Escrever é o seu exercício preferido e mesmo sobre assuntos dramáticos, Joana Marques consegue dar-lhes a volta e observá-los de uma forma mais leve e muito bem-humorada.
Apontar É Feio (edição Contraponto, 207 pag., €16,60), o seu terceiro livro, depois de O Meu Coração Só Tem Uma Cor e Vai Tudo Correr Mal, é um caderno com apontamentos escritos nos últimos dois anos. São 56 crónicas, algumas publicadas nos jornais JN e Observador, divididas por nove capítulos temáticos, com as disciplinas escolares, começando cada um deles com o “resumo da matéria dada”.
Em Educação Física, por exemplo, Joana Marques aproveitou para falar de desporto em geral, e de muito futebol em particular, constatando que “o futebol tem este problema, de ter tornado normais atitudes que fora do estádio seriam inaceitáveis”. Também não esquece árbitros, penáltis, treinadores e o seu mau perder assumido: “Admiro-me com os executantes de uma boa birra – identifico-me com eles.”
Em Matemática, analisa as contas dos portugueses e em como “dão mais valor ao futebol do que a infrações rodoviárias”.
Foi depois de saber que parte do texto “Não há pavor como o primeiro”, sobre o nascimento de um segundo filho, entrava no exame de admissão a uma faculdade, que a autora resolveu reler as crónicas e conseguiu espantar-se e rir-se com algumas das ideias.
Para José Diogo Quintela, humorista e amigo da guionista e locutora de rádio, que apresentou o livro, daqui a cem anos esta obra poderá ser consultada para estudar o triénio 2019-2021, com uma pandemia pelo meio. Quem for curioso sobre as “manias do século XXI, nestas páginas encontra uma observação apurada de Portugal e dos portugueses. “Somos uma nação com mais de 800 anos, mas em termos de idade mental estamos nos cinco”, escreve a autora.
Joana Marques, 36 anos, usa a sátira e a ironia para falar de assuntos pertinentes, fazer chamadas de atenção para o estado em que anda Portugal e o mundo. “Foram tempos muito estranhos, com vendas ao postigo, palavra que se voltou a usar; a excitação de se voltar a poder ir a uma esplanada; o conceito de “salvar o Natal” e toda a história de se trocar uma compota de presenta na escada. Passámos por tudo isto e sobrevivemos”, relembra.
Joana compara o confinamento àqueles “anti-depressivos cuja toma não pode interromper-se abruptamente. Éramos felizes e não sabíamos”, mas “uma ligeira miaúfa pode ser profiláctica”.
Em cada crónica há muita opinião reveladora da sua personalidade ou pelo menos da forma como vê o mundo: “Há 30 anos, a Rua Sésamo era uma série à frente do seu tempo, já se preocupava com o ambiente e o bem-estar animal.”
Alfinetadas políticas sobre o SNS a definhar, médicos agredidos por utentes que se têm força para esmurrar o clínico “está mais saudável do que eu”; aspiradores-robôs, o Hotel Califórnia da limpeza doméstica, porque “é também no campo dos pequenos eletrodomésticos que se faz a luta pela igualdade de género.”
Em Apontar É Feio, percebe-se quem foram os protagonistas mais caricatos dos últimos anos, “porque os outros nem cabem no livro”.
Joana não nega algumas obsessões: negacionistas, petições online, Greta Thunberg que “se tivesse 80 anos, ninguém lhe ligava, seria só mais uma maluca velha a anunciar o apocalipse”; Cristiano Ronaldo e um certo endeusamento à sua volta; o povo português em geral. Continuamos o “País dos três F’s – Fátima, Futebol e Festivais de verão. Fátima só não está em perigo de ser substituída pelo Facebook, porque foi trocado pelo Instagram.”
Projetar o futuro faz-se imaginando março de 2031, na tomada de posse de um novo governo eleito através de chamadas de valor acrescentado, liderado por “malta que adora protagonismo”. Só podia ser assim.