“Continuamos a receber testemunhos, embora já tenhamos fechado o nosso telefone. Mas como o endereço de email permanece aberto, os testemunhos não cessam de chegar”, diz, em entrevista à VISÃO, o psiquiatra Daniel Sampaio, 76 anos. Ou seja: os números avassaladores que, após um ano de investigações, a Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal – liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht e a que Daniel Sampaio pertence – apresentou em conferência de Imprensa esta segunda-feira, 13 (512 testemunhos validados, apontando para um mínimo de 4 815 vítimas, desde 1950 até à atualidade), podem estar já desatualizados. Agora, o psiquiatra considera que “o importante é garantir apoio psiquiátrico e psicológico às pessoas abusadas”, e até sugere à Igreja, à qual atribui a responsabilidade de iniciar o processo, um caminho “fácil” para lá chegar. Acha, por isso, que o tema do pagamento de indemnizações às vítimas é algo que pode esperar. Também confidencia que tem a “certeza” de que a Conferência Episcopal Portuguesa não afastará bispos que, comprovadamente, possam ter encoberto padres abusadores, e explica porquê. Assim como diz não ter “grande esperança” de que algum padre abusador venha a ser condenado a uma severa pena de prisão. Mas apela: “Este momento tem de ser um ponto de viragem para uma Igreja diferente, muito atenta ao problema dos abusos sexuais de menores por membros do clero, e com outra coisa bastante importante – a formação dos padres na área da sexualidade, que ainda é muito pouca.”
Na conferência de Imprensa da CI não houve qualquer referência às comissões diocesanas. Porquê?
Foi uma opção que tomámos, porque as vítimas dizem que não querem falar nas comissões diocesanas, que têm ligações aos bispos, nos quais não confiam. Temos imensos casos em que o bispo não ligou nenhuma. E não estou a fazer nenhuma crítica em especial, porque a ocultação é inerente ao abuso sexual. A Igreja ocultou, mas as famílias também o fizeram.
No entanto, as comissões diocesanas eram supostas ter tido um papel relevante nesta investigação…
Fiz muitas audições presenciais de testemunhos, e as vítimas diziam que não queriam ir às comissões diocesanas, porque são estruturas da Igreja. É significativo que essas comissões tenham muito poucos casos, enquanto a CI tem 512. As vítimas confiam numa comissão independente. Um organismo da Igreja não é bom para as acolher.
Embora os testemunhos sejam anónimos, a exposição mediática que os casos agora ganharam pode afetar ainda mais as vítimas?
A discussão que agora se faz sobre o assunto pode reativar os sintomas de ansiedade e de depressão. As pessoas vão sofrer com a exposição do que nos transmitiram. Decidimos correr esse risco, porque era muito importante sensibilizar a sociedade para o tema. E continuamos a receber testemunhos, embora já tenhamos fechado o nosso telefone. Mas como o endereço de email permanece aberto, os testemunhos não cessam de chegar. É natural que nos próximos dias haja ainda mais vítimas em risco psicológico, porque reativaram o que sentiram e decidiram agora dar o seu testemunho.
Na sua opinião, que iniciativas a Igreja deve desencadear quanto antes no apoio às vítimas de abusos sexuais por membros do clero?
O importante agora é garantir apoio às pessoas abusadas. A Igreja, quanto a mim, devia fazer um apelo a dizer que todas as pessoas vítimas, que tenham sintomas de ansiedade e de depressão, devem dirigir-se a uma consulta de psiquiatria ou de psicologia, e que a instituição as apoiará no caso de não conseguirem um atendimento gratuito, pagando-lhes a consulta privada, se tal for necessário.
“Que fique bem claro: não basta o acompanhamento espiritual [dos mais de cem padres abusadores ainda no ativo] e considero que a Igreja deve assumir isso. Estas pessoas são personalidades altamente doentes”, avisa Daniel Sampaio
Que grau de dificuldade pode haver na articulação da Igreja com o Serviço Nacional de Saúde [SNS]?
Acredito que será muito fácil de conseguir, se a Igreja, de facto, se empenhar neste processo. Tem de fazer diligências junto dos serviços de psiquiatria do SNS, ao jeito dos alertas que existem, por exemplo, para o AVC ou para a prevenção do suicídio. Ou seja: se aparecerem vítimas de pedofilia por membros do clero, que tenham prioridade na marcação das consultas.
Como se pode centralizar os pedidos de apoio psiquiátrico ou psicológico das vítimas?
Através de uma linha telefónica ou de um endereço de email, por exemplo.
Tendo em conta, por exemplo, o que disse atrás, sobre a desconfiança das vítimas em relação às comissões diocesanas, a presença da Igreja no processo que propõe não as afastará dele?
Desencadeado o processo, não pode haver, em nenhuma etapa dele, qualquer ligação à Igreja. É muito importante acentuar isto. Têm de ser serviços de psiquiatria e de psicologia, a nível público ou privado, que tenham total independência. A Igreja apenas aparece para suportar o custo, no caso de ser necessário.
Parece considerar que um procedimento de pagamento de indemnizações, pela Igreja, às vítimas pode, por ora, esperar…
Sim. Acho que, neste momento, a principal atitude que a Igreja deve tomar é assumir a responsabilidade em relação ao acompanhamento psicoterapêutico das vítimas.
Há, depois, o caso dos mais de cem padres abusadores que continuam no ativo, e face aos quais a Igreja parece só prescrever, como tratamento, o “acompanhamento espiritual”. Isto basta?
De maneira nenhuma. Do ponto de vista psiquiátrico, estas pessoas são personalidades altamente doentes e, portanto, a única forma que temos de garantir que não voltem a abusar é a de as sujeitar a tratamento psiquiátrico e psicológico. Pode ser por farmacologia ou psicoterapia, consoante as situações. Que fique bem claro: não basta o acompanhamento espiritual e considero que a Igreja deve assumir isso.
Consegue vislumbrar a Conferência Episcopal Portuguesa a ter a coragem de afastar bispos que comprovadamente encobriram padres abusadores?
Tenho a certeza de que isso não vai acontecer, porque é muito difícil provar que houve uma ocultação específica num caso. Além de que os bispos têm muito poder. Mas espero que, a partir de agora, ajam para terminar com a ocultação. Andar para trás, no entanto, não me parece possível. E nem me parece benéfico, porque se pode cair numa espécie de “caça às bruxas”. Quanto ao problema da ocultação, contudo, acho que devem assumi-lo em geral, além de determinarem, daqui para a frente, o dever moral de denúncia. Considero que este momento tem de ser um ponto de viragem para uma Igreja diferente, muito atenta ao problema dos abusos sexuais de menores por membros do clero, e com outra coisa bastante importante: a formação dos padres na área da sexualidade, que ainda é muito pouca.
O que propõe?
Na minha opinião, é preciso abrir essa formação a pessoas de fora da Igreja – a psicólogos, a sociólogos, a outros especialistas que possam ajudar os jovens que estão a tentar ser padres a terem noções sólidas sobre essa questão, que é uma área difícil.
A relação da Igreja com a sexualidade é muito controversa…
Ainda existem muitos padres que dizem, por exemplo, que a masturbação é um pecado, como me assinalam jovens católicos que ouço. E a masturbação é um ato absolutamente normal, e até essencial na adolescência, como fase de desenvolvimento.
Admite que o celibato dos padres pode ser um dos fatores que desencadeiam a pulsão sexual do abusador?
É muito claro que não. A questão do celibato é importante no que referi atrás – a sexualidade dos padres, um assunto em geral. Já o abuso sexual de crianças é uma coisa completamente diferente. É uma patologia que tem a ver com o alerta sexual perante uma criança; estas pessoas excitam-se com isso. Está estudado que, quando veem imagens de crianças, os pedófilos têm ereção. Esse alerta sexual nada tem a ver com o desejo sexual de um padre por um homem ou por uma mulher. É preciso não fazer essa confusão. Há pessoas que dizem: “Se os padres fossem casados, havia menos abusos sexuais de menores.” Não se pode dizer isso. A patologia muito grave da personalidade ligada ao abuso sexual é uma coisa diferente.
Tem a esperança de que em tribunal possam vir a ser determinadas penas de prisão severas para padres abusadores, se for reunida a prova necessária e suficiente para isso?
Não tenho grande esperança. A prova é muito difícil de se fazer…
Mas considera que uma condenação daquele tipo podia ser benéfica para a nossa sociedade?
Seria um sinal muito positivo como fator de dissuasão destas práticas. A pessoa saber que se tiver um determinado comportamento pode ser severamente punida constitui um controlo externo. Os abusadores não têm controlo externo nem interno. Ou seja: no controlo interno, não sabem dominar os seus impulsos. E não têm controlo externo porque é tudo feito muito às escondidas e num grande recato, pelo que muitas das situações ou escapam à Justiça ou acabam em pena suspensa. Por isso, se a Justiça for mais eficaz também funciona como controlo externo.