Grande reportagem: Vidas de trabalho sem saírem da miséria

Artimiza Fernandes mora num pequeno quarto com a filha, Auita, de 2 anos. O que ganha por limpar duas casas não chega para a renda, a creche, o passe e a comida

Grande reportagem: Vidas de trabalho sem saírem da miséria

O que vale a António Grega e à sua mulher, Cátia, é serem organizados e saberem as prioridades. “Não fazemos futilidades, como ir ao McDonald’s”, exemplifica o operário. Só quando um dos sete filhos faz anos vai com os pais deliciar-se com a gulosa fast food. Os outros irmãos também hão de ir, mas à vez, cada um no dia do seu aniversário.

A morar num prédio de sete andares, o T3, que para quatro seria razoável, para nove é acanhado. À entrada, uma dezena de pares de sapatos todos alinhados na sapateira – não há margem para desarrumação. Num dos quartos dormem as quatro meninas; no do lado, os três irmãos. Há afeto em cada moldura com fotografias de momentos especiais.

É hora de jantar e, tal como em todos os finais de tarde, António já levantou na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição, em Setúbal, as refeições prontas a que a família tem direito. Comida não lhes tem faltado.

Aos 41 anos, António Grega nunca foi ao Jardim Zoológico, mas adorava lá levar as crianças. O certo é que a despesa dos bilhetes para os nove, a roçar os €200, é impossível de custear. Apesar de trabalhar, há quatro anos e meio, como operador de empilhadora na Autoeuropa, integrado nos quadros da Rangel, empresa de logística subcontratada pela fábrica de automóveis, ele é o único a auferir salário para um agregado familiar tão numeroso.

Ao salário base (€728), António soma quase €400 de subsídios de turno, de fim de semana e de alimentação. Mas, por ter um terço do ordenado penhorado para pagar uma dívida às finanças, à conta bancária só lhe chegam outros €700. Uma “cruz fiscal” que ainda vai durar cinco anos.

Cátia fazia limpezas num hospital, mas foi dispensada. Continua a receber €427 de Rendimento Social de Inserção (RSI) e abono de família (€296) pelos sete filhos, com idades que vão dos 4 aos 14 anos. Todos os meses, a jigajoga para fazer face às despesas fixas passa por tentar pagar sempre a renda da casa (€450) e as telecomunicações e internet (€45). Amiúde, têm as faturas da água e da eletricidade com um mês de atraso.

A família Grega faz parte dos 2,3 milhões de pessoas que, em Portugal, vivem com o rendimento mensal abaixo do limiar de de pobreza, fixado em €554,41 (€6 653/ano). António é um dos 500 mil pobres que trabalham.

Saúde Mental: “Em períodos de crise, os mais pobres ficam ainda mais vulneráveis a problemas de saúde física e psicológica, que agravam o risco de desigualdade e exclusão”

E para esta ponderação do que é ser pobre (ver caixa) considera-se, naturalmente, a família. “Não é possível analisar situações de pobreza sem ter informação acerca do agregado familiar de uma pessoa”, esclarece a economista Susana Peralta.

Exemplificando: um casal com mil euros vive com melhores condições do que uma pessoa com €554. A renda da casa divide-se, a luz serve para todos, assim como a internet ou o gás. “São verdadeiras economias de escala. Quanto maior é uma família, menor é o custo per capita de a sustentar.”

Cada vez mais pobres

Na União Europeia, uma em cada cinco pessoas vive em risco de pobreza ou de exclusão social, segundo o Eurostat. Na tabela dos países mais pobres, Portugal ocupa o oitavo lugar, com 22,4% da população a viver com rendimentos abaixo do limiar da pobreza, mais 2,2% em 2021 do que em 2020. Um panorama que tende a agravar-se com a crise social e económica que já se fazia sentir desde a pandemia de Covid-19 e que a guerra na Ucrânia, sem fim à vista, veio acentuar.

Só em 2021, houve mais 256 mil pessoas a cair na pobreza. “É um número superior à população da cidade do Porto”, sublinha Fernando Diogo, sociólogo, coordenador do estudo A Pobreza em Portugal –Trajetos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Está mais do que na hora de desconstruir os preconceitos que persistem no tempo, como explica Elizabeth Santos, investigadora do Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza. “Estamos a falar de uma população que, na sua maior parte, ou não pode trabalhar porque é criança ou idoso ou, estando numa faixa etária ativa, quase metade (57%) está efetivamente a trabalhar e a tempo inteiro (90%). Na parte que não está a trabalhar entram pessoas que ainda estão a estudar ou a aumentar a sua qualificação – e é importante que estejam, para se valorizarem no mercado de trabalho –, aqueles que são cuidadores e não têm apoios, pessoas com problemas de saúde e desempregados.”

Forte união Cláudia Martins e Miguel Vilhena fazem o que podem com €850 por mês. Essenciais são os estudos da filha universitária. “Herança não lhe vamos deixar, mas queremos que tenha as ferramentas para conseguir ser algo no futuro”

No estudo conduzido por Fernando Diogo, entre os quatro perfis principais de pobres adultos, o mais numeroso era, precisamente, o dos trabalhadores (32,9%), seguindo-se o dos reformados (27,5%), o dos precários (26,6%) e, por fim, o dos desempregados (13%). Ou seja, “ter um trabalho (em muitos casos um emprego seguro) não é garantia para se sair da situação de pobreza”.

Outro estudo, promovido pela Nova SBE, da autoria de Bruno P. Carvalho, Mariana Esteves, Miguel Fonseca e Susana Peralta, revela que a pobreza afeta quase quatro vezes mais aqueles que trabalham por conta própria (28,9% versus 7,7% dos que trabalham por conta de outrem), três vezes mais os que trabalham a tempo parcial (29,6% versus 9% a tempo inteiro); e duas vezes mais os que têm contratos temporários (11,9% versus 6,4% para os permanentes).

Saudades de comer peixe

A crise, não sendo exclusiva do nosso país, é mais problemática porque os níveis de rendimentos são mais baixos, como reconhece Vieira da Silva, economista e antigo ministro do Trabalho e da Solidariedade Social (2005/2009) e da Economia, Inovação e Desenvolvimento (2009/2011). Mas porque é que o trabalho não retira as pessoas da pobreza?

Para o socialista é importante destrinçar os diferentes tipos de pobres empregados. “É entre os independentes e os precários, com trabalho a tempo parcial, sem proteção nem regras, que a pobreza é mais intensa. As pessoas com contratos a prazo têm tendência a ter uma taxa de pobreza mais baixa do que com vínculos mais instáveis, mas superior àquelas com contrato de trabalho permanente.” 

Trabalhar por nove António Grega tem uma casa cheia, mas o T3 é acanhado para ele, a mulher e os sete filhos. O seu salário sustenta todos

Fernando Diogo complementa a caracterização: “Os precários são o grupo mais heterogéneo, encontramos lá os jovens como também os indivíduos mais velhos que passaram a vida a mudar de um sítio para o outro. Aqui há um maior afastamento das regras normais do mercado de trabalho e vemos as dificuldades do Estado em impor a regulação laboral. Além disso, há mais pessoas na zona difusa entre emprego e desemprego.”

Precisamente o que diferencia António Grega de Margarida Jesus. Enquanto ele está nos quadros da empresa, Margarida, 37 anos, precisa de dois part-times para amealhar €401. De manhã, no refeitório de uma escola pública, em que limpa a loiça, põe as mesas e serve as refeições, recebe €269; ao início da noite, limpa um consultório médico por mais €132.

2 312 000
Número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, em Portugal, no ano de 2021

3 006 530
Agregados familiares a ganhar menos de €13 500/ano

16,4%
Do total de agregados familiares do País, esta é a percentagem dos que não têm capacidade financeira para manter a casa aquecida

4,3%
Crianças sem possibilidade de substituir roupa usada por peças novas

Depois de sempre ter tido emprego em unidades fabris, há quatro anos o nascimento da terceira filha obrigou-a a ser mãe a tempo inteiro. A morar num T2 cedido pela autarquia de Setúbal, com uma renda mínima de dez euros, o início do ano letivo trouxe-lhe mais uma preocupação: perceber se tem dinheiro suficiente para os lanches dos outros dois filhos adolescentes. Com os €275 extra que recebeu do Governo, na medida extraordinária de combate à inflação, Margarida recheou o frigorífico: “Tenho saudades de comer peixe.”

Apesar de todos os dias também ir buscar as refeições à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, por vezes tem de fazer cedências. Houve um mês em que, depois de pagar eletricidade (€60), água (€23) e internet (€60), não conseguiu comprar o passe social nem para ela nem para o primogénito. Ele foi de bicicleta para a escola; ela a pé até aos dois empregos. “Ou tiro o passe ou compro carne”, simplifica.

Idealmente, arranjar um trabalho, mesmo em part-time, das 9h30 às 14h30, que permitisse ir levar e buscar a filha mais nova à escola, e em que ganhasse mais do que os €400, seria o melhor para esta apaixonada por fotografia. Talvez assim conseguisse ter margem de manobra para os pedidos dos filhos. O mais velho, que há pouco tempo recebeu os ténis desejados depois de os saldos lhes baixarem o preço, oscila entre a compreensão e a inquietação de ter de esperar pela altura certa para ter o que quer.

Filho de pobre…

Dificilmente os descendentes de Margarida não farão parte do ciclo de pobreza estruturada cuja intergeracionalidade custa a quebrar. Uma criança que passe metade da sua infância em situação de pobreza tem mais de 40% de probabilidade de ser pobre aos 35 anos. “Não é um fenómeno exclusivamente português, mas é mais forte aqui do que em qualquer outro país da Europa”, sublinha Fernando Diogo. Para o comprovar, recorda um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), de 2018, sobre a mobilidade social, que indicava que uma família portuguesa com rendimentos mais baixos precisa de 125 anos – cerca de cinco gerações – até que os descendentes atinjam um salário médio.

Domingos Sousa, presidente da Cáritas Diocesana de Setúbal, tem lidado de perto com situações problemáticas como as de António e Margarida. “Quando uma crise surge, as pessoas mais débeis economicamente são as primeiras a ser afetadas, porque são as primeiras a ir para o desemprego. E, quando entramos num período de recuperação, são as últimas a sair da crise”, constata.

Sacrifícios Margarida Jesus precisa de dois part-times nas limpezas para amealhar €400. Tem três filhos

Na região de Setúbal, logo a seguir a Lisboa e ao Porto, o ciclo de pobreza estrutural protela-se no tempo e no seio das famílias mais carenciadas. “A nossa zona urbana é muito forte na área dos serviços, sobretudo no período mais intenso do turismo, e na atividade industrial. Mas, na crise anterior, entre 2008 e 2011, muitas empresas fecharam, postos de trabalho foram perdidos e as pessoas entraram em situação de rutura económica.”

Acrescenta o sociólogo Elísio Estanque, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que “os baixos salários e mesmo o salário médio em Portugal entraram numa estagnação geral desde o início da crise financeira de 2008, o que, agravado pelo desemprego e a flexibilização, favoreceu a aceitação sem grande resistência do flagelo da precariedade que é o caminho mais rápido para o empobrecimento e a resignação.”

O combate à precariedade faz-se, na opinião de Vieira da Silva, de forma estratégica e a curto prazo. “Estas pessoas, pelo nível de rendimento que têm, não atingem o patamar mínimo do IRS, por isso a redução de impostos diretamente sobre elas é muito pouco eficaz. Já os estímulos para transformar os vínculos de trabalho em vínculos mais permanentes são uma das formas mais eficazes. Relações de trabalho mais estáveis geram rendimento mais elevado.”

E um rendimento mais elevado suporta o peso da inflação de outra forma. A análise ao Inquérito às Despesas das Famílias, feita por Susana Peralta, com Mariana Esteves e Bruno P. Carvalho, inserida no projeto Portugal, Balanço Social, mostra como a perda do poder de compra traz ainda mais desigualdades.

As famílias mais pobres gastam 19% do seu orçamento em alimentação. Esta percentagem baixa para 11% nas mais ricas. Nos mais desfavorecidos (4% mais pobres do País), o peso da alimentação chega aos 22%. “Quanto menor for o orçamento, maior é a percentagem dedicada à alimentação. Quem tem um orçamento maior tem margem de manobra para substituir produtos mais caros por outros mais baratos, mas quem tem um orçamento mais pequeno tem uma margem mínima, porque já usava os produtos mais baratos. Por isso, vai sentir mais os efeitos da inflação no cabaz alimentar”, explica Fernando Diogo.

30,2%
Taxa de risco de pobreza de agregados com um adulto e pelo menos uma criança dependente, mesmo depois das transferências sociais

25,2%
Percentagem da população que vive em alojamentos com más condições. Na União Europeia, só o Chipre ultrapassa Portugal

1,6 milhões
O número de pensionistas que, em 2021, recebeu uma pensão de valor inferior ao salário mínimo nacional desse ano (665 euros)

4,5 milhões
Se não houvesse apoios sociais do Estado, este seria o número de pobres em Portugal, revelou recentemente a Pordata. Tendo em conta apenas os rendimentos, quase metade da população recebe menos de €554 mensais

Além disso, as famílias mais pobres gastavam 22% acima do que ganhavam, endividando-se, enquanto as mais ricas gastavam apenas 70% do que ganhavam e as poupanças ajudam a conter o choque inflacionário.

A verdade é que também há menos para consumir. “O aumento dos preços reflete a escassez. Por isso, estar só a despejar dinheiro para cima do problema não vai resolvê-lo. Vai ter de haver moderação no consumo e a subida do preço é uma maneira de o fazer. No bolso, as pessoas não veem o gasoduto Nord Stream parado, sentem é o gás a ficar mais caro”, explica Susana Peralta.

O valor da educação

Cláudia Martins e Miguel Vilhena, 46 anos, casados há 25, cresceram com dificuldades, passaram por muito e, quando estavam à espera de estabilidade, viram o tapete fugir-lhes dos pés. Nada a que já não estivessem habituados. Cláudia ficou órfã aos 18 anos. Miguel foi criado num complexo de habitação social em Vila Nova de Famalicão, onde abundavam toxicodependentes e alcoólicos, e se alguma coisa aprendeu com esta convivência foi que não queria ser como eles.

“Levamos uma vida de trabalho”, contam. Durante muito tempo, Cláudia foi empregada doméstica. Chegou a rodar por sete casas, sempre a correr, até conseguir um emprego num hipermercado. Em agosto, despediu-se, incapaz de suportar as condições de trabalho. “Sou diabética e precisava de fazer intervalos para comer, mas como havia falta de funcionários não me deixavam, controlavam até as idas à casa de banho”, recorda.

O salário de Miguel numa exploração vinícola, €850, não estica. “Nunca vou chegar a rico, trabalho para me manter à tona… Se não continuar a nadar, vou afogar-me.” Com uns biscates aqui e ali, consegue uma folga no orçamento – habilidade de mãos não lhe falta, basta ver as obras que fez na casa centenária, onde Cláudia e a mãe nasceram, pela qual pagam uma renda de €159. O casal faz o que pode para cortar nas despesas. Vasculha os supermercados à procura dos melhores preços, raramente usa o carro.

No fio da navalha As dificuldades espoletaram as crises de pânico de Joana Pires, mãe solteira com três filhas. Uma grande fatia dos €725 de salário é “comida” pela renda (€450)

O rosto de Miguel ilumina-se quando fala da filha, estudante universitária, caloira no curso de Turismo, em Viana do Castelo. “Levanto-me às seis horas para a levar ao comboio, demora cerca de uma hora a chegar, mas não tínhamos condições de lhe arranjar um quarto lá”, explica. “Herança não lhe vamos deixar, mas queremos que tenha as ferramentas para conseguir ser algo no futuro”, acrescenta Cláudia.

A escolaridade continua a ser o grande elevador social. Os números mostram que quanto maior é a qualificação, menor é a probabilidade de pobreza. “Não podemos continuar a olhar a escola em blocos separados. Ter acesso ao pré-escolar é decisivo para as crianças terem bons resultados nos ensinos Básico e Secundário, para depois chegarem ao Ensino Superior”, reforça Vieira da Silva. Opinião partilhada por Fernando Diogo, sublinhando que “há vários estudos que revelam que quanto mais precoce for a inserção da criança no sistema paraescolar (ensino pré-escolar e creche), maior será o sucesso escolar e a rentabilidade ao longo da sua vida”.

Em 2021, Portugal estava na última posição entre os Estados-membros da União Europeia com apenas 59,5% das pessoas entre os 25 e os 64 anos com, pelo menos, o Ensino Secundário completo (Eurostat).

Originalidade portuguesa

A verdade é que a educação continua a proteger da pobreza, mas não da mesma maneira. “Há um efeito geracional que tem a ver com menores oportunidades de trabalho para os jovens, uma originalidade portuguesa no contexto europeu. No resto da Europa, os jovens não têm esta angústia, encontram emprego com facilidade”, aponta Fernando Diogo.

Com a taxa de desemprego fixada nos 6% (312 500 pessoas), tal como a média da UE, “62% dos jovens em Portugal não têm um contrato permanente, o que significa que não conseguem sequer decidir o seu futuro”, aponta Ana Mendes Godinho, atual ministra da pasta do Trabalho. 

Veja-se o exemplo de Joana, 46 anos, licenciada em Psicologia Social e do Trabalho, que hesita em dar a cara e até em reconhecer o quão árduo tem sido o seu percurso. “Não quero ser vista como uma coitadinha”, explica.

Nunca conseguiu trabalho na sua área, fazia formações e voluntariado que, naturalmente, não pagavam as contas. “Quando nos sentimos derrotados ou mostramos desespero nas entrevistas, ninguém se compadece com a nossa situação e fazem logo julgamentos. Posso não ser muito boa no marketing pessoal, mas sou boa a trabalhar. Precisava era de uma oportunidade”, desabafa.

Mãe solteira de um rapaz de 13 anos, sente que a falta de retaguarda familiar não ajudou nas candidaturas a empregos. “Preferi ficar sozinha, mas paguei caro por essa independência. As dificuldades de uma família monoparental são enormes, levei com todas as portas na cara”, diz. Sobreviveu à custa de biscates.

O Rendimento Social de Inserção foi o último recurso, recebia €207 e, com dinheiro ganho a limpar as escadas do seu prédio, desenrascava-se. “Houve uma altura em que estava tão enterrada em problemas que não conseguia vislumbrar mais nada”, conta. “A minha família ajudava-me, mas não tinha a noção exata daquilo por que estava a passar.”

Por via do Click, projeto que trabalha as áreas da empregabilidade de públicos vulneráveis e da responsabilidade social das empresas, desenvolvido pela Rede Europeia Antipobreza, conseguiu um estágio num hipermercado com o qual, mais tarde, celebrou um contrato a tempo parcial. “O trabalho fez toda a diferença para a minha autoestima, antes parecia que não tinha um lugar no mundo”, admite.

O salário é incerto, tanto ganha €800 líquidos como pouco mais de €400, depende das horas feitas. Mora no apartamento comprado pelos pais quando foi estudar para o Porto, e só pelo facto de não ter esse encargo com a habitação sente-se uma privilegiada. “Consigo fazer face às despesas porque me habituei a viver com pouco e, como sou vegetariana, não gasto muito em alimentação”, diz. Ainda assim, adia a consulta no oftalmologista, porque não consegue pagar uns óculos, e não sabe se algum dia conseguirá fazer férias. Mas sonhar não paga imposto.

A importância dos apoios

Auita tem 2 anos e as bochechas rechonchudas mais graciosas. De chucha, aninha-se no colo da mãe quando sai da creche, onde está quase 12 horas por dia, antes de ser posta às costas no “bambaram”, marsupial em “panu di pinti” (pano de pente), tecido símbolo etnográfico da Guiné, que ajuda Artimiza a carregá-la. À chuva ou debaixo de um sol escaldante, mãe e filha percorrem ruas e transportes públicos entre Queluz, onde moram, o Cacém, onde fica a creche, e Algés, onde trabalha a imigrante.

Saem de casa antes de o sol nascer e chegam perto do ocaso. Quando a porta do quarto alugado se fecha, o mundo de Artimiza e da pequena Auita resume-se, em dez a 12 metros quadrados, a duas camas, um roupeiro, uma cómoda, uma televisão e muitos sacos com a vida embalada.

Refazer a vida “É uma luta constante, nunca sei o diade amanhã”, diz Manuela

Artimiza Fernandes, 34 anos, nascida e criada na Guiné, chegou sem nada a Portugal, em 2018, para ser operada a um pé. Conseguiu alugar um quarto, por €250/mês, num rés do chão, com janela, estore, um pano preso a fazer de cortina e humidade a infiltrar-se na parede.

Com o bacharelato em Turismo, mais formação em Administração e Secretariado, já em Portugal fez o curso de Auxiliar de Saúde e Geriatria no Centro de Formação Talento. O apoio do Banco do Bebé – Associação de Ajuda ao Recém-Nascido foi essencial para obter todos os papéis legais que lhe permitem residir e trabalhar no nosso país, por agora a limpar duas casas particulares, juntando €670 por mês.

Ainda lhe falta tratar do abono de família do bebé, uma das prestações sociais que Vieira da Silva defende: “Os acréscimos do abono de família, particularmente nas crianças muito jovens, são muito relevantes, porque é, muitas vezes, a existência de crianças na família que faz descer o agregado familiar para baixo do limiar de pobreza. Os apoios têm muita eficácia para retirar trabalhadores da pobreza.”

Mesmo com a gratuitidade das creches (em vigor desde 1 de setembro), dos manuais escolares, dos cheques-dentista e de alguns transportes públicos, as dificuldades entre os mais pobres persistem.

Outra hipótese, menos pacífica e defendida, em 2014, pelo Fundo Monetário Internacional, é o chamado imposto negativo: os que têm os salários mais baixos recebem uma parte do imposto, em vez de o pagarem. “Esta espécie de redistribuição dos rendimentos tem um efeito económico positivo”, defende o ex-ministro.

201 791
Beneficiários a receber Rendimento Social de Inserção, em setembro

5,9%
População em risco de pobreza que não consegue fazer uma refeição de carne/peixe, pelo menos, de dois em dois dias

€151
Diferença entre o salário mínimo (€705) e o rendimento mensal abaixo do limiar de risco de pobreza (€554)

12,5%
Percentagem de aumento da pobreza só no primeiro ano da pandemia. O efeito que a Covid-19 teve no setor do Turismo explica porque Portugal foi dos países europeus onde o número de pobres mais cresceu

Também a economista Susana Peralta não se opõe ao complemento do rendimento dos mais pobres “com transferências sociais que deveriam ser muito mais generosas”. E relembra outra solução: “Faziam parte da agenda de Mário Centeno, em 2015, os subsídios aos salários mais baixos, em que o Estado pagaria um extra à empresa que contrata esse trabalhador – no fundo, dando dinheiro a essas pessoas através do mercado de trabalho.”

Elísio Estanque não tem dúvidas: “Sem as prestações sociais, as camadas em risco de pobreza absoluta seriam cerca do dobro. As políticas públicas e o papel regulador do Estado constituem um fator essencial de contenção do agravamento da pobreza e também das desigualdades.”

A Pordata revelou no mês passado as suas contas: sem os apoios sociais, 4,5 milhões de portugueses viveriam abaixo do limiar da pobreza, pois os seus rendimentos não chegam para a ultrapassar.

Os “três D”

Ainda segundo a Pordata, cerca de 30% das famílias monoparentais e das famílias onde existem dois adultos com três ou mais crianças estavam, em 2020, em situação de pobreza.

Joana Pires trabalha há 21 anos na cantina do Hospital Pedro Hispano, em Vila Nova de Gaia, e “nunca saiu da cepa torta”. Uma grande fatia dos €725 de salário é “comida” pela renda – €450 por um T1 no centro de Gaia –, a mais barata que conseguiu encontrar. Com esta mãe solteira, de 39 anos, vivem as duas filhas mais novas, de 14 e 2 anos. A mais velha, com 17, ficou desde pequena com os avós maternos. “Não tinha condições para a ter comigo”, conta. Joana não tem esperanças de conseguir habitação social e só pode candidatar-se ao apoio ao arrendamento quando saldar as dívidas ao senhorio, que já a ameaçou com o despejo.

O grande suporte é dado pelos pais, reformados, com quem janta todos os dias e a quem pede regularmente dinheiro para saldar despesas imprevistas. “Se não fossem eles, estava debaixo da ponte há muito tempo”, reconhece. Outra ajuda considerável vem do abono de família, mas quando a filha mais nova fizer 3 anos, em janeiro, baixará de €547 para €297, o que tornará os seus cálculos ainda mais complicados. O pai das filhas mais velhas nunca pagou pensão de alimentos. “O da mais nova adora a filha e, quando pode, dá algum dinheiro”, explica.

As contas de Joana, essas, caem todos os meses. Só a do infantário é de €123. “Já não tenho gás há 15 dias, aumentou imenso… Tem sido uma dor de cabeça.” As crises de ansiedade pioraram e, recentemente, voltou a ter ataques de pânico, até durante o trabalho. “Bloqueio completamente, o coração fica muito acelerado, tenho suores frios. O médico de família prescreveu-me um antidepressivo, mas gostava de ser também acompanhada por um psicólogo.” Para isso, terá de aguardar nas listas de espera.

A questão da saúde mental tem sido descurada. “Viver o dia a dia no fio da navalha, ou abaixo disso, porque a navalha já está a cortar, implica um desgaste emocional intenso. Têm de existir respostas do Serviço Nacional de Saúde”, aponta Elizabeth Santos. “Foca-se muito na promoção da empregabilidade destas pessoas, sem muitas vezes preparar o mercado de trabalho para as integrar, colocando o ónus sobre elas e criticando-as, sem questionar a intervenção que é feita.”

Fernando Diogo fala dos “três D da pobreza”, que têm um impacto nos indivíduos e nas suas famílias: Divórcio, doença (ou morte) e desemprego. “Há muitas pessoas vulneráveis que entram numa situação de pobreza ou veem-na agravar-se por causa destas contingências pessoais”, sublinha.

É entre os independentes e os precários, com trabalho sem proteção nem regras, que a pobreza é mais intensa

Vieira da Silva, ex-ministro do Trabalho

Foi o caso de Manuela Ribeiro, 32 anos. Em 2020 bateu com a porta de casa, farta da violência psicológica do parceiro e, desde então, não conseguiu refazer a sua vida. Com a separação, a situação financeira ficou ainda mais frágil. Para conseguir a guarda partilhada da filha, hoje com 7 anos, não descansou até encontrar um novo lar. “Não queria que a CPCJ [Comissão de Proteção de Crianças e Jovens] tivesse argumentos para não me dar a menina.”

Na zona oriental do Porto encontrou um T2 pequenino, mas renovado, e paga sozinha €490 de renda. Todos os dias se desloca para a Foz, na outra ponta da cidade, onde trabalha num hipermercado, a ganhar €730. “Fartei-me de procurar, mas não encontrei nada mais perto nem mais barato. Apesar de os meus pais serem fiadores, ninguém queria fazer contrato de arrendamento, diziam que não tinha rendimentos suficientes.” 

Na verdade, o salário é contado aos tostões. “Dá para sobreviver, porque tenho a ajuda dos meus pais, que me pagam a alimentação.” Cada vez com mais dificuldade, admite, já que com a subida dos preços, a conta do supermercado aumentou de €150 para cerca de €250 mensais. Na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima arranja roupa para si e para a filha, além de apoio psicológico. “É uma luta constante, nunca sei o dia de amanhã”, confessa, angustiada.

Piores do que há 12 anos

Para que daqui a oito anos seja cumprido o primeiro dos 17 objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, fixada pelas Nações Unidas, ainda muito há a fazer. Não será fácil reduzir o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social na União Europeia em, pelo menos, 15 milhões de pessoas, incluindo pelo menos cinco milhões de crianças.

Por cá, do programa do Governo fazia parte a meta de retirar 660 mil pessoas da pobreza até 2030, entre as quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores. Em dezembro de 2021, ou seja, na anterior legislatura, foi aprovada a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 (ENCP).

Foi definido, então, um prazo de 180 dias, após a entrada em vigor da resolução do Conselho de Ministros, para se definir um plano de ação e uma estrutura para colocar no terreno a estratégia. O primeiro passo foi apenas dado em meados de outubro, com a escolha de Sandra Araújo – anterior diretora executiva da Rede Europeia Antipobreza Portugal – para o cargo de coordenadora da ENCP.

Com vergonha Nem os pais de Joana sabem as dificuldades por que passa esta licenciada. “O trabalho fez toda a diferença para a minha autoestima”

Em resposta às questões da VISÃO, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social sublinha que, apesar do atraso, “o Governo já colocou em marcha um conjunto de medidas”, entre as quais destacava a Garantia para a Infância (prestação social complementar ao abono de família para combate à pobreza extrema entre crianças e jovens), o reforço dos valores do abono de família e a entrada em vigor da gratuitidade de creches (para crianças nascidas após 1 de setembro de 2021).

A urgência em fazer seguir a ENCP é reconhecida pelos especialistas ouvidos pela VISÃO. Fernando Diogo recorda que “o timing do aparecimento da estratégia coincidiu com a pandemia e com a guerra, mas o instrumento tem de ser colocado em prática”. E remata: “Estamos só a reagir à situação e isso faz-nos perder a guerra do desenvolvimento. E não sei se isto é uma prioridade para o País… Até agora não foi.”

Não foi. A prova está nos números: mesmo com apoios sociais, 11,2% da população empregada vive abaixo do limiar da pobreza. Esta era a percentagem em 2020 – mais do que em 2008, ano do início da anterior crise, que era de 10,3%. A taxa de desemprego não estava muito distante (7% em 2020; 7,6% em 2008).

Ou seja, os empregos, os vínculos e os salários continuam miseráveis para uma boa fatia da população. Ontem como hoje. E seguimos andando para trás.

Palavras-chave:

Mais na Visão

Mais Notícias

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Raquel Prates assume: “Tenho uma enorme admiração pela filha do Juan”

Raquel Prates assume: “Tenho uma enorme admiração pela filha do Juan”

Caras conhecidas atentas a tendências de moda

Caras conhecidas atentas a tendências de moda

Razer Kishi Ultra: O comando para jogar onde quiser

Razer Kishi Ultra: O comando para jogar onde quiser

Capitão Salgueiro Maia

Capitão Salgueiro Maia

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

É o fim do mundo dos escritórios como o conhecemos, mas está tudo bem!

É o fim do mundo dos escritórios como o conhecemos, mas está tudo bem!

Bioblitz: A festa que celebra a biodiversidade do Parque de Serralves

Bioblitz: A festa que celebra a biodiversidade do Parque de Serralves

João Abel Manta, artista em revolução

João Abel Manta, artista em revolução

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Em “Cacau”: Marco e Cacau assumem o namoro a dias de serem pais

Em “Cacau”: Marco e Cacau assumem o namoro a dias de serem pais

VOLT Live: Atlante, o operador que quer ter a maior rede de carregamento rápido e ultrarrápido

VOLT Live: Atlante, o operador que quer ter a maior rede de carregamento rápido e ultrarrápido

Tesla despede mais de 14 mil trabalhadores

Tesla despede mais de 14 mil trabalhadores

Na Culturgest, Tiago Rodrigues conta-nos histórias de quem presta ajuda humanitária na guerra

Na Culturgest, Tiago Rodrigues conta-nos histórias de quem presta ajuda humanitária na guerra

No primeiro dia de visita aos Países Baixos, Letizia surpreende com ombros nus e saia prateada

No primeiro dia de visita aos Países Baixos, Letizia surpreende com ombros nus e saia prateada

Investigação da FMUP cria novo biomaterial para tratar infeções ósseas

Investigação da FMUP cria novo biomaterial para tratar infeções ósseas

Na CARAS desta semana, o casamento de sonho de Dânia Neto e Luís Matos Cunha

Na CARAS desta semana, o casamento de sonho de Dânia Neto e Luís Matos Cunha

Dânia Neto usou três vestidos no casamento: os segredos e as imagens

Dânia Neto usou três vestidos no casamento: os segredos e as imagens

Os lugares desta História, com Isabel Stilwell: Elvas, capital do Império onde o sol nunca se põe

Os lugares desta História, com Isabel Stilwell: Elvas, capital do Império onde o sol nunca se põe

Já nasceu o filho de Idevor Mendonça: as primeiras imagens do bebé

Já nasceu o filho de Idevor Mendonça: as primeiras imagens do bebé

40 empresas portuguesas marcam presença na 62ª edição do Salão do Móvel de Milão

40 empresas portuguesas marcam presença na 62ª edição do Salão do Móvel de Milão

Semana em destaque: Musk volta a gritar

Semana em destaque: Musk volta a gritar "Carro autónomo", mas poucos acreditam

Os lugares desta História, com Isabel Stilwell: Filipe I de Portugal, por fim

Os lugares desta História, com Isabel Stilwell: Filipe I de Portugal, por fim

Coachella 2024: os looks dos primeiros dias do festival que dita tendências

Coachella 2024: os looks dos primeiros dias do festival que dita tendências

Chief Innovation Officer? E por que não Chief Future Officer?

Chief Innovation Officer? E por que não Chief Future Officer?

No Porto, interiores com identidade clássica e conforto intemporal

No Porto, interiores com identidade clássica e conforto intemporal

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

O romântico vestido de noiva de Dânia Neto

O romântico vestido de noiva de Dânia Neto

A gestão aos gestores

A gestão aos gestores

As escolhas de guarda-roupa de Letizia e Máxima durante a visita do reis de Espanha aos Países Baixos

As escolhas de guarda-roupa de Letizia e Máxima durante a visita do reis de Espanha aos Países Baixos

ULS precisam de meios para contratar psicólogos face à

ULS precisam de meios para contratar psicólogos face à "enorme carência"

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Rir é com ela!

Rir é com ela!

Lugar reservado: seleção de 27 cadeiras e poltronas

Lugar reservado: seleção de 27 cadeiras e poltronas

"Unhas de manteiga": a tendência de primavera que deixou Selena Gomez rendida

Juice Ultra 2: Uma nova forma de carregar carros elétricos

Juice Ultra 2: Uma nova forma de carregar carros elétricos

Montenegro diz que

Montenegro diz que "foi claríssimo" sobre descida do IRS

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

25 de Abril contado em livros

25 de Abril contado em livros

As Revoluções Francesas na VISÃO História

As Revoluções Francesas na VISÃO História

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

Celebridades vestem-se a rigor para o desfile pré-outono 2024 da Dior, em Nova Iorque

Celebridades vestem-se a rigor para o desfile pré-outono 2024 da Dior, em Nova Iorque

50 anos do 25 de Abril: 14 livros com vista para a liberdade

50 anos do 25 de Abril: 14 livros com vista para a liberdade

Empregos rotineiros aumentam risco de demência. O que diz um novo estudo

Empregos rotineiros aumentam risco de demência. O que diz um novo estudo

DS E-Tense Performance: Serão assim os superdesportivos do futuro?

DS E-Tense Performance: Serão assim os superdesportivos do futuro?

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites