Sou um trans masculino não binário. Acredito que o género é desnecessário, é apenas uma construção social. Por que razão usar saia me define como rapariga? Roupa é só tecido. E os genitais definirem a pessoa é treta.
Quero que me vejam como uma figura masculina, com uma expressão masculina e com uma energia masculina. Dizer que sou um rapaz faz-me sentir bem, mas não diz muito de mim. Se formos mais ao fundo, sou uma pessoa.
Sempre senti disforia de género, mas ninguém vai acreditar porque andei anos a sexualizar-me de uma maneira feminina. Nem sei se eu acreditaria em mim. As crises existenciais até às quatro da manhã aconteceram. Questionar quando não temos ninguém para nos passar conhecimento é muito difícil. Estamos sozinhos e pensamos: “O que faço agora?”
No início da adolescência, gostava mais de dar-me com rapazes e, na minha cabeça, pensei que tinha de ser extremamente feminina para os atrair. Achei que esse era o caminho, e não ser igual a eles. Tinha o cabelo comprido, um corpo já muito feminino – mamas, rabo, cintura fina – e usava leggings justas e crop tops.
Entretanto, mudei de escola e comecei a dar-me com pessoas da comunidade LGBTQIA+. Aprendi, então, o significado de disforia de género, mas não associei a mim mesmo. Lembro-me de que havia uma rapariga trans que insistia em ir à casa de banho das meninas e as auxiliares expulsavam-na de lá. Aquilo mexeu comigo, mas dizia-lhe: “Tenta ir escondida…” e mais nada.
Quando comecei a sentir-me fora da norma, não gostava do termo “mulher” nem do termo “homem” e estar entre os dois dava-me conforto. Tinha 15 anos, fui pesquisar na internet e encontrei o termo “bigénero”. Nunca tinha ouvido falar de não binários e achava que trans eram pessoas que nasciam de uma maneira, faziam uma cirurgia e ficavam de outra maneira.
Nessa altura, comecei a cortar o cabelo um bocadinho todas as semanas, para a minha mãe não perceber, e isso fazia-me sentir melhor, dava-me liberdade. Passei a usar também o pronome “ele” e mudei de estilo porque já não me sentia bem muito feminina.
Quando troquei outra vez de escola, decidi encaixar-me, mas, na primeira quarentena, pensei: “Que se f…!” Estava em casa, não tinha de me encaixar em nada. Voltei às bandas rock que ouvia em mais nova, comecei a maquilhar-me como os músicos, a ser o que sempre queria ser e nunca tinha tentado. Customizei roupas. Foi o meu trans awakening.
Os meus novos amigos já me tratavam às vezes pelos pronomes masculinos, mas pedi-lhes para trocarem a ordem: para usarem mais ele/ela. A linguagem inclusiva é importante porque na língua portuguesa usamos pronomes para tudo, e é uma questão de respeito.
Em setembro, quando regressei à escola, pensei: “Será que faço um anúncio gigante aos colegas e aos professores ou deixo que as coisas aconteçam de uma maneira natural?” Só que a minha melhor amiga disse-me que não queria saber, que estava tudo bem, e isso despertou-me. Só ia corrigir quando alguém se enganasse nos pronomes.
A minha mãe sempre aceitou a minha sexualidade, mas uma pessoa assumir-se gay é diferente de assumir-se trans. Dizer “eu sou trans” é muito mais pesado. Nunca falei de género com ela – só vai saber exatamente o que penso ao ler este testemunho.
Falar com a família é sempre aquela coisa que dá frios e voltas ao estômago. Já quando foi da sexualidade fiquei muito nervoso. De início, disse à minha mãe que era bissexual, depois lésbica… Estava a questionar a minha sexualidade, o que é normal, e ela só comentou: “Olha, tens um grande coração, não é?” Hoje, às vezes trata-me por “filho”.
“Foi erro de fábrica”
A expressão de género não tem nada a ver com a identidade de género. Continuo a ser um rapaz trans se aparecer de saia, crop top e soutien push-up, tal como continuo a ter cabelo encaracolado mesmo que o alise.
Sei que as pessoas assumem que sou mulher por causa do meu corpo, mas há mulheres cis [que se identificam com o seu género de nascença] que não têm tanto peito. Se eu digo que sou o Sora, que sou um rapaz e uso pronomes masculinos, ninguém tem de saber o que tenho no meio das pernas. Só têm de me respeitar.
Os pronomes neutros e as pessoas não binárias não são uma novidade. O que é novo é hoje sentirmo-nos mais confortáveis para dizermos o que somos, mas ainda é importante passar a palavra e aumentar a palavra porque há um caminho grande a fazer.
Esta geração tem estado a fazer um trabalho incrível pela visibilidade, mas a sociedade não está preparada para lidar connosco. Compreendo que seja difícil a adaptação quando se conhece alguém que passa a usar outros pronomes, mas muitas vezes as pessoas nem sequer tentam.
Nos meus sonhos, sou liso, não tenho peito nem rabo. Tento não me pôr ao espelho, mas quando isso acontece parece que o peito foi colado com supercola. Parece deslocado, não faz parte
Não há corpo ideal e ter mais ou menos mamas não torna um rapaz mais ou menos trans, mas quero fazer uma mastectomia. O peito só atrapalha. Foi erro de fábrica. O que me trava é a falta de dinheiro, porque já tenho a cirurgia pensada desde os 15 ou 16 anos. De início, a ideia era reduzir, ficar naquela zona de conforto: “E se um dia quiser ter um bocadinho?”. Mas agora sei que vou tirar o peito todo. Vai ser ótimo.
Tenho um peito tão grande que nem com binders [faixas específicas] consigo escondê-lo – elas magoam e não fazem quase nada. Uma vez comprei uma cinta e usei-a no peito. Olhei-me ao espelho e estava todo reto, mas a cinta era tão apertada que não conseguia respirar. Nessa altura, pensei “estás a ser estúpido”, porque a culpa não era do meu corpo e eu estava a magoar-me.
As disforias são o mais complicado e aquilo que me define, sem eu querer. Não é tanto pelo que os outros veem e pensam que sou, é olhar-me ao espelho e não gostar do que vejo.
Nos meus sonhos, sou liso, não tenho peito nem rabo. Tento não me pôr ao espelho, mas quando isso acontece parece que o peito foi colado com supercola. Parece deslocado, não faz parte. Pode ser cortado com um x-ato?