O sono é um pilar essencial para a saúde e bem-estar. Por isso mesmo, e porque é recorrente acontecer a privação do sono, o livro “Acabe com as noites em branco”, do especialista do sono Tiago Sá, promete ser um guia prático com 25 dicas fundamentais para dormir melhor.
Para que seja possível tratar o seu problema das noites mal dormidas é preciso que se compreenda a condição que tem, e por isso, existem seis distúrbios do sono que é importante conhecer e identificar.
ACABE COM AS NOITES EM BRANCO
Insónia

A insónia é o distúrbio do sono mais frequente no adulto. Podemos definir insónia como uma dificuldade persistente em adormecer, manter o sono ou obter a qualidade de sono desejada. No entanto, para a definição estar completa, é essencial que às queixas se associem sintomas diurnos como, por exemplo, fadiga, sonolência ou irritabilidade. E que tudo isto ocorra apesar de uma adequada oportunidade de sono em condições favoráveis.
Quando os sintomas de insónia ocorrem pelo menos três vezes por semana, durante um período igual ou superior a três meses, podemos definir este distúrbio como uma insónia crónica. A prevalência estimada de insónia crónica na população é de 10%. A ocorrência transitória destes sintomas é significativamente mais frequente, estimando-se que afete até 35% da população!!
Quem sofre de insónia refere, habitualmente, dificuldade em iniciar o sono (insónia inicial). Outra queixa igualmente perturbadora é a dificuldade em manter o sono (insónia de manutenção). Estas queixas podem ocorrer em simultâneo. É possível que os sintomas de insónia apareçam espontaneamente. No entanto, é frequente a sua associação a eventos de vida traumáticos, como o fim de um relacionamento ou o luto de um familiar. Períodos de stress relacionados com obrigações académicas ou laborais e ainda alterações significativas no horário de sono habitual também estão frequentemente ligados ao início das queixas de insónia.
Quando estas queixas não são atempadamente diagnosticadas e tratadas, podem persistir no tempo. Como foi referido no capítulo anterior, é frequente que se estabeleça uma associação negativa entre insónia, fadiga e apreensão relativa à dificuldade em dormir, o que pode agravar este distúrbio.
É fundamental intervir precocemente uma vez que aproximadamente 70% das pessoas referem a manutenção das queixas ao fim de um ano e 50% após três anos.
As queixas de insónia podem estar relacionadas com outras patologias médicas e psiquiátricas. Distúrbios do sono como a síndrome de pernas inquietas ou a apneia obstrutiva do sono, que iremos abordar neste capítulo, são causas frequentes de insónia inicial ou de manutenção. Outras condições como a dor crónica, o refluxo gastroesofágico e os distúrbios de ansiedade e depressão estão também frequentemente associadas às queixas de insónia. Felizmente, todas estas condições podem ser diagnosticadas e tratadas com resultados positivos na resolução da insónia.
Importa destacar que a abordagem específica da insónia não deve ser baseada em intervenções farmacológicas. O consumo de fármacos ansiolíticos, hipnóticos e sedativos é preocupante no nosso país e um pouco por todo o mundo. Estes fármacos são frequentemente prescritos no contexto de insónia, no entanto, a primeira linha de tratamento da insónia deve ser a terapia cognitivo-comportamental. Algumas dicas apresentadas no capítulo anterior são baseadas neste tipo de intervenção e, em muitos casos, a sua adoção terá resultados extremamente positivos. Apesar disso, este livro não pretende substituir nem atrasar a avaliação de qualquer distúrbio do sono por profissionais competentes. O diagnóstico e tratamento de patologias associadas à insónia, intervenções estruturadas de terapia cognitivo-comportamental para insónia e ainda o recurso a eventuais intervenções farmacológicas devem ser realizados por profissionais capacitados para o efeito. Assim, a probabilidade de sucesso na resolução da insónia será certamente muito superior.
Natural short-sleeper
Este tema já foi abordado noutro capítulo deste livro. Ainda assim, considero importante relembrar que a necessidade de sono diário apresenta uma significativa variabilidade individual. Alguns indivíduos dormem regularmente menos de seis horas por dia, sem que sofram os habituais efeitos da privação de sono ou apresentem quaisquer queixas relacionadas com este. São inclusivamente conhecidas mutações genéticas que se associam a este comportamento peculiar.
Não é fácil distinguir estes indivíduos de outros em privação de sono, mas alguns detalhes podem ser úteis.
Apesar de a real prevalência ser desconhecida, é consensual, na comunidade científica, a raridade dos natural short-sleepers, enquanto a privação de sono é um problema de saúde pública global. Portanto, a probabilidade de alguém dormir menos de seis horas e estar em privação de sono é francamente maior do que ser um natural short-sleeper. Ao contrário de alguém em privação de sono, estes indivíduos não conseguem dormir mais, mesmo que tenham oportunidade para isso. Assim, durante as férias ou em dias não laborais, são incapazes de prolongar o sono por mais uma hora, normalmente tão apetecível ao comum dos mortais.
Este padrão de sono ocorre naturalmente desde a infância, a adolescência ou nos primeiros anos da vida adulta, sendo muito menos provável que se instale mais tarde.
Na minha atividade clínica, já me deparei com casos destes. Alguns indivíduos estavam medicados com o objetivo de aumentar o seu tempo total de sono, sem benefício algum e sujeitos a efeitos indesejados dos fármacos.
Reconhecer as necessidades de sono individuais é fundamental para conseguir obter um sono saudável e reparador. Na maior parte das vezes, a quantidade de sono recomendada pelas sociedades internacionais é a ideal, mas é importante estar alerta para alguns casos de exceção.
Distúrbios respiratórios do sono
Respirar é bastante mais complexo do que encher os pulmões de ar e deitá-lo fora – a isto chamamos ventilar. Respirar é o processo que permite ao oxigénio presente no ar ambiente chegar a todas as células do nosso corpo, que o utilizam para produzir energia. Ao fazê-lo, as células libertam dióxido de carbono, que posteriormente é removido da circulação através do ar exalado pelos pulmões.
Por isso, respirar é essencial em todos os momentos da nossa vida, estejamos acordados ou a dormir. Este processo é minuciosamente controlado pelo centro respiratório, localizado no tronco cerebral (figura l).
Qualquer limitação ao normal funcionamento da respiração durante o sono pode resultar em distúrbios respiratórios do sono, de maior ou menor gravidade.
Apneia obstrutiva do sono
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é caracterizada por episódios de obstrução completa ou parcial das vias aéreas superiores (cavidade nasal, faringe e laringe), condicionando períodos de redução ou total ausência de ventilação durante o sono.
Como o leitor sabe, quando adormecemos ocorre um relaxamento progressivo dos músculos do nosso corpo. A função de alguns destes músculos é manter a permeabilidade das vias aéreas superiores, garantindo a entrada e saída de ar dos nossos pulmões. Quando este mecanismo falha e a nossa via aérea encerra, a passagem do ar é interrompida e ocorre uma apneia. Quando esta obstrução é parcial, dificultando a passagem do ar mas, ainda assim, não a interrompe, ocorre uma hipopneia.
Por definição, tanto as apneias como as hipopneias têm uma duração mínima de 10 segundos, mas é possível que durem um minuto ou mesmo mais. Estas associam-se, frequentemente, a reduções da quantidade de oxigénio no sangue e a breves despertares, sendo a ocorrência de um deles, essencial para a classificação de uma hipopneia.
O número de apneias e hipopneias (eventos respiratórios) por hora de sono permite classificar a gravidade desta doença. A ocorrência de menos do que cinco eventos respiratórios por hora de sono é normal. Registar 30 ou mais eventos por hora caracteriza uma apneia obstrutiva do sono grave.
Diagnosticar doentes com 60 ou mais eventos por hora de sono, ou seja, um a cada minuto, não é assim tão raro. Tal como observar valores de oxigénio extremamente baixos durante o sono.
Após um evento respiratório, com o retomar da ventilação, habitualmente verifica-se a recuperação da quantidade de oxigénio no sangue. No entanto, eventos mais prolongados ou frequentes podem resultar numa oxigenação insuficiente por longos períodos de tempo.
Existe uma outra alteração respiratória que habitualmente não está associado a quedas da oxigenação sanguínea, mas apenas a despertares. Por vezes, na presença de uma limitação ao fluxo aéreo, o esforço dos músculos respiratórios aumenta, garantindo assim uma ventilação adequada. Este aumento do esforço respiratório pode condicionar um microdespertar. Nestas condições estamos na presença de um despertar associado ao esforço respiratório designado RERA (respiratory effort related arousal).
Todos estes eventos respiratórios podem ocorrer em qualquer fase do sono. Quando ocorrem durante o sono não-REM superficial (N1), habitualmente no início da noite, podem condicionar a entrada no sono e ser causa de insónia inicial. Durante a segunda metade da noite, se ocorrer um despertar associado a um evento respiratório, pode ser bastante mais difícil voltar a adormecer, suscitando queixas de insónia de manutenção. Os eventos respiratórios recorrentes dificultam ainda a entrada em sono profundo, condicionando gravemente a qualidade do sono.
Assim, é frequente os doentes com AOS referirem sonolência diurna excessiva, fadiga e outros sintomas habitualmente associados ao sono insuficiente. Existe ainda robusta evidência da associação entre a AOS e doença cardiovascular, nomeadamente hipertensão arterial, acidente vascular cerebral, arritmias cardíacas e até enfarte agudo do miocárdio. E existe também uma forte associação com outras patologias como a disfunção erétil e a diabetes mellitus tipo 2. Várias sociedades médicas têm inclusivamente aconselhado o rastreio de AOS aquando do diagnóstico destas doenças.
Apesar da sua gravidade, a AOS não é uma doença rara. Na verdade, é estimado que cerca de mil milhões de adultos, com idades entre os 30 e os 69 anos, sofram de AOS no mundo. Em Portugal, estima-se que 17% desta população possa sofrer de AOS. Infelizmente é estimado que a grande maioria dos doentes (85%) não esteja ainda diagnosticada.
Existem alguns fatores que podem justificar a elevada prevalência desta doença, sendo o principal o excesso de peso. Aproximadamente 60% dos casos mais graves de AOS estão associados a este fator. No entanto, o excesso de peso não é obrigatório para que esta doença ocorra. À medida que envelhecemos, os nossos músculos sofrem alterações estruturais que facilitam o colapso da via aérea. Por isso, a prevalência de apneia do sono é crescente à medida que a idade avança. Alterações anatómicas, como a hipertrofia das amígdalas (figura o)

ou a posição recuada do maxilar inferior (retrognatia, figura p), condicionam a redução do calibre da via aérea, aumentando significativamente o risco de AOS.

Apesar de uma maior frequência na idade adulta, a AOS pode ser diagnosticada na infância, sendo a hipertrofia amigdaliana a causa mais frequente.
Ressonar, o ruído produzido pela vibração de estruturas da via aérea superior, quando esta se encontra parcialmente encerrada, é um sintoma cardinal da AOS. Não quer isto dizer que toda a gente que ressona sofre de AOS, mas este é um dos sinais de alerta.
O diagnóstico de AOS implica a realização de um estudo poligráfico do sono, realizado no domicílio ou em laboratório de acordo com indicação médica. São várias as razões que levam os médicos a solicitar este exame.
Uma característica interessante – o tamanho da circunferência do pescoço – pode ajudar a decidir a sua necessidade. Existe uma forte relação entre o tamanho da circunferência do pescoço e a AOS, sendo maior o risco desta doença quanto maior for a circunferência do pescoço. Mas a partir de que tamanho este risco é significativo? É natural que alguém com 1,80 m tenha uma circunferência do pescoço maior do que alguém com 1,50 m. Por isso, a definição de um valor absoluto que confira risco para AOS não é fácil. Um grupo de investigadores norte americanos desenvolveu um teste simples com o objetivo de tentar ultrapassar esta dificuldade, chamado easy sleep apnea predictor (ESAP). Este teste consiste na tentativa de envolver o pescoço com as mãos, colocando os polegares na face anterior do pescoço e os restantes dedos na face posterior (figura q). Se isto não for possível, como no caso da figura q, o teste é positivo.

Um dos trabalhos que desenvolvi durante o meu internato médico, no hospital onde trabalhava, foi precisamente a aplicação deste teste, ao longo de um ano, a todos os indivíduos que realizaram um registo poligráfico do sono em ambulatório. Um teste ESAP positivo conferiu 88% de probabilidade de obter um diagnóstico de AOS nesta população. A aplicação desta ferramenta noutros contextos tem ainda que ser estudada, mas aparentemente pode ser extremamente útil para ajudar a definir a pertinência de realizar um estudo do sono.
Felizmente, hoje dispomos de excelentes opções para o tratamento da AOS.
A ventilação com pressão positiva contínua é o tratamento de eleição na maioria dos doentes com apneia do sono. Consiste em oferecer um fluxo de ar contínuo, gerado por um ventilador de pequenas dimensões, através de uma máscara, com o objetivo de manter as vias respiratórias permeáveis durante o sono (figura r).

Desde a invenção desta terapia, em 1980, ocorreu uma evolução notável dos equipamentos e máscaras disponíveis. Hoje existem opções extraordinariamente eficazes, silenciosas e confortáveis, que permitem um aumento significativo da adesão a esta terapia.
Outra opção de uso crescente são os dispositivos de avanço mandibular. Estes dispositivos são desenhados à medida de cada doente para serem usados durante o sono. Modificam a posição da mandíbula, base da língua e outras estuturas de suporte das vias aéreas superiores, evitando a redução do seu calibre e os consequentes eventos respiratórios (figura s).

Existem ainda outras opções terapêuticas, como a terapia posicional, que visa evitar a posição de barriga para cima durante o sono, e até mesmo algumas intervenções cirúrgicas.
A escolha do tratamento mais adequado a cada doente em particular é fundamental para obter os melhores resultados. É importante que esta escolha seja feita por médicos com experiência nesta área, idealmente integrados numa equipa multidisciplinar, composta por médicos de diferentes especialidades e por outros profissionais de saúde.
Tenho o privilégio de acompanhar um número considerável de doentes com este distúrbio do sono. Muitos deles de elevada gravidade e complexidade. Hoje é possível tratar um doente com uma apneia obstrutiva do sono grave e evitar a ocorrência de centenas de eventos respiratórios por noite com sucesso. Ouvir os relatos de cada um acerca dos benefícios da terapia e da melhoria da qualidade de vida que experimentaram após o diagnóstico é, sem dúvida, recompensador.
Apneia central do sono
Tal como na AOS, a apneia central do sono (ACS) é caracterizada pela ocorrência de apneias e hipopneias frequentes durante o sono. Neste caso, o problema não reside em qualquer obstrução da via aérea, mas sim na ausência ou redução do esforço respiratório durante o sono. Isto acontece quando o centro respiratório ou os músculos respiratórios não funcionam adequadamente.
É comum a ACS estar relacionada com outras doenças, como a insuficiência cardíaca, o acidente vascular cerebral, lesões do tronco cerebral ou doenças neuromusculares. A ACS pode ainda ser secundária ao consumo de depressores do SNC, como, por exemplo, a morfina e outros analgésicos opioides. Investigar e controlar os distúrbios subjacentes à ACS pode ser o suficiente para a sua resolução.
A altitude também pode condicionar a presença de ACS em indivíduos saudáveis. Nas regiões montanhosas, a quantidade de oxigénio no ar é menor. Para obter a quantidade de oxigénio necessária, o centro respiratório promove o aumento da ventilação. Em contraponto, durante o sono, este mecanismo pode levar à ocorrência de apneias compensatórias. A boa notícia é que este fenómeno é transitório e o regresso à baixa altitude é o suficiente para a sua resolução.
Apesar de menos frequente que a AOS, a ACS não deve ser desvalorizada. O impacto no sono e os sintomas associados são semelhantes aos da AOS. A ACS está ainda associada a um prognóstico mais desfavorável nalgumas doenças, nomeadamente cardíacas.
O diagnóstico é também obtido através de um registo poligráfico do sono e, além do tratamento de eventuais causas subjacentes, diferentes modalidades de ventiloterapia são também eficazes na resolução deste distúrbio.
Hipoventilação associada ao sono
Quando o ar que passa nos nossos pulmões não é suficiente para uma oxigenação adequada, muitas vezes também não é suficiente para remover a quantidade necessária de dióxido de carbono do nosso corpo. Neste contexto de ventilação insuficiente, ocorre um aumento da quantidade de dióxido de carbono no sangue. Os primeiros sinais de hipoventilação geralmente ocorrem durante o sono porque, quando estamos acordados, o nosso centro respiratório desempenha um papel mais ativo na regulação da respiração.
Esta situação é relativamente frequente em indivíduos obesos. O esforço exigido aos músculos respiratórios para uma ventilação adequada é maior devido ao elevado índice de massa corporal. Quando a quantidade de dióxido de carbono no sangue é exagerada em indivíduos obesos, tanto em vigília como durante o sono, estamos na presença de um distúrbio designado síndrome de obesidade-hipoventilação. Na maior parte das vezes, esta condição está ainda associada à AOS.
Existem outras causas de hipoventilação associada ao sono, nomeadamente patologias respiratórias como a doença pulmonar obstrutiva crónica e patologias neuromusculares.
À semelhança de outros distúrbios respiratórios do sono, a hipoventilação durante o sono reduz a qualidade deste, com as consequências que já conhecemos.
A hipoventilação associada ao sono também pode aumentar o risco de hipertensão arterial pulmonar, insuficiência cardíaca direita e outras patologias.
O diagnóstico de hipoventilação associada ao sono implica monitorizar os níveis de dióxido de carbono no sangue durante o sono, o que habitualmente só é realizado em centros especializados.
Felizmente, como noutros distúrbios do sono já referidos, existem opções terapêuticas eficazes.
Catatrenia
A catatrenia é um distúrbio respiratório do sono pouco frequente, que consiste na vocalização de um gemido durante a expiração. Estes gemidos acontecem praticamente todas as noites, mas habitualmente são mais incómodos para o parceiro de cama do que para quem os produz.
Ao contrário dos restantes distúrbios respiratórios do sono que abordamos, tanto as causas como as consequências desta condição, a longo prazo, são pouco conhecidas. Aparentemente esta é uma condição benigna, cujo maior impacto é mesmo o social. Ainda assim existem algumas abordagens eficazes para reduzir, ou mesmo eliminar, estes gemidos noturnos.
Hipersonolência de causa central
A sonolência diurna excessiva (ou hipersonolência) caracteriza-se pela incapacidade de permanecer acordado ou alerta durante os principais períodos do dia, traduzindo-se em sonolência e adormecimentos incontroláveis e não intencionais. A hipersonolência condiciona graves reduções de desempenho em várias atividades, acidentes de viação, domésticos ou profissionais, que podem colocar a vida em risco.
A hipersonolência não é um distúrbio em si, sendo habitualmente um sintoma associado a outras condições. A maioria dos casos de sonolência diurna excessiva ocorre em consequência de privação ou de má qualidade do sono.
A gravidade da sonolência diurna pode ser quantificada subjetivamente, recorrendo a escalas de gravidade como a Escala de Sonolência de Epworth. Também pode ser avaliada objetivamente, através de um teste de latência múltipla do sono. Este teste é realizado durante o dia no laboratório de sono, após um registo poligráfico do sono noturno. Consiste na realização de quatro ou cinco sestas, de 20 minutos cada, com intervalos de duas horas e permite quantificar a presença e as características do sono diurno e o tempo necessário para adormecer.
Distúrbios do sono, nomeadamente distúrbios respiratórios do sono, insónia e o uso de alguns medicamentos podem condicionar hipersonolência.
Nalguns casos, a hipersonolência não é consequência destas condições e não é solucionada após uma noite de sono de qualidade. Neste contexto podemos assumir a presença de uma hipersonolência de causa central. Existem várias entidades com características específicas neste grupo de distúrbios do sono. Vamos abordar alguns exemplos.
Narcolepsia
A narcolepsia é uma doença neurológica crónica que afeta a capacidade de o cérebro controlar os períodos em que estamos acordados ou a dormir. Nesta condição é possível que características específicas do sono REM ocorram durante a vigília e que o sono durante a noite seja particularmente fragmentado. O sintoma mais frequente desta condição é a sonolência diurna excessiva grave e persistente. Esta pode condicionar graves prejuízos académicos, profissionais e sociais, bem como aumentar significativamente o risco de acidentes e lesões graves. A maioria dos doentes com narcolepsia acorda revigorada após uma noite de sono ou uma breve sesta, mas a sonolência regressa após um período de tempo variável.
Outros sintomas podem estar presentes nesta condição, como as alucinações ao adormecer e acordar, a paralisia do sono (incapacidade de se movimentar nos períodos de transição entre o sono e a vigília) e a cataplexia.
A cataplexia é um sintoma típico e específico desta doença, apesar de não estar presente em todos os casos. Consiste na perda súbita da força muscular, típica do sono REM, mas que ocorre durante a vigília, habitualmente desencadeada por emoções fortes como o riso, a surpresa ou o medo. Estes episódios podem afetar apenas alguns grupos musculares, provocando dificuldades no discurso ou a queda de objetos das mãos. Podem, no entanto, afetar todos os grupos musculares, exceto os oculomotores e respiratórios, e provocar quedas desamparadas quando o doente se encontra de pé. Durante estes episódios não ocorre perda de consciência e o doente tem memória de todo o evento. Habitualmente estes eventos duram apenas alguns segundos e a sua frequência é bastante variável.
As causas subjacentes a este distúrbio ainda não estão totalmente esclarecidas. Em determinados doentes com narcolepsia, a menor quantidade de um tipo particular de neurónios que produzem uma substância fundamental para a manutenção da vigília – a hipocretina – justifica esta condição. Outros com sintomas semelhantes apresentam quantidades adequadas desta substância, não estando ainda esclarecido o mecanismo responsável por esta condição.
Apesar de pouco frequente, em comparação com outros distúrbios do sono, estima-se que possam existir cerca de 5000 doentes com narcolepsia em Portugal. Os sintomas desta doença podem aparecer em qualquer idade, mas são mais frequentes em adolescentes e jovens adultos, e afetam, igualmente, homens e mulheres. Infelizmente é comum um atraso no diagnóstico desta patologia, sendo muitas vezes confundida com outras doenças, como a depressão e a epilepsia.
O diagnóstico de narcolepsia pode ser apenas baseado na presença de cataplexia. No entanto, a realização de um teste de latência múltipla do sono é fortemente recomendada. Para além de permitir objetivar a sonolência diurna, este teste permite identificar períodos do sono REM, no início do sono, característicos desta patologia. O doseamento da hipocretina e de outras substâncias no sangue pode também estar indicado.
Apesar de ser uma doença crónica, existem tratamentos eficazes, no controlo dos sintomas de narcolepsia, que devem ser iniciados sempre que estejam indicados.
Ouvir as queixas de um jovem que não conseguia manter-se acordado nas aulas da tarde, que adormecia a meio de jantares com amigos e que acordava todas as noites com pesadelos horríveis é assustador. Felizmente, com o tratamento adequado, este mesmo jovem tem hoje uma vida livre destes eventos e de sucesso.
Síndrome de Kleine-Levin
Imagine o leitor que, sem razão aparente, acordava um dia extremamente cansado, confuso, apático e com dificuldade em falar. Tudo à sua volta parece estranho, como se fizesse parte de um sonho. Tem uma vontade extraordinária de comer e sente- -se sexualmente excitado. Depois de uma refeição exagerada e de urinar, sente uma vontade irresistível de voltar para a cama. Durante mais de uma semana, sente a necessidade de dormir 16 a 20 horas por dia e acorda apenas por curtos intervalos para comer e cumprir as suas necessidades fisiológicas mais básicas. A vontade de voltar a dormir é tanta que fica particularmente irritado se alguém o tenta impedir.
Um dia, novamente sem razão aparente, acorda particularmente bem-disposto, recordando-se apenas vagamente do que aconteceu nos últimos dias. Retoma a sua vida normal e ao longo dos dias seguintes esquece gradualmente este episódio.
Três meses depois, este cenário repete-se. Durante vários anos, vai experimentando episódios semelhantes e com frequências variáveis. Às vezes mensalmente e outras anualmente.
Parece o argumento de um filme particularmente perturbador, mas na verdade é uma descrição razoavelmente fidedigna daquilo que um doente com síndrome de Kleine-Levin experiencia.
A síndrome de Kleine-Levin é um distúrbio do sono bastante raro mas particularmente intrigante. Estima-se que afete uma a duas pessoas por milhão. Ainda assim, com base nesta estimativa, é possível que existam em Portugal 10 a 20 doentes com este distúrbio do sono.
Habitualmente, esta síndrome manifesta-se na segunda década de vida e é duas vezes mais frequente em homens do que em mulheres. A duração, a frequência e a gravidade dos episódios vão diminuindo ao longo do tempo e após alguns anos – 14 em média – os episódios cessam.
Fascinante, não?
Long-sleeper
Tal como existem os natural short-sleepers, o contrário também é verdade. Alguns indivíduos dormem regularmente mais horas por dia do que o habitual. Este padrão de sono tem, geralmente, início na infância, sendo muito raro que se instale mais tarde. Na infância e adolescência, os long-sleepers dormem habitualmente mais duas horas do que as recomendadas para a sua faixa etária. Na idade adulta têm necessidade de dormir habitualmente mais do que dez horas por noite para estarem na melhor forma.
O seu sono, no entanto, é perfeitamente normal. Não apresentam fragmentação do sono, nem outras alterações da qualidade do sono, e efetivamente sentem que o sono é reparador. A única diferença que se pode destacar é o facto de dormirem muito. Habitualmente estes indivíduos só procuram ajuda quando são obrigados a encurtar o sono em consequência de obrigações académicas, laborais ou sociais. Neste contexto apresentam sintomas típicos de privação de sono, apesar de obterem uma quantidade de sono adequada para a grande maioria da população. Normalmente, nove horas de sono por noite são suficientes para que funcionem relativamente bem. No entanto, sempre que podem, dormem 12 ou mais horas seguidas, para compensar a quantidade de sono perdida nos restantes dias.
Tal como não é fácil distinguir um doente em privação de sono de um natural short-sleeper, também não é fácil distinguir um long-sleeper de doentes com outras causas de hipersonolência. A principal característica destes indivíduos é o seu sono ser habitualmente bastante reparador e, caso apresentem queixas de hipersonolência, estas desaparecem imediatamente após uma boa e longa noite de sono.
Distúrbios do ritmo circadiano do sono e vigília
Ao longo deste livro já explorámos a enorme importância do ritmo circadiano para a saúde e, particularmente, para obter um sono de qualidade.
Em condições normais, o ciclo sono-vigília é regular e contém um bloco de horas em que temos propensão para estar acordados e outro em que temos propensão para estar a dormir. Chegado aqui, o leitor sabe que cada indivíduo tem o seu próprio ritmo e que cada um de nós tem uma apetência natural para dormir em determinados horários.
Mas, então, o que é afinal um distúrbio do ritmo circadiano do sono e vigília?
Nalgumas condições, nomeadamente alguns distúrbios neurológicos, o ciclo sono-vigília pode apresentar uma grande variabilidade diária. Nestes casos, ao contrário do habitual, o horário em que um indivíduo está mais desperto ou sonolento torna-se irregular, dificultando a obtenção de um sono de qualidade e em horário adequado.
Noutros capítulos foi apresentada a importância da luz para a regulação do ciclo sono-vigília. O que será que acontece se o relógio biológico mestre, situado no núcleo supraquiasmático, não recebe a informação da exposição à luz? Na verdade, isto provoca um desencontro entre o ritmo biológico endógeno e o ambiente externo e condiciona alterações significativas do ciclo sono-vigília. Cerca de metade dos indivíduos cegos apresentam distúrbios do ritmo circadiano, exatamente porque a informação da exposição luminosa não chega ao seu núcleo supraquiasmático.
Noutras circunstâncias já abordadas, o ciclo sono-vigília de um indivíduo pode ser regular mas não ser adequado às suas obrigações profissionais ou sociais. É o caso dos trabalhadores por turnos, dos jovens com atraso de fase fisiológico e de indivíduos que têm sono particularmente cedo, ou seja, com avanço de fase.
Estamos na presença de um distúrbio do ritmo circadiano do sono e vigília quando as alterações do ritmo circadiano e o seu desfasamento em relação aos horários pretendidos causam sintomas de insónia, sonolência diurna excessiva ou ambos. E impactam, assim, negativamente o desempenho cognitivo, físico, social, profissional ou académico.
Uma história clínica minuciosa e o registo dos horários de sono são fundamentais para o diagnóstico adequado dos distúrbios do ritmo circadiano do sono e vigília. A monitorização objetiva dos períodos de atividade, sono e exposição luminosa, através de dispositivos eletrónicos – actígrafos –, é um recurso valioso, assim como a avaliação do ritmo de secreção de melatonina.
O estímulo externo com maior influência no nosso ritmo circadiano é a luz solar. Não é assim de estranhar que a exposição à luz solar em diferentes horários seja uma das ferramentas usadas no tratamento dos distúrbios do ritmo circadiano do sono e vigília. Para além da luz solar, existem dispositivos artificiais de fototerapia que permitem programar a exposição luminosa em qualquer horário. A exposição luminosa nas últimas horas do dia irá promover um atraso no início do sono, enquanto se ocorrer nas primeiras horas da manhã terá o efeito oposto. A melatonina exógena, na forma de gotas ou comprimidos, é também frequentemente utilizada com um efeito oposto ao da exposição luminosa. A administração de melatonina nas últimas horas do dia irá promover um avanço de fase, ou seja, facilitar o início do sono mais cedo.
O tratamento de qualquer distúrbio do ritmo circadiano do sono e vigília tem como objetivo alinhar o ritmo circadiano com os horários de sono e vigília pretendidos. Este requer um plano de intervenção multimodal e deve ser sempre acompanhado por um profissional competente.
Vamos agora explorar um distúrbio do ritmo circadiano que pode ocorrer em indivíduos saudáveis, em qualquer idade, e que possivelmente já afetou o leitor. Qual será?
Jet lag
Viajar permite-nos viver experiências fascinantes, alargar horizontes, conhecer e respeitar novas culturas e apreciar paisagens deslumbrantes. Algumas horas de avião são suficientes para nos transportarem para realidades completamente distintas daquela em que vivemos. Mas nem tudo é um mar de rosas…
O desfasamento entre o nosso ritmo circadiano endógeno e o horário no destino pode ser particularmente incómodo, o que caracteriza o jet lag.
Queixas de insónia, sonolência diurna excessiva, fadiga, distúrbios do humor e sintomas gastrointestinais são frequentes nos primeiros dias de viagem. Viajar através de dois fusos horários pode ser o suficiente para despoletar estes sintomas. Quanto maior for a diferença horária no destino, mais provável é senti-los e mais incómodos são. Viajar para este também costuma despoletar mais sintomas, porque será?
Quando viajamos para este, a adaptação ao fuso horário no destino implica acordar e adormecer mais cedo do que no local de onde partimos. O nosso ritmo circadiano endógeno é de aproximadamente 24 horas, quer isto dizer que em alguns indivíduos pode ser ligeiramente superior a 24 horas e noutros inferior. A maioria da população tem na verdade um ritmo circadiano ligeiramente superior a 24 horas, o que está associado a uma tendência fisiológica para adormecer e acordar um pouco mais tarde. Quando viajamos para oeste é exatamente isto que pretendemos – atrasar o nosso horário de sono por algumas horas -, sendo naturalmente mais fácil do que o contrário. No entanto, 20% a 25% da população apresenta um ritmo circadiano ligeiramente inferior a 24 horas e, para esses indivíduos, a adaptação ao fuso horário dos destinos a este poderá ser mais fácil.
Outros fatores associados à própria viagem podem também contribuir para as queixas de jet lag. Perturbações do sono, redução do tempo total de sono antes da viagem, desconforto associado aos constrangimentos da posição durante várias horas de voo e ainda consumo excessivo de cafeína e álcool podem agravar as queixas de insónia no destino.
Os sintomas de jet lag são perturbadores para quem viaja frequentemente em trabalho, como é o caso dos pilotos ou assistentes de bordo. Vários estudos demonstraram o impacto significativo do jet lag nesta população. Também o rendimento dos atletas profissionais pode ser francamente comprometido pelos efeitos do jet lag.
Felizmente existem estratégias que permitem facilitar a adaptação ao horário no destino e minorar os efeitos associados ao jet lag.
No período que antecedeu os Jogos Olímpicos de 2020, que se disputaram na cidade de Tóquio em 2021, tive a oportunidade de colaborar na preparação de alguns atletas para este evento. Os benefícios de um plano estruturado para mitigar os efeitos do jet lag no desempenho desportivo são inegáveis.
Estas estratégias também podem ser adotadas por profissionais obrigados a viagens frequentes e por viajantes ocasionais que não queiram perder «pitada» das suas férias.


Distúrbios do movimento relacionados com o sono
Como sabemos, uma posição confortável é essencial para um sono de qualidade. Ao chegar à cama, os movimentos que realizamos à procura de conforto são naturais. Quando finalmente encontramos a posição ideal, ficamos imóveis e permitimos que o sono chegue.
Para algumas pessoas, este processo é bastante mais complicado. Movimentos incontroláveis e sensações desconfortáveis, difíceis de descrever, podem condicionar o início e a qualidade do sono. A dificuldade em adormecer e a fragmentação do sono, habitualmente associada a estes distúrbios, podem condicionar fadiga, irritabilidade e dificuldade de concentração, entre outros sintomas diurnos.
Além disso, o parceiro de cama pode sentir o seu sono comprometido, com as consequências negativas que já conhecemos.
Síndrome das pernas inquietas
A síndrome das pernas inquietas (SPI) é um distúrbio do movimento relacionado com o sono que se caracteriza por uma sensação de desconforto e desejo irresistível de mover os membros, mais frequentemente as pernas. Os sintomas ocorrem predominantemente em repouso e ao final do dia. O movimento dos membros afetados promove alívio. A presença destes sintomas ao deitar dificulta o início do sono e também o seu reinício após um despertar noturno. A SPI é uma doença crónica com grande impacto na qualidade de vida que pode afetar até 10% da população e que habitualmente agrava com o tempo.
O défice de ferro é uma causa frequente de SPI e a sua suplementação pode solucionar o problema. Algumas medidas não farmacológicas são também essenciais para o controlo dos sintomas e quando este não é alcançado existem vários fármacos eficazes.
Apesar de ser considerado um distúrbio do movimento relacionado com o sono, os sintomas de SPI, apenas ocorrem em vigília e na transição para o sono. No entanto, o distúrbio dos movimentos periódicos dos membros (DMPM) está presente em mais de 80% dos indivíduos com SPI.
Os movimentos periódicos dos membros são movimentos involuntários repetitivos e estereotipados que ocorrem durante o sono. Tal como no SPI, os movimentos dos membros inferiores são os mais frequentes. Habitualmente quem sofre de DMPM não tem consciência destes movimentos. As queixas mais frequentes são a fragmentação do sono, sensação de sono não reparador, fadiga e sonolência diurna excessiva. Uma vez que os sintomas de SPI ocorrem em vigília, uma história clínica detalhada é suficiente para o diagnóstico deste distúrbio. Por outro lado, a realização de um registo poligráfico do sono noturno é essencial para o diagnóstico de DMPM. Importa salientar que indivíduos saudáveis podem apresentar movimentos periódicos dos membros durante o sono. O diagnóstico de DMPM em adultos implica a ocorrência de, pelo menos, 15 movimentos periódicos dos membros por hora de sono, a presença de queixas relacionadas com o sono e sintomas diurnos associados a má qualidade do sono.
Bruxismo
O bruxismo é outro distúrbio do movimento que tem recebido atenção crescente e cujo diagnóstico é, felizmente, cada vez mais frequente.
Apertar ou ranger os dentes involuntariamente, aplicando força excessiva sobre a musculatura mastigatória, caracteriza este distúrbio. Frequentemente provoca desgaste das peças dentárias, comprometendo a sua integridade e a saúde oral.
Estes episódios podem ocorrer durante o sono, mas também durante o dia.
Durante o sono, as contrações dos músculos mastigatórios podem ser curtas e repetitivas (contrações musculares fásicas) ou sustentadas (contrações tónicas), e acontecem de forma recorrente ao longo da noite. O contacto das peças dentárias durante as contrações produz um som característico de ranger dos dentes que pode ser identificado pelo parceiro de cama e ser particularmente perturbador para este.
Para além do desgaste dentário, o bruxismo relacionado com o sono pode causar dor nos músculos maxilares e cefaleias (dores de cabeça). Quando os episódios são muito frequentes, podem determinar a fragmentação do sono e comprometer a sua qualidade, suscitando situações de fadiga ou de sonolência diurna excessiva.
O bruxismo pode estar associado a outras patologias e distúrbios do sono. O diagnóstico de apneia do sono é particularmente frequente em indivíduos com bruxismo. As causas de bruxismo estão pouco esclarecidas, mas o stress e a ansiedade são dois fatores de risco particularmente importantes.
O diagnóstico de bruxismo é, com frequência, realizado por médicos dentistas que identificam o desgaste dentário provocado por este distúrbio. No entanto, este distúrbio pode ser identificado em consultas dedicadas aos distúrbios do sono. Não é raro observar indivíduos com queixas de insónia a quem acabo por fazer o diagnóstico de bruxismo. Também recebo, com alguma frequência, indivíduos encaminhados pelos parceiros devido ao som perturbador que estes emitem durante a noite. Apesar de não ser essencial para o diagnóstico, a realização de uma polissonografia permite confirmar este e outros distúrbios associados.
O tratamento eficaz do bruxismo carece de uma abordagem multidisciplinar, na qual o médico dentista desempenha um papel fundamental. Fisioterapia, terapia cognitivo-comportamental, goteiras de estabilização e terapia farmacológica são algumas opções terapêuticas indicadas. Nos casos de bruxismo associado a outros distúrbios – como a apneia obstrutiva do sono ou o refluxo gastroesofágico -, o tratamento destes é essencial para a abordagem do bruxismo.
Parassónias
As parassónias são distúrbios comportamentais e motores ou distúrbios do sistema nervoso autónomo. Estes ocorrem durante o sono e durante os períodos de transição entre o sono e a vigília. Em condições normais, o sono e a vigília são dois estados perfeitamente distintos, estáveis e previsíveis. No entanto, à medida que o ciclo sono-vigília oscila, estados normalmente distintos de consciência podem ser transformados num estado que não é totalmente declarado. As parassónias parecem então emergir neste contexto, em resultado de um estado instável e temporário de dissociação entre o sono e a vigília.
Despertares parciais do sono NREM profundo estão na origem de vários comportamentos, como, por exemplo, os despertares confusionais, nos quais um indivíduo acorda particularmente confuso e desorientado. O sonambulismo é também originado por um despertar parcial do sono NREM. Habitualmente inicia-se com um despertar confusional, após o qual o sonâmbulo se ausenta da cama e deambula pela casa ou mesmo pela rua. O comportamento inapropriado, agitado, hostil e ocasionalmente agressivo denuncia o sonâmbulo. A interação com um indivíduo sonâmbulo permite identificar que este se encontra desorientado. Com frequência apresenta um discurso arrastado e o raciocínio comprometido, dificultando a resposta a perguntas ou solicitações. Habitualmente, o sonâmbulo não se recorda ou tem apenas uma vaga memória do sucedido, não associando o episódio ao conteúdo de qualquer sonho. As ações do sonâmbulo podem ser simples e erráticas, sem objetivo definido. Comportamentos mais complexos, como atividades sexuais inapropriadas autoinfligidas ou dirigidas aos coabitantes, também podem ocorrer. Estes episódios podem terminar espontaneamente, às vezes em locais impróprios, ou sonâmbulo pode regressar à cama e continuar a dormir sem ficar consciente em nenhum momento do episódio. Se o sonâmbulo despertar, é natural que fique confuso e desorientado durante vários minutos. As parassónias do sono NREM ocorrem normalmente durante o primeiro terço da noite, quando a proporção de sono profundo é maior. A realização de uma polissonografia com gravação de vídeo sincronizado permite documentar e corroborar o diagnóstico de parassónias do sono NREM. No entanto, uma história clínica característica é o suficiente para este diagnóstico.
A intrusão de elementos do sono REM na vigília está na origem das parassónias do sono REM, nas quais se incluem os pesadelos, a paralisia do sono e o distúrbio comportamental do sono REM. Pela sua peculiaridade, vamos explorar este último com maior detalhe.
Distúrbio comportamental do sono REM
O distúrbio comportamental do sono REM é uma doença do sono particularmente bizarra e fascinante. Como o leitor sabe, durante o sono REM quase todos os músculos do nosso corpo estão temporariamente paralisados, mas o nosso cérebro está fortemente ativo e a produzir sonhos. Nos doentes com distúrbio comportamental do sono REM, esta paralisia não ocorre e, em vez disso, o nosso corpo reproduz ao vivo os movimentos que realizamos durante os sonhos. Isto pode não ser particularmente preocupante se durante o sonho estivermos tranquilamente sentados num qualquer teatro a assistir a uma peça de bailado clássico… Mas se nos encontrarmos numa arena romana, a lutar pela própria vida contra animais selvagens e contra outros gladiadores, a situação pode ser bastante dramática. Quem sofre de distúrbio comportamental do sono REM pode, durante o sono, agredir o parceiro de cama, outros coabitantes ou mesmo vizinhos, sem qualquer intenção de o fazer. À semelhança dos períodos de sono REM, também os eventos associados ao distúrbio comportamental do sono REM são mais frequentes no último terço da noite. A realização de uma polissonografia com gravação de vídeo sincronizado é obrigatória para o diagnóstico deste distúrbio, ao contrário de todas as outras parassónias. A polissonografia permite identificar atividade motora anormal durante o sono REM e ocasionalmente é possível documentar comportamentos anormais durante o sono. Atendendo ao risco de acidentes, ferimentos e agressões involuntárias associados a este distúrbio, a realização de uma polissonografia pode ser relevante do ponto de vista legal, permitindo corroborar o seu diagnóstico.
O diagnóstico de distúrbio comportamental do sono REM é mais comum em homens com mais de 50 anos. Este distúrbio pode estar associado a doenças neurodegenerativas, como a demência de corpos de Lewy e a doença de Parkinson, sendo muitas vezes diagnosticado vários anos antes da instalação do quadro clínico típico dessas doenças.
Após o diagnóstico, os coabitantes devem ser alertados para as possíveis consequências deste distúrbio, podendo optar por mudar de quarto, ou mesmo de habitação, até ser alcançado o controlo dos sintomas. Objetos cortantes e outros potencialmente perigosos devem ser removidos do quarto e guardados num local seguro. As janelas devem ser protegidas e todas as atitudes que reduzam o risco de acidentes devem ser tomadas.
São inúmeros os relatos bizarros associados ao distúrbio comportamental do sono REM. Um caso particularmente mediático é o de Kenneth James Parks, um canadiano de 23 anos que em maio de 1987 saiu de sua casa, conduziu durante 23 km e atacou os seus sogros durante o sono. Ao contrário do que este comportamento poderia indiciar, Kenneth tinha uma excelente relação com os sogros e era particularmente acarinhado por estes. Apesar disso, nessa madrugada de maio, agrediu brutalmente a sua sogra com uma chave de rodas e esta acabou por falecer. Tentou ainda asfixiar o seu sogro com as próprias mãos, mas este conseguiu sobreviver ao ataque. Depois deste brutal episódio, Kenneth, coberto de sangue, voltou para o seu carro e conduziu diretamente para o posto de polícia mais próximo. À chegada afirmou: «Eu penso que acabei de matar duas pessoas…»
Kenneth foi detido e acusado de homicídio voluntário da sua sogra e tentativa de homicídio do seu sogro. Ao longo do processo, alegou estar a dormir durante todo o evento e não ter tido consciência dos seus atos. Naturalmente, ninguém acreditou nele. Mesmo os especialistas em medicina do sono estavam particularmente céticos. No entanto, após uma detalhada e cuidadosa investigação, os especialistas acabaram por considerar a hipótese de Kenneth sofrer de distúrbio comportamental do sono REM. Apesar de à data não ter sido realizada uma polissonografia completa, o eletroencefalograma de Kenneth durante o sono era especialmente irregular, mesmo para um doente com parassónia. Por outro lado, não foi encontrada nenhuma motivação clara para o homicídio e as declarações de Kenneth foram particularmente consistentes durante os inúmeros interrogatórios a que foi submetido, apesar das várias tentativas para o desestabilizar. O facto de o horário e a sequência dos eventos se adequarem à hipótese de diagnóstico de distúrbio comportamental do sono REM, assim como a total impossibilidade de falsificar os dados obtidos durante o eletroencefalograma, acabou por conduzir à absolvição de Kenneth. Após recurso, três anos após a decisão do tribunal de primeira instância, o Supremo Tribunal do Canadá manteve, em 1992, a decisão de absolver Kenneth.
Assustador ou intrigante?
Felizmente existem tratamentos eficazes no controlo destes distúrbios. Uma boa higiene do sono é essencial e deve ser promovida em todos os casos, mas ocasionalmente a terapia farmacológica pode ser considerada.