Era uma história de amor. O super famoso ator Johnny Depp, 58 anos, conheceu a não tão famosa modelo e atriz Amber Heard, 36 anos, nas filmagens de “O Diário de um Jornalista Bêbedo”, em 2011. Amaram-se e casaram-se. Divorciaram-se em 2017 entre acusações de violência doméstica. Depp pagou sete milhões de euros a Heard. Mas isso não chegou.
Johnny Depp, invocando o seu bom nome que quer deixar limpo aos filhos (tem dois, com a cantora Vanessa Paradis), processou a ex-mulher por difamação – pede-lhe 46 milhões de euros. Amber Heard fez o mesmo, mas aumentou a quantia para 93 milhões. E o que se passa em tribunal, perante os nossos olhos, é um retrato chocante de uma relação ultra tóxica.
“Senti responsabilidade de me defender, de tomar uma posição pelos meus filhos. Achei diabólico que os meus filhos tivessem de ir para a escola e terem os amigos a abordá-los com a famosa capa da revista ‘People’ com a senhora Heard com uma nódoa negra na cara”, justificou Depp.
O ator não é nenhum “santo” e reconhece uma vida marcada pelo álcool e pelas drogas. E nos vídeos que Amber tem mostrado ao tribunal vemo-lo “endiabrado”, a pontapear e esmurrar armários da cozinha, a ameaçar a mulher de morte, a insultá-la, dizendo que ela estava a ganhar fama à sua custa.
Depp não esconde a relação violenta dos pais – entre os dois e com o filho. “A única coisa que aprendi a fazer foi precisamente aquilo que fazia quando era criança – retraía-me”, afirmou em tribunal, quando a mãe era violenta com ele. Garantiu, então, que apesar dos comportamentos violentos, partia a mobília, mas nunca tocou em Amber. “Nunca bati em nenhuma mulher na minha vida”, garantiu. “Se alguém teve algum problema devido à minha relação com a bebida, esse alguém fui eu próprio. Só maltratei uma única pessoa na vida. Essa pessoa sou eu”, disse.
Amber Heard também não é nenhuma “santa”. Com frequência e à frente de outras pessoas chamava o marido de “old fat man” (homem velho e gordo). Dizia que não gostava de receber os amigos dele em casa porque eram um bando de “homens velhos a tocar guitarra”. Espantou-se quando Depp lhe contou que tinha sido convidado para fazer um anúncio para a marca Dior . “Para a Dior?! Porque é que a Dior quereria trabalhar contigo? Não tens estilo nenhum!”
Um dia, Amber Heard atirou-lhe uma garrafa de vodka que lhe cortou um dedo. Outro dia, defecou no lado dele da cama. Alegadamente, sublinhe-se, uma vez que estamos a relatar factos contados em tribunal mas não provados. Johnny, por seu lado, descrevia a amigos a forma como iria matar a mulher, com requintes de malvadez.
São cenas de uma relação ultra abusiva em que, aparentemente, os dois dançam o tango. O que levou Amber Heard a aguentar um cônjuge dominado pelo álcool e com graves problemas de controlo de raiva? O que levou Johnny Depp a aguentar uma cônjuge que o humilhava e rebaixava perante os seus amigos e não só? Sabemos apenas que nada disto tem a ver com o amor.
A ideia dominante, durante muitos anos, nos casos das relações disfuncionais, é que havia uma vítima e um agressor ou agressora. A “investigação tem vindo a mostrar que também há aquilo a que se chama violência bidirecional”, explica a psicóloga clínica Renata Benavente. A pessoa que era a vítima transforma-se em agressora e a agressora em vítima. A também vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses diz que o caso Depp/Amber se pode enquadrar nesta “dinâmica”.
Tem acompanhado o desenrolar dos acontecimentos no tribunal da Virgínia e reforça que, através do que tem visto e ouvido (as gravações áudio e vídeo apresentadas, por exemplo), “temos um padrão em que há registo de violência bidirecional”, em que “algumas vezes parece ser ela a agressora e em outras em que parece ser ele”.
Nestas relações disfuncionais – tóxica é um termo entendível por todos, mas não é a “terminologia científica” – em que existe violência de parte a parte, há oscilações nas várias fases do dia que “devem ser avaliadas com muito cuidado”, para não se legitimarem comportamentos agressivos, como no caso de alguém que diz “eu reagi com violência porque ela me provocou”.
Há vários tipos de relações tóxicas/disfuncionais. Podem envolver agressões físicas, sexuais ou verbais.
Os maus tratos psicológicos são, clarifica a psicóloga, mais difíceis de provar quando não há testemunhas. A violência física deixa marcas visíveis a psicológica não. Já “lemos” despachos de juízes que aludem a “uma mulher independente, que ganha o seu próprio dinheiro”, como se isso fosse impeditivo para alguém sofrer de violência psicológica.
Nas relações ditas tóxicas, quem agride usa de insultos, desprezo, crítica, ironia fina e menoriza a existência do outro.
“São processos incidiosos. Uma baixa auto-estima permite coisas que, de outra forma, não seriam permitidas”, diz o psicólogo David Neto. O processo de “invalidação” da vítima pode passar por uma fase inicial de “subtilezas” que o agressor vai construindo sem que a vítima se aperceba, convencendo-a que só faz aquilo porque gosta dela. “A vítima vai aceitando e perdoando determinados comportamentos e escamoteia isso com a própria relação de afetividade”, explica. Em que o “faz aquilo porque gosta dela” é auto-entendido pela vítima que se “culpabiliza” quando é maltratada.
Nestas relações há “coação, manipulação, agressões verbais e a menorização da outra pessoa” que, muitas vezes, oscila, como a história do lobo e do cordeiro. Balança entre o perfil do desprezo e do enxovalho e o momento seguinte, em que surge, até, a utilização de “termos amorosos”.
Não querendo comentar o caso Depp/Amber, por não o conhecer, a psiquiatra Ana Matos Pires, atesta que as relações disfuncionais “perpetuam-se muito mais do que as outras”. Numa relação funcional, quando acabam os afetos corta-se o futuro com uma separação ou divórcio. Acaba ali, simples. Nas disfuncionais, o “sofrimento”, acrescenta, “tem um efeito perverso”. O casal tende a pensar que vai resolver o problema e voltar a ter uma vivência saudável. O que, explica, tem muito a ver com a fase “lua de mel” que vem depois da “crise”. O pedido de desculpas depois da agressão.
O ex-casal de Hollywood tornou a sua relação tóxica num espectáculo mediatizado em que cada um tende a cair para um dos lados. Mas, avisa, Renata Benavente, “há zonas cinzentas”. As relações não são “preto e branco”.