“Interrogava vítimas de múltiplas violações, ou crianças traficadas pelos próprios familiares e, por vezes, sentia que quase já não sentia”

“Interrogava vítimas de múltiplas violações, ou crianças traficadas pelos próprios familiares e, por vezes, sentia que quase já não sentia”

E ra noite. Dez da noite, meia-noite? Pouco importa. Estava escuro, éramos largas dezenas, em silêncio, sentados há horas numa rampa e, em frente, os holofotes iluminavam as ruínas, o pó no ar, e a única coisa que estava de pé era a bandeira das Nações Unidas. Um edifício de cinco andares transfigurado, prensado, mas a bandeira das Nações Unidas de pé, ironicamente. E um monte de almas inertes e congeladas, funcionários da ONU, sentadas no chão de uma rampa com vista (tristemente) privilegiada para as operações de busca desesperada de sobreviventes – colegas e amigos – do terramoto que atingiu Porto Príncipe no Haiti, no final da tarde desse dia 12 de janeiro de 2010.

Naquela escuridão ofuscada por holofotes, pensei em desistir. Voltar a casa e esquecer que aquilo tinha acontecido. Que eu estava na parte boa daquele edifício que não ruiu, mas que ficou sem corredor, sem saída, que colegas de fora se juntaram para ir buscar escadotes e tirarem-nos daquele pó, daquele medo de ruir. Desistir, voltar a casa e esquecer. Tinha chegado a Porto Príncipe nove meses antes como voluntária para trabalhar como uma das coordenadoras da rádio da Missão de Paz da ONU no Haiti, após sete anos em Macau como jornalista.

Depois de muitos anos a apregoar que queria ser estrangeira, e depois, já estrangeira, a pensar como poderia fazer mais e melhor pelos outros, o que quer que isso significasse, aterrei no Haiti. Confesso que uma mala cheia de calças com bolsos laterais, sapatilhas de terreno e bonés, estavam longe da realidade que decorria mais nos corredores, em reuniões com ar condicionado, onde saltos altos e blusas formais eram mais comuns do que as calças multibolsos. Nada do que tinha imaginado, a versão “romântica” da ajuda humanitária não existia naquelas horas intermináveis. E, em menos de seis meses, comecei a planear o meu regresso à Ásia.

Naquela noite de 12 de janeiro pensei em desistir e nunca mais voltar. Afinal, não era uma ideia nova. Mas como esquecer os amigos mais próximos que ficaram nos escombros? Como esquecer o membro da minha equipa que nunca apareceu? Como esquecer 250 mil outras mortes, mais de três milhões de desalojados a precisarem urgentemente de ajuda? Como abandonar os haitianos que vinham abraçar-nos e agradecer-nos por estarmos ali? E ainda pediam desculpa por termos de passar por aquilo, como se até perante a força da Natureza fosse suposto continuarmos a ser privilegiados.

No dia seguinte decidi que ficava. E, enquanto pudesse, iria agarrar-me às calças multibolsos e fugir das intermináveis reuniões e emails (pura ilusão). Decidi também que queria especializar-me na resposta às emergências e na comunicação e no envolvimento das comunidades. No Haiti pós-terramoto passei para a equipa de proteção, com visitas aos campos de deslocados para avaliar e relatar violações contra crianças. E, na correria dos dias, interrogar mulheres e raparigas vítimas de múltiplas violações e abusos sexuais, ou crianças traficadas pelos próprios familiares e, por vezes, sentir que quase já não sentia. E, de novo, pensar em desistir até voltar a sentir.

“As pessoas estão lá, a morrer de fome”

Foi ainda no Haiti que comecei na UNICEF. Do Haiti para Myanmar, ainda como especialista de comunicação, numa altura em que a junta militar já não estava no poder e se vivia um período de esperança após a vitória nas urnas da Liga Nacional para a Democracia da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. A esperança não durou muito e foi sendo esmagada nos anos seguintes. Tinha saído recentemente de Myanmar quando quase um milhão de rohingyas teve de fugir das tropas birmanesas para o vizinho Bangladesh, algo que já se adivinhava há alguns anos. E, mesmo longe, de novo a vontade de desistir.

Passei pelo Nepal e mais um terramoto, onde não esqueço a mãe que salvou a filha de 8 meses segundos antes de a casa ruir e que encontrou um porto seguro num dos abrigos da UNICEF; ou as gémeas – a faladora e a tímida – que me levaram pelo espaço amigo da criança e me mostraram os jogos e as danças do momento.

“Naquela noite pensei em desistir da ajuda humanitária. Mas como esquecer os amigos que ficaram nos escombros?”

Em Angola, deixei a comunicação institucional e comecei a trabalhar mais diretamente com as comunidades. Dificilmente esqueço o dia em que, no Norte do país, montámos uma rádio em conjunto com os refugiados da República Democrática do Congo (RDC), e aquele segundo em que carregámos no botão e a música ecoou por todo o campo. Entre abraços e lágrimas entrelaçadas por muita dança, e o pedido incessante antes do fecho da emissão: “Mais uma música, ‘s’il vous plaît’, só mais uma.”

A contrabalançar as ocasiões em que os dias não têm horas suficientes, nem os meios chegam, e a burocracia corrói, a inspiração de trabalhar com gente enche-nos os dias. Embora a mudança para Genebra possa dar a ideia de que me rendi às blusas e aos sapatos altos, a Suíça é apenas a base enquanto membro da Equipa de Resposta às Emergências da UNICEF, que me leva constantemente para fora em missões humanitárias.

Desde então tive o privilégio de festejar na RDC a declaração do fim do surto de ébola. Ou ver como o Nepal soube ouvir as populações para compreender o que as motivaria a usar máscara ou ir vacinar-se. Ou ficar sem resposta na Etiópia quando não conseguimos aceder a populações em risco em zonas onde as partes em conflito bloqueavam a entrada de ajuda humanitária. Ou na Polónia, a dificuldade de não termos um escritório UNICEF e, numa corrida contra o tempo, tentarmos montar uma estrutura capaz de responder aos cerca de quatro milhões de refugiados ucranianos que entraram pelas fronteiras.

Ou agora, hoje, em Mogadíscio, onde estamos confinados numa zona de segurança, e cada dia é um esforço para ir ao terreno, com todos os obstáculos ligados ao conflito e à insegurança. Mas as pessoas estão lá, a morrer de fome, naquela que é a pior seca dos últimos 40 anos.

No dia seguinte àquele dia 12 de janeiro, decidi que ficava. Enquanto sentir. Enquanto as populações afetadas quiserem que fiquemos. Por todos os que partilham a mesma urgência de apoiar, ajudar, colaborar. 

Depoimento recolhido por Alexandra Correia

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