O relógio ainda não marcava 10 horas quando a VISÃO encontrou André Malhado a beber o seu primeiro café da manhã. Estava pronto para começar o treino do dia, o terceiro de sete semanais que o vão ajudar a completar a primeira competição Ironman em que vai participar, uma das provas desportivas mais exigentes do mundo. “É ali que eu nado todas as terças, quintas e sábados”, conta, apontando para uma das piscinas do Complexo Desportivo da Abóboda, em São Domingos de Rana, visíveis através do vidro do bar. Nos resto dos dias, André faz bicicleta ou corrida, mas há vezes em que realiza dois treinos diários.
“Nunca tinha pensado fazer este tipo de prova, sempre preferi outros desportos”, continua a explicar. “Comecei com as corridas em 2015 nas diversas distâncias até à maratona [42 quilómetros], em 2017 comecei nas andanças do triatlo e a maior distância que já fiz até agora foi o Half Ironman”, diz o desportista. Nesta prova, também conhecida por Ironman 70.3, os atletas têm de nadar durante 1,9 quilómetros, percorrer 90 quilómetros de bicicleta e ainda correr 21,1 quilómetros.
André Malhado já realizou, ao todo, 4 desafios deste tipo, mas agora está inscrito, pela primeira vez, numa competição Ironman completa, que inclui 3,8 quilómetros de natação, 180 quilómetros de ciclismo e 42,2 quilómetros de corrida. E escolheu Cascais, em Portugal, para a sua primeira prova neste nível de intensidade. Os treinos, um dos quais a VISÃO acompanhou, são realizados nas piscinas e ao longo da Costa do Sol até ao Guincho, um cenário tão belo que quase parece que não custa treinar para uma das provas mais desafiantes a nível mundial.
Apesar de fazer desporto desde muito jovem – com cerca de 8 anos começou a praticar ténis e outros desportos ligados ao mar -, foi já mais recentemente que o engenheiro civil de 38 anos, diretor de produção na empresa alemã HÖRMANN, começou a desafiar-se ainda mais fisicamente. Porquê? Para se conseguir desligar do trabalho intenso, sim, mas a história é muito muito mais complexa, e antiga, do que isso.
Uma promessa que o vai levar longe
“Perdi o meu pai quando tinha nove anos e a partir daí um dos meus grandes objetivos de vida foi construir uma família e ter filhos”, conta André Malhado. Depois de se juntar com a atual companheira, começou a pensar ter filhos e várias vezes o resultado do teste de gravidez era positivo. “Mas pouco tempo depois, a gravidez não desenvolvia”, refere, acrescentando que, “com o passar do tempo, a frustração começou a aumentar e a pressão social também”. “Uma simples pergunta, “então e filhos, não estão a pensar nisso?” pode causar um efeito devastador quando se está nesta situação”, afirma.
Foram dois anos de insucesso, que levou o casal a recorrer, com o apoio da família e amigos, a tratamentos de fertilidade. “A carga psicológica e emocional é brutal, és colocado numa posição para a qual nunca te preparaste ou até achaste que só ia acontecer com os outros. A partir desse momento fui colocado à prova, e foi aqui que começou o verdadeiro Ironman”, garante o desportista. “Os tratamentos são de uma violência gritante, principalmente para a mulher”, diz ainda.
O processo de tratamentos durou três anos e foi durante esse caminho que o desportista tentou encontrar um refúgio mental para lidar de uma maneira mais positiva com tudo o que estava a acontecer na sua vida pessoal. “Achei que colocando-me também à prova poderia de alguma forma acompanhar o processo doloroso e foi nessa altura que prometi a mim mesmo que iria ao limite das minhas forças físicas e mentais para que a natureza fosse meiga para nós”. A partir deste pensamento, André Malhado fez uma promessa: se conseguisse ter um filho, faria um Ironman completo.
Sete anos depois do início das tentativas de concretizar um dos seus sonhos, o casal conseguiu ter uma menina, agora com 3 anos, e logo atrás veio um menino, com 2. A promessa será cumprida no dia 15, em Cascais, onde se esperam mais de 1500 pessoas a realizarem esta competição mundial, embora a maioria dos atletas seja do Reino Unido. Estão inscritas 194 mulheres, mas o número desceu desde o ano passado, em que participaram 225 atletas femininas na prova.
Para o Ironman 70.3, estão inscritos quase 3 mil desportistas, e nesta competição também os britânicos vão ser predominantes, com os portugueses a “ocuparem” apenas 16% dos lugares de todos os inscritos na prova. Já em relação a esta competição, o número de mulheres inscritas aumentou relativamente ao ano anterior: 613 este ano, 454 em 2021, de acordo com a organização do evento em Portugal.
Apesar de acontecer desde 1978, esta é a 5ª edição do Ironman em Portugal, que decorre nesta cidade desde o primeiro ano. E todos são capazes de o concretizar, afirma André Malhado, com trabalho árduo e persistente e força de vontade. “Numa das alturas mais escuras da minha vida, tive de fazer uma busca interior para encontrar a força necessária para lidar com os desafios que me colocaram e encontrei neste desporto a força que precisava para a minha evolução interior, aumento da minha resiliência, força física, mental e espírito de sacrifício”, afirma. “Só saindo da minha zona de conforto me sinto a evoluir e a vida deve ser mesmo assim.”, acrescenta o atleta.
Nuno Braga, que também vai realizar a prova completa, segue o mesmo pensamento. “Descobri que a condição física trabalha-se, o mais importante é ter um objetivo, é isto que eu tenho criado todos os anos, um objetivo que dá motivação e sentido aos treinos. Sem objetivos não há motivação” afirma à VISÃO o engenheiro eletrotécnico de 50 anos, que vai voar da Ilha Terceira, Açores, para concretizar mais este objetivo.
Depois de mais de 20 anos sem fazer exercício e com maus hábitos alimentares, Nuno Braga passou a ser seguido por uma nutricionista e percebeu que “comer bem é fácil”. Ao mesmo tempo, começou a nadar durante o tempo em que esperava que a filha terminasse a aula de natação. Durante este processo, conseguiu perder 30 kg e passou a introduzir 30 minutos (mais tarde uma hora) por dia de natação no período de almoço,
Um acidente que motivou o desafio
Em 2012, Nuno Braga teve um acidente que, sem saber na altura, seria mais um passo na vontade de se desafiar ainda mais fisicamente. Depois de sofrer uma queda de um escadote e de realizar uma complexa cirurgia à coluna, passou por um processo de recuperação que envolveu mais de 6 meses de baixa médica. “A natação foi fundamental para a recuperação”, conta.
“Houve um dia que marquei no conta-quilómetros do carro a distância da Silveira, uma zona balnear em Angra do Heroísmo, à Vila Maria, outra zona balnear. Verifiquei que tinha cerca de 1500 metros registados e pensei que, se na piscina fazia 1500 metros, então conseguiria fazer a distância de Vila Maria à Silveira”, explica o desportista. “Decidi fazer a travessia, cheguei a Silveira à espera de encontrar alguém conhecido, mas isso não aconteceu, então tive de voltar para o ponto de partida a nado e foi assim que fiz os meus primeiros 3 quilómetros em águas abertas”, conta.
A partir daí, Nuno Braga não parou mais de realizar travessias a nado inter-ilhas e o seu “currículo” de viagens deste tipo já está muito bem preenchido, tendo já feito, por exemplo, duas travessias a nado entre o Faial e o Pico, percorrendo uma distância de 9 quilómetros, duas travessias entre São Jorge e o Pico, de 20 quilómetros, e uma travessia a nado entre a Terceira e São Jorge, com 41 quilómetros percorridos.
Entre várias outras provas, o engenheiro eletrotécnico já realizou um triatlo de longa distância em Coimbra, organizado pela MultiSport Portugal, que envolve 3,8 quilómetros a nado, 180 quilómetros de bicicleta e 42,2 quilómetros de corrida, as mesmas distâncias percorridas no Ironman. “Só depois da natação é que veio a corrida e logo de seguida o ciclismo, foi uma aprendizagem e descoberta em todas as modalidades, desportos que nunca tinha feito”, explica. “Todos somos capazes! Aprender a lidar com as nossas limitações leva-nos mais longe”, garante ainda.
Nuno Braga e André Malhado são dois dos atletas que se econtram nos 10% de portugueses inscritos na prova deste ano. Em 2023, podem e devem ser muitos mais, afirmam os dois desportistas. “Aconselho todos, nem que seja por uma vez, a tentarem sentir esta emoção que é fascinante, todo o processo mental e físico dá uma realização pessoal que não é possível de outra forma”, acredita André Malhado. E desafiar-se a si próprio pode começar em pequenos gestos, remata ainda. “Não precisam de fazer um Ironman, podem sair do sofá e ir andar a pé. A mensagem que vou sempre tentar transmitir acima de tudo aos meus filhos é que sem esforço e dedicação nada se consegue, e quando queremos muito uma coisa conseguimos lá chegar, basta visualizar o nosso objetivo”.
O caminho até ao dia da prova é o segredo
“A motivação está bem presente nos atletas, até porque quando se inscrevem numa prova desta exigência eles sabem o que implica”, começa por dizer à VISÃO Rodrigo Baltazar, treinador de atletas amadores desde 2014 no Clube Desportivo Estoril Praia, acrescentando que, apesar disso, “existe sempre um trabalho em conjunto” que “acaba por ser uma coisa natural”.
Rodrigo Baltazar já realizou várias provas Ironman: em 2010, na Florida, EUA, dois anos depois, em Woodlands, Texas, em que se qualificou para a final em Kona, no Hawaii, e em 2014, novamente no Texas, conseguindo a 2ª qualificação para o Hawaii. Agora, ajuda os atletas a concretizarem o mesmo objetivo.
E apesar de o foco do grupo estar nas provas de longa distância, o treinador trabalha também com pessoas que realizam todos os tipos de competições além do Triatlo. “Temos atletas a competir em duatlos, aquatlos, SwimRun, triatlos cross, provas de atletismo, ciclismo e natação de águas abertas”, o que “faz todo o sentido”, já que “servem de preparação para a principal atividade” do clube, realça.
Em relação ao número de mulheres que realizam provas deste tipo, Rodrigo Baltazar diz que há “bastantes atletas femininas na equipa” e que algumas delas já fizeram provas na distância Ironman este ano. “No dia 15, temos mais uma atleta a competir. Para nós, no clube, termos atletas femininas é super importante”, afirma.
Mas mais exigente do que a prova, o treinador diz ser o treino de preparação o “maior desafio”. “Na maioria, são pessoas que têm a sua profissão, família e conjugar tudo é, por vezes, a grande dificuldade. O caminho até ao dia da prova é, na minha opinião, o segredo, a parte mais gira desse percurso”, acredita.
Rodrigo Baltazar realiza treinos diários com os seus atletas, apesar de haver dias de descanso ou de recuperação ativa, em que se fazem exercícios de baixa intensidade. “Como o ciclismo é onde [os atletas] passam mais de metade do tempo de prova, é fundamental fazer quilómetros e muitas hora em cima da bicicleta. Às vezes, os únicos dias em que é possível fazê-lo é ao fim de semana”, afirma o treinador.
A corrida também tem um papel fundamental na preparação das provas, explica ainda, e é necessário também fazer treinos muito longos, às vezes até percorrer quase a totalidade da distância que se faz no dia da prova. “Muito importantes são os treinos de transição de bicicleta para corrida. Fazer boas corridas depois de pedalar 180 quilómetros não é nada fácil e isso exige muitos treinos específicos”, esclarece.
O treinador acrescenta ainda que a natação é onde se nota menos diferença de treino para as outras distâncias, já que o volume de treino é muito idêntico durante quase toda a época, apenas varia o tipo de trabalho específico.
Uma discussão entre amigos, no Havai, sobre qual seria o atleta mais resistente, o nadador, o ciclista ou o corredor, levou a que John Collins e a mulher decidissem criar, em 1978, uma competição que juntasse as três modalidades mais duras praticadas no Havai, e foi assim que nasceu o Ironman. Nessa primeira prova, apareceram 18 atletas mas três desistiram ainda no início e outros três não conseguiram concluir o trajeto. Foi Gordon Haller, um taxista reformado agora com 72 anos, que venceu a primeira competição Ironman do mundo, completando o percurso em 11 horas, 46 minutos e 58 segundos.
Pode ver os resultados com os melhores tempos atuais em todas as provas mundiais Ironman aqui.