Anselmo Borges é uma das vozes mais livres da Igreja católica em Portugal. Padre da Sociedade Missionária Portuguesa, o também professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra comenta, em entrevista à VISÃO, a “tragédia” dos abusos sexuais de menores, que em Portugal tem sido particularmente polémica, sobretudo desde a criação da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht e que ainda esta semana venceu o Prémio Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) 2022.
Em seu entender, a que se devem as dificuldades da Igreja portuguesa em lidar, com transparência, com este processo dos abusos sexuais de menores?
Penso que qualquer família (a Igreja deve ser uma família) tem dificuldade em enfrentar – é a palavra – o crime hediondo cometido, a desonra, a vergonha, o mau nome que isso provoca. Felizmente, a Conferência Episcopal Portuguesa, com o bispo José Ornelas à frente, criou uma Comissão Independente aonde se pede insistentemente que os abusados e suas famílias tenham a coragem de ir, através dos vários meios de acesso, denunciar esses abusos. Penso que este é um imenso favor que fazem à Igreja, para que esta chaga acabe definitivamente. Não conheço maior condenação dos abusos de menores do que as palavras de Jesus. Ele disse: “Deixai vir a mim as criancinhas”, mas acrescentou: “Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar.”
Na sua opinião, os que olham sobretudo para a preservação da instituição em detrimento do sofrimento das vítimas, o que temem? Que a Igreja perca autoridade moral?
Esse foi o cúmulo da tragédia. Em vez de se defender as vítimas, indo ao seu encontro com todos os meios possíveis de defesa e apoio, antepôs-se a salvaguarda da instituição. Isto é absolutamente intolerável. É necessário ir ao encontro da verdade. Jesus também disse: “A verdade libertar-vos-á”. Como disse, a denúncia de todos os casos, com todas as consequências, em ordem à purificação da Igreja e ao devido pedido de perdão e reparação, é um favor à Igreja, para que ela se purifique, acabe com esta tragédia, e então ela própria possa contribuir para que se ponha termo a essa mesma tragédia nas famílias e outras instituições. De facto, um dos aspetos mais dramáticos desta situação é que as pessoas confiavam plenamente na Igreja, nos padres – ainda há dias uma senhora, a caminho de Fátima, dizia: os nossos pais entregavam-nos para a catequese “sem reservas”. Ora, foi precisamente essa confiança que foi traída.
Um dos aspetos mais dramáticos desta situação é que as pessoas confiavam plenamente na Igreja, nos padres. Ora, foi precisamente essa confiança que foi traída
A Igreja portuguesa tem estado com o Papa Francisco e, nomeadamente, na luta contra aquilo que o Papa designou como a “peste” do clericalismo?
Demasiadas vezes a Igreja oficial ignorou e encobriu. Com a criação da Comissão Independente, mostrou que quer realmente caminhar com transparência no sentido da “tolerância zero”, que o Papa Francisco insistententemente exige: mais uma vez, no seu livro de conversas com o jornalista argentino Hernán Reys Alcaide, Vi Chiedo in Nome di Dio (Peço-vos em nome de Deus), que acaba de ser publicado em italiano sob a forma de decálogo. O primeiro mandamento diz respeito precisamente à erradicação dos abusos sexuais de menores na Igreja: “Peço que se erradique na Igreja a cultura dos abusos”. Que a Igreja não queira justificar esses abusos com o argumento de que é um fenómeno “generalizado em todas as culturas e sociedades”. Foram “milhares de vidas” destroçadas precisamente por quem tinha por missão cuidar delas e protegê-las. “Tudo o que façamos para tentar reparar os danos que causámos nunca será suficiente”; “um só caso é uma realidade monstruosa.”
E a “peste” do clericalismo?
Ao referir a “peste” do clericalismo, toca num aspeto essencial, decisivo. Clericalismo vem de clero, que implica a ordenação sacerdotal e, com ela, o sacerdote como alter Christus (“outro Cristo”) e um poder sacro que pode ser dramática e patologicamente deletério. Jesus tinha dito: “Sois todos irmãos”. Mas, com a ordenação sacerdotal, apareceu uma Igreja com duas classes: clero e leigos. Segundo o Novo Testamento, sacerdote só Jesus Cristo e o o povo sacerdotal. Assim, dois eminentes teólogos atuais, jesuítas como o Papa Francisco, exigem como urgente a necessidade de desacerdotalizar os ministérios – na Igreja haverá ministérios ordenados, mas não ordenação sacerdotal. Jorge Costadoad escreveu: “A versão sacerdotal do cristianismo converteu-se numa expressão patológica do mesmo.” González Faus pede que “desapareça toda a conotação ‘sacerdotal’ no ministério… A rica teologia dos Evangelhos sobre o pastor, o padre (pai), pode dar perspetivas muito mais cristãs do ministério do que essa espécie de ‘divinização’ que o termo sacerdote sugere.”
A mudança só se dará se cada católico e católica (a começar pelos cardeais, bispos, cónegos, padres…) perguntar a si mesmo, a si mesma: Em quem acredito verdadeiramente?
Estas clivagens não dizem apenas respeito à questão dos abusos. Que outros aspetos também deveriam ser discutidos e alterados para que o caminho da Igreja possa prosseguir?
O fim do celibato obrigatório, o reconhecimento ativo da igualdade das mulheres, uma Igreja verdadeiramente evangélica, simples, que põe termo a rituais secos, uma Igreja que inclui e não exclui (estou a referir-me, por exemplo, à possibilidade da comunhão para divorciados recasados e uma bênção para casais homossexuais), que fala uma linguagem que as pessoas entendam, também os jovens… Como explico no meu último livro O Mundo e a Igreja. Que futuro?
Tendo em conta todas estas discussões, em que medida está o Concílio Vaticano II por cumprir, agora que perfazem 60 anos do seu início?

Para mim, o núcleo da revolução conciliar consistiu na tomada de consciência de que a Igreja é, antes de mais, o Povo de Deus, só depois vem a hierarquia como serviço. Diria, por isso, que essencialmente falta cumprir o processo de democratização, que Francisco quer agora levar a cabo com a sinodalidade: todos têm voz na Igreja e o que é de todos deve ser decidido por todos. O Papa Francisco já comunicou que, “com o objetivo de dispor de um tempo de discernimento mais amplo”, que o próximo Sínodo, precisamente sobre a sinodalidade, terá duas sessões: a primeira de 4 a 29 de outubro de 2023 e a segunda em outubro de 2024.
Mas, aqui chegados, permita que lhe diga: quando falamos da Igreja e da sua necessária e urgente renovação, pensamos nas estruturas, esquecendo o essencial, que é a fé. A mudança só se dará se cada católico e católica (a começar pelos cardeais, bispos, cónegos, padres…) perguntar a si mesmo, a si mesma: Em quem acredito verdadeiramente? É no Deus de Jesus que ponho a minha fé, a minha confiança? O Deus bom, Pai e Mãe de todos, que só quer o bem, a felicidade, a plena realização de todos os seus filhos e filhas?