Não é a primeira vez que Héctor Cabrera vê o seu nome nas manchetes dos jornais: no passado, o cientista mexicano já havia deixado a sua marca na imprensa depois de se destacar no mundo da microbiologia com descobertas dignas de vários prémios. Contudo, a realidade agora é outra. Dois anos depois de ter sido detido num aeroporto após ter concluído um trabalho encomendado por um agente russo, Cabrera foi, na última terça-feira, condenado a quatro anos de prisão depois de se assumir culpado perante o juiz. Mas qual é, afinal, a história do conceituado cientista que pôs tudo na linha por outro país?
Considerado outrora um dos mexicanos mais destacados do exterior pelo governo do seu país, Héctor Cabrera viu a sua vida mudar drasticamente em fevereiro de 2020, quando tentava regressar ao México com a sua mulher e foi intercetado e detido pelas autoridades do FBI sobre a acusação de ter agido como espião estrangeiro, neste caso, em nome da Rússia. O cientista de 37 anos tinha, até então, construído uma carreira promissora na área da microbiologia com várias colaborações internacionais e reconhecimento por parte da comunidade científica.
Apesar do prestigiado percurso profissional, a vida pessoal de Cabrera era mais complexa e obrigava o cientista a viver dividido entre dois países e duas famílias. De acordo com relatos do FBI, Cabrera tinha uma família no México e uma família na Alemanha, uma das razões que pode estar por detrás do seu envolvimento no mundo da espionagem. A história recua até aos seus tempos de universidade, quando terá estabelecido o seu primeiro contacto com a Rússia, de onde é originária uma das suas mulheres.
Da pobreza ao sucesso
Nascido em El Espinhal, uma cidade rural do México localizada na região de Istmo de Oaxaca, um dos estados mais pobres do México, com salienta a BBC, Cabrera nem sempre teve um fácil acesso à informação, razão pela qual é também frequentemente elogiado. Desde cedo deixou crescer em si o sonho de ser cientista e foi desenhando o seu percurso com cuidado. “Sonhava ser cientista e consegui”, admitiu ao jornal mexicano El Universal em 2019, após receber um reconhecimento da Universidade de Giessen, na Alemanha, pelas suas contribuições científicas. Embora não soubesse, nessa época, a sua vida estava a apenas um passo de mudar para sempre.
De acordo com o que conta, foi ao ler o livro “Microbe Hunters”, do cientista americano Paul de Kruif, que optou por se especializar na área da microbiologia, na qual viria a fazer muitas e importantes descobertas. Ingressou na universidade do seu estado vizinho e rapidamente se destacou ao ser escolhido para receber uma bolsa de estudo que lhe permitiria concluir os seus estudos na Universidade Federal de Kazan, na Rússia. Interessou-se, depois, pela área da biologia molecular e seguiu para a Alemanha, onde recebeu o título de doutor em bioquímica e microbiologia.
Ganhou renome na comunidade científica por vários dos seus trabalhos, entre eles um tratamento para regenerar pele queimada desenvolvido no Centro de Biotecnologia-Femsa do Instituto Tecnológico de Monterrey, no México, algumas pesquisas com foco na aterosclerose, a condição médica que leva a que as paredes arteriais acumulem gordura e partículas de colesterol e ainda uma investigação realizada em conjunto com outros colegas que permitiu não só perceber o que sucedia no organismo durante um evento de paragem cardíaca como desenvolver uma técnica para evitar a morte celular. Recebeu, ao longo da sua carreira, várias distinções, incluindo o Prémio Servier 2018 da International Society for Heart Research, pela última pesquisa mencionada.
Além do seu contributo no mundo da ciência, Cabrera envolveu-se também em projetos sociais, tendo criado um programa a que deu o nome de “Para Oaxaca, mais investigadores”, cujo principal objetivo é oferecer mais oportunidades académicas aos jovens da região onde cresceu, concretamente no que toca ao ensino superior, dando-lhes a possibilidade de estudarem no estrangeiro.
Tanto o seu percurso profissional como todos os seus outros contributos para a sociedade foram utilizados como argumentos no seu caso em tribunal numa tentativa de pedir uma redução de pena que foi depois concedida pelo juiz, passando de dez para quatro anos. “A sua carreira só é superada pelo seu trabalho de caridade a apoiar as pessoas da sua cidade natal, Oaxaca, no México”, disseram em julgamento os seus advogados.
Uma vida dupla
Foi durante as suas viagens pela Alemanha que Cabrera conheceu aquela que seria a sua segunda mulher, a mesma que, mais tarde, ficou retida no seu país de origem, a Rússia, depois de o casal e as suas duas filhas, que, entretanto, nasceram, lá terem ido. A partir deste ponto, a história complicou-se. De acordo com a NBC News, Cabrera terá entrado em contacto com um oficial russo que havia conhecido anos antes a título profissional. O oficial, não identificado nos relatórios disponíveis do FBI, terá então aconselhado o cientista a não viajar pela Europa ou procurar obter um visto dos EUA, o que levantou em Cabrera a suspeita de que o indivíduo poderia trabalhar para os serviços secretos russos, o FSB.
Mais tarde, quando voltou a encontrar-se com o mesmo oficial em Moscovo, este ter-lhe-á apresentado um conjunto de velhos e-mails retirados da conta do cientista que mostravam que este havia procurado, no passado, imóveis em Miami. Seguiu-se uma proposta tentadora: o oficial prometeu a Cabrera resolver a situação da sua família, permitindo que regressassem à Alemanha, se este aceitasse ir até Miami e concluir uma tarefa que, aparentemente, parecia simples, como explicam as acusações iniciais.
Tudo o que Cabrera teria de fazer era voar até Miami e apontar a matrícula e a localização do carro de uma fonte do governo norte-americano, nomeada apenas como uma “fonte humana confidencial” nos documentos do FBI acessíveis ao público, que estaria a fornecer informações sobre o governo russo. Não é claro que informações terão sido transmitidas ao cientista mexicano ou se este estaria a par do objetivo da sua missão ou do porquê de a estar a concretizar, mas a tarefa foi concluída.
Em fevereiro de 2020, Cabrera dirigiu-se, acompanhado da sua outra mulher, originária do México, até Miami, onde invadiu um condomínio para ter acesso ao carro indicado pelo oficial russo. Apesar de ter sido instruído para não o fazer, Cabrera tirou uma foto à matrícula em vez de a apontar apenas num papel e abandonou o local.
Um segurança do condomínio terá visto e estranhado as atitudes do casal, nomeadamente depois de terem fotografado a matrícula de um carro. De acordo com o The Independent, o casal terá sido, inclusive, convidado a sair pelo segurança. Quando, no dia seguinte foi detido no aeroporto, o FBI terá encontrado na pasta dos “recentemente excluídos” no telemóvel de Cabrera várias fotografias aproximadas da matrícula do carro assim como conversas mantidas na plataforma WhatsApp entre o cientista e o oficial russo.
A sentença
Inicialmente, Cabrera terá sido condenado a uma pena de 10 anos de prisão, mas um acordo com o governo e a sua confissão de culpa em tribunal esta terça-feira terão ajudado a atenuar a sua pena para apenas quatro anos.
A sua trajetória profissional terá ajudado na defesa do cientista mexicano, que contou também com o testemunho de vários dos seus antigos colegas. “Hector não hesitou em trabalhar, construir um relacionamento com estudantes e jovens professores, preparar e entregar pesquisas rigorosas, tornando-se um membro confiável e necessário do Círculo Mundial de Especialistas em Cardiologia”, disse, de acordo com a BBC, um dos seus colegas, Victor L. Serebruany, da Universidade Johns Hopkins, nos EUA.
“É muito estranho que isto tenha acontecido porque ele é uma pessoa muito altruísta com muita consciência social. Ele ajudou as pessoas e tudo isto parece estranho”, admitiu à Associated Press, Hazael Matus, Presidente da Câmara da sua cidade natal. “Não sabemos o que aconteceu, mas aposto que é uma confusão ou um ataque por razões científicas. Ele pode ter descoberto algo que perturbou algumas pessoas ou alguns interesses comerciais”, acrescentou.
Na audiência de terça-feira, Cabrera pediu desculpa publicamente pela sua conduta. “Lamento profundamente e peço desculpas aos Estados Unidos (…) Isto ensinou-me que a liberdade é das coisas mais preciosas, mas acima de tudo a família”, disse, acrescentando: “Todos cometemos erros e este foi o maior da minha vida.”