O teletrabalho ajudou a acabar com o ‘falso ocupado’. Em casa, se tiver seis horas de trabalho, pode simplesmente fazê-lo e seguir em frente. No escritório, depois de o fazer, tem de fingir que está ocupado durante mais duas horas. Agora podemos julgar os empregados inteiramente pelos resultados e não pelas aparências. Bom para empregados e para as empresas.”
Lemos este tweet de Dan Price e ficamos com vontade de concordar. Faz todo o sentido aquilo que o CEO da bem-sucedida empresa de processamento de cartões de crédito Gravity Payments, com sede em Seattle, nos EUA, escreveu em agosto. Ao fim de um ano e meio de pandemia, já se tornara claro que o teletrabalho não é sinónimo de ficar a preguiçar, como temiam muitos gestores. E que a produtividade não sofreu com a Covid-19.
No mundo da gestão, Dan Price tornou-se famoso em 2015, ao decidir aumentar o salário mínimo dos seus empregados para 70 mil dólares por ano e baixar o seu próprio ordenado de 1,1 milhões para os mesmos 70 mil dólares. Aos 30 anos, estava multimilionário graças à empresa que tinha fundado uma década antes, com um dos seus irmãos, Lucas. A decisão surgira-lhe como uma epifania, durante uma caminhada com a sua amiga Valerie.
Enquanto subiam e desciam uma montanha da Cordilheira das Cascatas, Valerie contou-lhe que a sua vida era um caos porque não conseguia pagar as contas ao fim do mês. Embora tivesse dois empregos e trabalhasse 50 horas por semana, o salário de cerca de 40 mil dólares por ano não lhe chegava para arrendar um apartamento decente em Seattle. Ao ouvi-la, Dan pôs-se a pensar que o mundo era mesmo muito desigual e, pior, ele fazia parte do problema.
Dan Price não é um diretor-executivo vulgar, como já se viu. Para muitos que o leem no Twitter, onde tem 728 mil seguidores, aquilo que escreve ganha o valor das mensagens bíblicas. Não admira, por isso, que aquele seu tweet em particular tenha gerado mais de 17 mil coraçõezinhos e dois mil retweets.
Entre os 300 comentários, porém, houve várias pessoas a lembrar-lhe quão raro é o seu ponto de vista no atual mundo dos negócios. “Agora, têm-me a ‘picar o ponto’ que também regista o meu endereço IP”, contou um seguidor. “Temos de ficar no nosso computador para responder a emails e a qualquer coisa que surja”, comentou outro.
Os pontinhos verdes ao lado do seu nome nos canais de mensagens são os equivalentes virtuais dos casacos deixados nas cadeiras e dos monitores ligados
A estes comentários, o CEO da Gravity respondeu que “algumas empresas estão obcecadas em ser autoritárias” ou que “a cultura de escritório pode ser bastante distópica”. E o tema nunca deixou de estar em cima da mesa até que, no final de março, já com dois anos feitos de pandemia, ele decidiu arrumá-lo de forma lapidar: “Como diretor-executivo, eis a minha política de teletrabalho: se consegues fazer o teu trabalho, isso é tudo o que interessa. Quero lá saber onde trabalhas!”
Apetece aplaudir e desejar que todas as chefias e as administrações sejam como as de Dan Price. A verdade é que o mundo empresarial ainda está muito longe do binómio autonomia-responsabilidade. Tão longe que persistem na vida real personagens como George Costanza, que tanto nos fez rir na série Seinfeld. E, quando falamos em vida real, falamos também em teletrabalho. Se o melhor amigo de Jerry era mestre na arte de fingir que está ocupado (o truque é parecer sempre aborrecido, revemos em “How to pretend that u r busy, seinfeld way” no YouTube), décadas depois o teatro continua online.
“O simples ato de iniciar a sessão no computador é agora público”, lemos na revista The Economist, num artigo publicado no início deste ano, com o título Teatralidade de escritório. “Os pontinhos verdes ao lado do seu nome nos canais de mensagens são os equivalentes virtuais dos casacos deixados nas cadeiras e dos monitores ligados”, compara-se. “Os calendários são agora frequentemente partilhados: os vazios parecem preguiçosos; os cheios parecem virtuosos.”
Finge-se melhor online
Agora que muitos adotaram o teletrabalho como regra ou, pelo menos, como fazendo parte de um sistema híbrido, assiste-se a toda uma performance que tem como objetivo demonstrar que se está a trabalhar. Ostenta-se a realidade de maneira exagerada e, se for preciso, ficciona-se com a ajuda de tecnologia (ver caixa As técnicas “teatrais”).
No mundo online, a comunicação acontece preferencialmente à vista de todos e de acordo com uma estratégia predefinida. Um exemplo: os emails são enviados para grupos e não apenas para a pessoa que tem mesmo de lhes responder; e são agendados para de manhã, bem cedo, ou mesmo para o fim de semana.
A troca de emails oferece, aliás, um mundo de possibilidades. Na falta das conversas de corredor e das festas promovidas pela empresa, basta um email a dar conta de uma promoção para se suceder uma avalanche de parabéns, num crescendo muitas vezes inversamente proporcional à intimidade que os trabalhadores têm com aquele colega.
As reuniões, em plataformas como Zoom ou Teams, também se multiplicam e são o palco ideal para interpretações dignas dos Oscars, lembra-se. Têm câmaras que registam as expressões mais ou menos atentas e chats em que os comentários assumem a importância dos coros gregos. Permitem ainda a partilha do ecrã, uma oportunidade aproveitada por muitos para mostrar (ou fingir) um ror de pastas de trabalho.
O que faltou escrever no artigo da The Economist foi que na base deste comportamento à la George Costanza pode estar a necessidade de encontrar o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal. Se há vantagens no teletrabalho, por, à partida, permitir mais flexibilidade de horário para o empregado, como traçar uma fronteira clara quando a sala de estar se transformou no escritório? E o que fazer quando existe falta de confiança por parte do empregador? É o clássico caso do ovo e a galinha.
Certo é que assistimos a uma mudança de paradigma. Quando Dan Price sondou recentemente os seus empregados para saber onde queriam trabalhar, apenas 7% disseram que preferiam no escritório. Trinta e um por cento pediram uma solução híbrida e 62% disseram mesmo que prefeririam trabalhar apenas a partir de casa. Parece que o teletrabalho veio para ficar, e com ele a necessidade de os CEO aprenderem a não criar “falsos ocupados”.
As técnicas “teatrais”
Quem tem chefes que não confiam precisa destes truques. Mas cuidado: quando o trabalho fica por fazer é difícil manter a “atuação” por muito tempo
Ligado
Programe o computador para arrancar antes de si (o Windows oferece essa possibilidade). Se usar Teams/Zoom, abra a aplicação ao acordar e mantenha-a aberta até à hora do jantar
Ativo
A aplicação Caffeine mantém o monitor permanentemente aceso. E existem muitas outras que imitam o movimento do rato
Em contacto
Envie, pelo menos, uma mensagem por dia ao seu chefe. Lembre-sede que não há perguntas tontas, só respostas tontas
Vestido
Use roupa semelhante à que usaria no escritório. Uma camisa/blusa dá-lhe logo um ar profissional
Escondido
O Zoom tem um “cenário virtual”, bom para aqueles dias em que tem uma reunião no carro ou numa esplanada
Alerta
Programe receber no telemóvel as notificações das aplicações que usa para comunicar com o seu chefe e os seus colegas – como se estivesse ao computador