Se lhe disserem que cada português bebe, por ano, doze litros de álcool, até pode parecer pouco. Não é que a visão esteja turva, as estatísticas é que apresentam valores médios, metendo no mesmo saco abstémios, consumidores que exageram na frequência e na quantidade e dependentes. Porém, o relatório Preventing Harmful Alcohol Use, divulgado no ano passado, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), revela que Portugal não fica bem no retrato de família.
O estudo, que envolveu 52 países, mostrou que o consumo médio se situava nos dez litros anuais por pessoa, estando o nosso País acima desse valor, com o vinho a liderar a tabela de consumos e mais de um quarto dos adultos a reportar que se embriagava pelo menos uma vez por mês.
Já foi pior. Estamos longe do tempo em que vigorava o lema “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Quem cresceu nesse caldo cultural e se tornou adulto na transição para o regime democrático e a inclusão de Portugal na União Europeia terá passado, ou conhecido quem passou, por períodos de excesso e de dependência e, tendo sobrevivido a isso, não voltou a ser quem era.
Assim foi com o jornalista Nuno Ferreira. Aos 60 anos, é o primeiro a dizer que a sua luta é para a vida. “A minha fase de verdadeiro beberolas começou em 1993, quando consumia cerveja e um ansiolítico receitado por um tio médico; contrariava assim os sintomas já evidentes de uma fobia social”, reconhece hoje. Fazia viagens de trabalho com frequência, em Portugal e no estrangeiro e, após sucessivas fugas para a frente, foi ficando magro e doente e acabou internado no hospital.
“Passei a lidar com o mundo ao meu redor como um falso extrovertido e ingeria álcool com medicamentos para a depressão”, conta. Saía do jornal e chegava a consumir seis a sete canecas de cerveja por noite.
O tempo passava, a doença progredia e, com ela, as condutas excessivas. Quando não havia cerveja, Nuno enchia o cantil de whisky, mais tarde misturava vinho, cognac e cerveja, com perdas de discernimento cada vez mais preocupantes, com incidentes pelo meio: “Invadi um casamento nas Termas de São Pedro do Sul e quase morri espancado.” A família pedia-lhe que parasse. Em 2009 ficou três meses em recuperação, numa comunidade, em Sintra, mas em 2012 teve uma recaída e novos episódios tristes, como aquele em que, alcoolizado, na Horta, nos Açores, insultou um ministro e ficou cinco horas detido.
No ano seguinte, o seu mundo desabou: “Faleceu o meu pai, separei-me, depois morreu o meu irmão mais velho e, mais tarde, fiquei sem trabalho.” Foi viver com a mãe, em Aveiro, onde permaneceu três anos, deprimido e medicado. Deixou de ler e de escrever. Em 2016 regressou a casa, na Caparica, onde começou a descida ao inferno.
Nuno tinha 57 anos e vivia do Rendimento Social de Inserção quando começou a debater-se com os formigueiros, as tremuras, a angústia e as crises de choro que duravam horas, sem nunca largar a bebida. “Caí várias vezes no café e na rua, fui parar ao hospital ensanguentado.”
O clínico olhou para os exames e disse que o caso era grave, que Nuno podia ter morrido e estava à beira da cirrose. “Tive medo de morrer e parei imediatamente de beber”
No ex-CAT (Centro de Atendimento a Toxicodependentes) de Almada, o clínico olhou para os exames e, diante dele e do filho, disse que o caso era grave, que Nuno podia ter morrido e estava à beira da cirrose. Impunha-se a desintoxicação e o tratamento numa comunidade terapêutica. Aquilo mudou-o: “Tive medo de morrer e parei imediatamente de beber, sem ajuda; aceitei ingressar sete meses na comunidade e agarrei-me teimosamente aos que me amavam.”
Há dois anos e meio que Nuno não toca no álcool e, desde que voltou a casa, no verão passado, quis que a sua luta inspirasse outros. Chamo-me Nuno e Sou Alcoólico, Uma Luta Para a Toda a Vida (Oficina do Livro) é a prova disso, a de que “há esperança”.
Consumo problemático
Os resultados do estudo Sinopse Estatística 2020, do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), Portugal tem um consumo per capita superior ao da Europa (12 e 9 litros de álcool puro, respetivamente), com o vinho a ter a maior prevalência de consumo.
Embora o consumo e a dependência tenham vindo a diminuir nos últimos anos, a Covid-19 mudou o cenário. Entre abril e maio de 2020, na população adulta, 37% mantiveram o consumo que tinham e 42% reduziram-no, mas 21% passaram a beber mais. “Quem bebia em contexto social deixou de fazê-lo como antes do confinamento, mas se bebia por necessidade fê-lo mais, talvez para aliviar a dor e o sofrimento”, explica Manuel Cardoso, Subdiretor-Geral do SICAD.
No mesmo estudo, os dados recolhidos antes da pandemia permitiram identificar um aumento da prevalência da embriaguez na adolescência e que no ano 2020, estiveram em tratamento ambulatório na rede pública 12 757 pessoas, sendo 3 505 delas novos utentes, a maioria (58%) com 50 ou mais anos.
Além disso, registaram-se 36 799 internamentos hospitalares relacionados com o consumo de álcool, a maioria do sexo masculino e com 65 anos ou mais. Também em 2020, a intoxicação alcoólica foi a causa de morte de 31 pessoas (65% no masculino e 36% no feminino), com idade média de 56 anos. Estes valores não levam em conta as doenças atribuíveis ao álcool, mas os dados de 2019 permitem dizer que houve mais de 2500 óbitos associados a elas, afirmar que morreram 2507, sendo 49% abaixo dos 65 anos e 27% devidas a doenças do fígado (cirrose e cancro).
Inverter o padrão
O médico de saúde pública vale-se dos dados dos números da Organização Mundial da Saúde, mais concretamente o Global status report on alcohol and health 2018, para afirmar que “o uso nocivo do álcool resultou em três milhões de mortes em todo o mundo e 132 milhões de anos perdidos devido a problemas de saúde, incapacidade ou morte precoce”. Além disso, as patologias associadas ao uso nocivo do álcool ascendem a duas centenas. O consumo em excesso, na forma de ‘binge’ (consumir cinco ou mais copos de uma bebida alcoólica na mesma ocasião) ou de embriaguez, leva à dependência e, além do impacto nefasto na saúde, tem consequências sociais e legais.
Há dois anos, por exemplo, houve mais de 13500 crimes por condução com taxas de alcoolémia iguais ou superiores a 1,2 gramas por litro no sangue e, apesar de este número ser bem inferior ao do início da década, não é menos preocupante. Por outro lado, “mais de 40% dos casos de violência doméstica são atribuídos ao abuso do álcool”. Manuel Cardoso lamenta: “Somos pouco tolerantes ao bêbado mas muito tolerantes para com quem diz piadas ou agride os vizinhos quando fica alcoolizado e, não raras vezes, a vítima é a primeira dizer ‘a culpa não é da pessoa, é do álcool’.”
Ciente de que o consumo per capita tem vindo a aumentar nos últimos cinco anos, o médico afirma que isto se deve à falta de medidas concretas, da intervenção preventiva nos estabelecimentos de ensino, à política de preços, e às pressões da indústria, que levam, por exemplo, a que “o vinho tenha uma taxa de IVA intermédia (13%) e uma taxa de 0% de imposto especial sobre consumo.”
Em Portugal, apesar das dificuldades de resposta do Serviço Nacional de Saúde, pela escassez de recursos humanos nas unidades de alcoologia e nos cuidados de saúde primários, a meta é “diagnosticar e intervir precocemente nos consumos problemáticos e referenciar casos graves para estruturas especializadas”.
Além dos fármacos e da psicoterapia, o internamento é necessário na desabituação e pode ir até seis meses, numa comunidade terapêutica. Por ser uma doença crónica, são de prever episódios de recaída e de recuperação. Daí que estruturas como os Alcoólicos Anónimos tenham um papel importante no processo.
Curar-se e mudar de vida
“Vivemos numa sociedade em que tudo se festeja com álcool”, começa por afirmar a médica de família Ana Feijão. “Há muita intolerância dirigida aos alcoólicos e a quem não bebe, que no grupo ouve coisas como ‘têm a mania que são melhores que os outros’ ou ‘só fazem o que a mulher manda’.”
A coordenadora e diretora clínica da Unidade de Alcoologia de Coimbra, onde, em 2020, foram acompanhadas 2612 pessoas com uma média de idades entre os 45 e os 50 anos, observa que “os mais jovens não procuram tratamento até terem problemas mais sérios”.
O perfil de quem recebem na Unidade é diversificado, com gente que vem de várias zonas do País: “Chegam-nos jovens adultos referenciados pelos tribunais por crime de condução em estado de embriaguez ou por violência doméstica, mas também aparecem pressionados por familiares e entidades patronais ou através dos serviços de saúde”.
A médica sublinha que “muitos vêm mais por problemas hepáticos do que pelo alcoolismo”, referindo que o trabalho é feito em colaboração com as consultas de Gastrenterologia e unidades de transplantes dos Hospitais da Universidade de Coimbra e tem uma componente humanista.
A negação do problema e a falta de motivação são os principais obstáculos à procura de ajuda, mas há uma forma de contorná-lo: “Quando a família não sabe como motivar o doente para tratamento, aconselhamos a falar com o médico de família, para pedir análises e ‘assustar’, de algum modo, o doente, com as análises do fígado. Muitas vezes é pelo medo, sim, que aceitam vir à consulta.”
Aí são avaliados, fazem a desintoxicação e só depois iniciam o processo da desabituação, que é geralmente longo. Os fármacos (benzodiazepinas, neuroléticos e doses elevadas de vitamina B) permitem que o cérebro se ajuste à falta do álcool, sem sofrimento, e compensam as carências nutricionais e a desidratação.
Numa segunda fase, desmistificam-se crenças – como a de que beber aquece, dá força ou é um bom estimulante sexual – e ajudam-se os pacientes a fazerem uma leitura diferente do mundo, com técnicas cognitivo-comportamentais e uma abordagem sistémica, ou seja, envolvendo pessoas significativas no tratamento e com recurso a grupos de inter-ajuda, fundamentais na prevenção de recaídas: “A taxa de sucesso, que significa não beber durante os primeiros dois ou três anos, é de 50%.”
Chegar até aqui representa uma vitória, até porque, no caso de um passo em falso, sabem que podem voltar, e muitos voltam. Por fim, Ana Feijão elucida: “A meta não é a abstinência, é ficar bem, melhorar a saúde e a qualidade de vida.”
Dependência alcoólica
Na classificação das doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM 5), o alcoolismo é considerado uma perturbação do uso de substâncias. O que deve saber:
Sintomas de intoxicação
- Gastrintestinais: Acidez no estômago, vómitos, diarreia, desidratação
- Psicológicos: dor de cabeça, reflexos lentos, défices de atenção e memória
- Neurológicos: falta de coordenação, vertigens, visão dupla, perda de equilíbrio
- Comportamentais: fala arrastada, falta de discernimento, humor instável
Sinais de dependência
- Historial de consumo excessivo e prolongado
- Incapacidade de resistir à compulsão de beber
- Atividades profissionais, sociais e profissionais afetadas pelo álcool
- Tolerância, que leva ao aumento da ingestão para obter o mesmo efeito
- Síndrome de abstinência ou “cravings” (ansiedade, tremuras, insónia, suores, náuseas, etc e, nos casos mais graves, alucinações e delirium tremens, após redução repentina do consumo)
Impacto na saúde
- Risco aumenta com grau de abuso (da intoxicação / ressaca ao coma alcoólico, até o comportamento de beber a mais se tornar crónico)
- Algumas doenças associadas
- Neuromusculares (problemas de coordenação, dormência, cãimbras)
- Problemas hepáticos e gastrintestinais (úlceras e outras inflamações, cirrose)
- Doenças cardiovasculares (hipertensão, arritmias e outros, mais graves)
- Doença mental (das alterações do humor e depressão até à ideação suicida)
- Demência (pelos danos causados na memória e falta de vitamina B)
- Vários tipos de cancro
- Problemas psicossociais
- Agressividade (“mau vinho”)
- Acidentes de viação e de trabalho
- Absentismo laboral
- Problemas familiares
- Violência doméstica e outros crimes
Tratamento da adição
- Psicofármacos
- Psicoterapia, individual e em grupo (prevenção de recaídas)
- Internamento (desintoxicação e / ou suporte de comunidades terapêuticas)
Fontes: SNS24, SICAD, DSM 5