfeitíssima. Dir-se–ia estarmos perante um casal perfeito, o que não é verdade. A rainha e o rei davam-se muito mal. Ambos eram netos de D. Duarte, bisnetos de D. João I e da inglesa Filipa de Lencastre, e normalmente a família é uma coisa e a atração amorosa outra (pelo menos a pulsão que hoje entendemos ser requisito de um casamento).
Não que, ao tempo, esse sentimento fosse chamado para esta área, mas num consórcio o mínimo requerido é uma base de entendimento e se esta existiu entre os primos sobretudo quando eram jovens e brincavam na corte, viria a perder-se depois da morte trágica do único filho de ambos, Afonso.
Luto e sangue na corte
O herdeiro do trono e marido da infanta espanhola Isabel de Aragão, filha dos Reis Católicos, caíra do cavalo e fora espezinhado pelos cascos do animal durante uma correria estouvada na margem do Tejo, em Almeirim, numa tarde de julho de 1491.
Pelo casamento, estava destinado a governar um dia sobre toda a Península Ibérica e a escrever por linhas diferentes das que conhecemos a história da “jangada de pedra “. Assim não o quis o acaso, e o desastre aconteceu enquanto o pai se banhava no rio para iludir, por receita médica, os males de que padecia e que provavelmente se deveriam às doses de veneno que mão desconhecida lhe ia administrando.
D. João II iniciaria então junto da Santa Sé uma desesperada (e mal sucedida) campanha destinada a tentar legitimar o bastardo D. Jorge, que tivera de uma dama da corte chamada Ana de Mendonça.
D. Leonor opôs-se sempre a este plano com uma firmeza de aço, quer para castigar os amores adúlteros do marido quer para oferecer o trono ao seu próprio irmão, duque de Beja e futuro D. Manuel I. Sabemos que este, apelidado de O Venturoso, teve uma sorte única ao ver-se elevado ao topo da hierarquia na época da maior grandeza de Portugal, fruto do trabalho do cunhado. D. João II delineara o bem sucedido plano de atingir por mar a Índia das riquezas e tivera artes de repartir o mundo com a Espanha, através do Tratado de Tordesilhas (o que levaria depois o rei francês Francisco I a pedir que lhe mostrassem o testamento de Adão).
Antes, correra já bastante sangue nos recantos do paço, quando o Príncipe Perfeito apunhalara com as suas próprias mãos o irmão da mulher e seu primo, duque de Viseu e Beja, e mandara julgar e executar outro cunhado, este duque de Bragança.
Ambos fidalgos poderosos, conspiravam contra o poder da Coroa, esse Estado com E grande que D. João II fizera questão de erguer para proteger o povo, de acordo com as correntes de pensamento mais progressistas da época. Num tempo de venenos e punhais, D. Leonor parecera no entanto aceitar pacificamente estas iniciativas sangrentas do marido o rei português que Isabel de Castela tanto admirava e a quem chamava exclamativamente El Hombre. Mas a passividade da rainha, como vimos, não se repetiria ao ser-lhe pedido que aceitasse os direitos sucessórios do bastardo do marido. Uma mulher não é de ferro…
Esta parecia de ouro. Chegaram-nos retratos dela, e sabemos que era loura e tinha a pele muito branca. Há cem anos, Malhoa idealizou-a num quadro como uma mulher de grande beleza irradiando um magnetismo dourado. Em viúva, quando adotou o hábito de freira, a sua face clara e redonda fazia lembrar o Sol a espreitar entre nuvens. E foi nesta época da vida, quando habitava no Convento da Madre de Deus, que fundou a Misericórdia.
A primeira pedra
A ideia de criar de raiz uma instituição filantrópica, embora a muitos títulos pioneira, não era inteiramente nova. Existiam instituições semelhantes em Itália e em França e o espírito não diferia muito da “ação social” das ordens religiosas, com cujas práticas a Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia viria a identificar-se. Parece que quem lhe soprou a sugestão foi o seu confessor, o espanhol Miguel Contreiras, frade da Ordem da Trindade, uma figura algo exótica e muito popular na Lisboa da viragem do século XV para o XVI. Frei Miguel terá chegado a Portugal já a caminho dos 60 anos. Percorria as ruas da capital acompanhado de um servo anão e de um burro, recolhendo donativos para os pobres, os presos, as viúvas e os órfãos. Excelente orador, pregava na Sé, arrastando multidões para o ouvirem.
Foi aliás nesse templo que se fundou a Misericórdia. D. Manuel I, que já reinava desde a morte do cunhado, encontrava-se em Espanha nesse mês de agosto de 1498, cabendo a D. Leonor, já conhecida por “Rainha Velha”, exercer a regência. A confraria foi então fundada pela regente na capela de Nossa Senhora da Piedade da Terra Solta, junto do claustro onde todas as noites Frei Miguel Contreiras retirava dos alforges do burro o produto das esmolas do dia e, com a ajuda do anão, o repartia por diferentes sacos, antes de ir ele próprio fazer a entrega dos donativos em casebres e cadeias. De entre os outros fundadores da irmandade conhecemos os nomes de João Rodrigues Ronca, do flamengo Contim do Poço (ou do Paço), do fabricante e vendedor de obras de cera João Rodrigues e do livreiro Gonçalo Fernandes.
Mais tarde, em 1534, a sede da instituição seria transferida para a igreja da Conceição Velha, na atual Rua da Alfândega, mandada construir pelo Venturoso no característico estilo arquitetónico que ficaria conhecido pelo seu nome (Manuelino).
A obra da Misericórdia não se confinou porém a Lisboa: em breve eram ratificados estatutos aplicáveis a outras zonas do País, e nasciam por toda a parte misericórdias locais. O movimento cedo se estendeu também às colónias, com destaque para o Brasil, onde ainda hoje continua pujante este modelo assistencial.
O outro FMI
Em 1552, a confraria contava em Lisboa três centenas de irmãos, recebendo um,a “renda”, 60 mil cruzados, aplicada, no dizer de um contemporâneo, em “casar órfãs, tirar cativos, curar pobres e dar de comer a muitos”. Por “tirar cativos” entenda-se pagar resgates aos mouros do Norte de África para que soltassem os seus prisioneiros de guerra.
Uma ação de grande alcance quer higiénico quer ético da Misericórdia, de Frei Miguel Contreiras e da “Rainha Velha” foi a criação do Poço dos Negros, na rua lisboeta que mantém este nome, destinado a recolher os cadáveres dos africanos que permaneciam insepultos. Em 1627, durante a ligação de Portugal à coroa espanhola, Filipe II mandou que as bandeiras das diversas misericórdias tivessem inscritas as iniciais FMI, que significavam não aquilo que passou num relâmpago pala cabeça do leitor, mas sim “Frei Miguel Instituidor”. Afinal, outra forma de financiar, que dava a quem necessitava, em vez de retirar…
Mais tarde, a instituição passaria também a prestar assistência aos “expostos”, os recém-nascidos abandonados pelos pais sobre uma grande roda de madeira.
À Câmara de Lisboa cabia contribuir para a alimentação dos enjeitados, mas como normalmente se atrasasse nos pagamentos, D. João IV, já depois da Restauração da independência, pressionou os vereadores, ao mesmo tempo que criava a Mesa dos Enjeitados. A irmandade alimentava, ao mesmo tempo, muitos dos detidos nas cadeias públicas, chamados por isso “presos da Misericórdia”.
Passaram mais gerações. Já depois do terramoto, em 1768, a sede da já então chamada Santa Casa, em Lisboa, mudouse para onde hoje se encontra, na Casa Professa da São Roque, anexa à igreja do mesmo nome. E foi pouco depois dessa mudança que, para angariar fundos, um
responsável se lembrou de lançar uma lotaria anual. A ideia haveria de frutificar na criação, já em meados do século XX, de variados jogos de apostas mútuas, a começar no Totobola e a acabar no moderno Euromilhões, passando pelo Totoloto, pelo Joker e pela eterna lotaria setecentista, agora chamada “clássica”.
Com a mudança das mentalidades que se seguiu à Revolução Francesa e ao advento do regime liberal, deixou de existir a irmandade e foi nomeada uma comissão administrativa para gerir a Santa Casa.
Outras formas de gestão se seguiriam, já sem a componente religiosa da origem, que subsiste todavia no nome. Desde o início do regime parlamentar, na década de 1830, que as principais fontes de receita da Santa Casa, a utilizar em iniciativas de alcance social, consistem em aplicações financeiras e doações, além, é claro, dos jogos coletivos de azar.
Esta ideia não teria passado pelas cabeças de D. Leonor de Avis, de Frei Miguel Contreiras e dos restantes fundadores.
Mas o tempo é uma roda que não para de girar, como a dos expostos. A propósito, leitor, já entregou o Euromilhões?…