A minha relação com a comida sempre foi conturbada. Na minha família paterna havia casos de obesidade. Quando nasci, era um bebé muito grande e os médicos alertaram a minha mãe para ter cuidado com a minha alimentação. Ela ficou preocupadíssima, o que levou a um controle enorme daquilo que eu comia. Como estava constantemente a ser controlada, comia quando estava sozinha. Desenvolveu-se uma compulsão alimentar e cheguei a ter períodos bulímicos.
Da minha adolescência até aos 22 anos, fiz dietas atrás de dietas, de todo o tipo. Havia uma autossabotagem constante, os resultados não eram suficientes, os meus pais gastavam imenso dinheiro e estávamos sempre a discutir. Quis então aprender a ter uma alimentação sustentável, mas sem comprimidos, xaropes e bebidas. Se queria curar a minha relação com a comida, tinha de me concentrar nela. Melhorei bastante, mas havia toda a questão psicológica, a compulsão ainda estava muito presente.
Mais tarde, percebi que não estava bem psicologicamente e a relação com a comida era apenas um sintoma. Tinha de resolver uma série de coisas que estavam enterradas, como a relação que tinha com a minha mãe. Ela é uma mulher elegante, bonita e carismática, o verdadeiro padrão estético. Quando outras pessoas nos viam juntas, diziam que eu era parecida com o meu pai e ficava muito triste com essa observação. Era uma miúda introvertida, absorvia os comentários negativos e não respondia. Quanto mais me calava, parecia que mais o meu corpo queria aparecer. Sentia-me perdida. Cheguei aos 28 anos e não sabia quem era, orientava-me por aquilo que os outros diziam.
Mais compaixão
Conheci uma autora, a Melissa Wells, cujo livro foi a minha maior inspiração [The Goddess Revolution: Food and Body Freedom for Life]. Foi o rastilho de tudo, que me fez perceber que podia gostar do meu corpo, independentemente do que as outras pessoas pensavam, e cuidar bem dele. Foi então que comecei a partilhar os meus pensamentos nas redes sociais. Curiosamente, chego a pessoas de todos os pesos, porque a questão da autoestima é transversal. Recentemente, escrevi um livro sobre a minha jornada de amor-próprio, que vai ser publicado em março, com algumas dicas e a história dos movimentos de libertação do corpo.
Ganhei a minha voz. Não me identifico com a conotação negativa que dão aos influenciadores digitais, sinto que as minhas ações têm um efeito muito positivo, por exemplo, quando mostro uma fotografia na praia de biquíni. As referências em Portugal, de alguém que não corresponde ao padrão de beleza, mas que também concretiza coisas na vida e é feliz, não eram muitas. Trabalhei ainda como modelo plus size, mas há poucas oportunidades para mulheres do meu tamanho. A moda começa a consciencializar-se para esta diversidade, mas ainda com limitações. Desliguei-me um pouco desse mundo.
Quando fui capa da revista Cristina, em 2019, a minha página ganhou mais dez mil seguidores. A experiência foi empoderadora. Não banalizo a nudez, naquele caso ajudou a passar a mensagem. Tenho familiares que lutaram pela liberdade da mulher e senti aquilo como algo geracional. Foi uma espécie de afronta para a sociedade em que vivemos e um bom ponto de partida para a discussão. Nunca me arrependi de a fazer. Tive comentários péssimos, chamaram-me vaca leiteira, disseram que a minha família era disfuncional, que não me podia queixar se depois fosse violada. Houve inclusive profissionais de saúde que utilizaram a minha imagem e me acusaram de promover a doença e a morte. Tive de deixar de ler o que se escrevia nas redes sociais. Foi um episódio importante, que me fez definir os limites, em prol da minha saúde mental. Sou aberta à discussão de ideias, mas não aceito ataques na minha página, bloqueio-os logo.
O corpo da mulher gorda sempre foi visto de uma forma negativa. Há a ideia da preguiça, da falta de vontade, do desleixo. São temas que devem ser abordados com sensibilidade. Muitas vezes, os médicos são os nossos maiores agressores, dizem que estamos a destruir-nos. Sempre que vou a uma consulta, tenho de me preparar mentalmente e de me informar sobre os meus direitos, porque posso ter de sair de lá direta para fazer uma reclamação. Isto não é normal. Há pessoas que assumem a premissa de que, por terem uma vida equilibrada e saudável, são moralmente superiores. Mas isso não lhes dá o direito de atacarem as outras pessoas.
O que mais me marcou foi ouvir de pessoas próximas “se não emagreceres, nunca vais encontrar alguém que goste de ti verdadeiramente” ou “não vais encontrar o teu trabalho de sonho”. Há a pressão de ter uma certa imagem para poder ser aceite ou ser levada a sério. Muitas pessoas pensam que não merecem ser amadas, e durante muito tempo também pensei assim. Estes comentários, ditos como forma de motivar, podem traumatizar e destruir a autoestima. Felizmente, consegui mudar a opinião dos que me rodeavam.
Hoje, a minha relação com o espelho não é de aceitação total, mas é de maior compaixão. Tomo decisões mais conscientes, baseadas no amor que tenho por mim e não no ódio que tenho pelo meu corpo. A aceitação também é o encarar da realidade em que estamos para podermos continuar.
Atualmente, estou a pensar em iniciar o processo da cirurgia bariátrica, porque o peso começa a ter impacto no meu bem-estar e na minha mobilidade. Já o fiz uma vez, mas fui tão maltratada pela médica que desisti. Tenho a noção de que, a partir de um certo peso, é muito difícil perdê-lo de forma sustentada. A bariátrica acaba por ser um reset ao sistema. Continuo a ser acompanhada por uma nutricionista e por uma psicóloga e o objetivo é encontrar um equilíbrio na relação com a comida.