Lembro-me de que chovia muito naquela sexta-feira de fins de novembro de 2006. Estava com 33 anos e mais magro – tinha feito uma dieta valente. Nesse dia, ia jantar a casa da minha mãe, que fazia anos. Como surpresa, levava-lhe a minha filha Carolina, então com 4 anos.
Pelas sete da tarde, enquanto fazia tempo, no escritório, em Lisboa, bebi um café duplo, que acompanhei com uma cigarrada, o normal, digamos assim, de quem tem uma vida profissional mais ou menos atribulada. E como na altura sofria de asma, estava também a dar umas bombadas de um medicamento. Estava nesta “coisa fantástica” e, de repente, “bum”: senti um estouro nas costas. Não foi nada do que por norma se conta sobre estes episódios, como a dor no peito ou a paralisação do braço esquerdo. No meu caso, foi um violento empurrão nas costas. Transpirava muito e fui logo à casa de banho: vi que estava sem cor.
“Há aqui qualquer coisa que não está bem”, dizia para mim próprio. Já tinha tido ataques de pânico e de ansiedade, e não eram nada daquilo. Liguei à Catarina, hoje minha mulher. À época vivíamos juntos e já tínhamos a nossa filha mais velha. Disse-lhe que não estava a sentir-me bem. Um psiquiatra, que tinha um gabinete de consultas no edifício em que eu trabalhava, veio ver-me e comentou que a situação não lhe parecia nada boa. Perguntei-lhe se estava a ter um enfarte. Ele não disse nem que sim nem que não.
Quando a Catarina chegou, telefonámos para o 112. Fui transportado para o Hospital de São José – a contragosto, porque a equipa do INEM não queria levar-me. Diziam que era um ataque de pânico, por ter apenas 33 anos e porque a tensão arterial e as pulsações “estavam ótimas”. Eu sentia o coração ao pé da boca, e tinha a noção de que era uma questão de tempo até perder os sentidos e desaparecer. Ao hospital foi transmitido que estava a chegar numa ambulância um indivíduo novo com um ataque de pânico.
Na urgência do São José, insisti que sentia que, mais minuto menos minuto, me ia apagar. Até que me fizeram um eletrocardiograma. O médico jovem que me atendeu, devia ser interno, apareceu-me depois e soltou um palavrão antes de me dizer que eu estava, de facto, a ter um enfarte. Alertei-o de que, desde o telefonema para o 112, já tinha passado cerca de uma hora e meia. “Não sei se isto dura muito mais tempo”, lembro-me de lhe dizer.
Os especialistas de serviço ativaram, então, as emergências todas. Despiram-me, puseram-me numa maca, deram-me comprimidos de nitroglicerina para pôr debaixo da língua, aspirinas, diazepam, e mandaram-me de urgência numa ambulância para o Hospital de Santa Marta, para fazer um cateterismo.
Um cardiologista e a equipa dele já estavam à minha espera, e aquele médico avisou-me de que aquilo podia correr muito bem mas também podia correr mal, e perguntou-me se queria telefonar a alguém antes de o procedimento começar. Escolhi falar com a minha filha. “O pai vai fazer uma viagem e não sabe se volta”, foi o que me ocorreu dizer-lhe. A Carolina, com os seus 4 anos, não percebeu nada daquilo. Desejou-me “boa viagem”.
“FOI MUITO BOM”
Como já estava em ataque cardíaco, o tal cateterismo de emergência é um pouco uma suposição de que será determinada artéria que está entupida – e, se não for, não há muito mais a fazer. Mas correu tudo bem. A artéria que estava entupida foi detetada e tratada. Regressei a casa com um diagnóstico grave. Os médicos avisaram-me de que era um cartão amarelo, de que tinha de mudar o estilo de vida, deixar de fumar, fazer mais exercício, o expectável.
Depois do meu enfarte, eu e a Catarina casámo-nos, porque ela dizia que não queria ficar viúva solteira. Já que era para o ser, que fosse com classe – e nunca como “namorada viúva”, que não dá direito a título nenhum [risos].
Ainda estávamos na lua de mel, em Vigo, quando o cardiologista de Santa Marta me telefonou. Disse-me que tinham estado a ver os meus exames e as minhas análises e que tinham detetado o risco de eu sofrer arritmias graves, como as daqueles futebolistas que morrem em campo, exemplificou. Aconselhou-me a não fazer grandes atividades físicas e pediu-me que fosse ao hospital “com alguma urgência”.
Em janeiro de 2007, estava de regresso ao Santa Marta para mais um cateterismo. Iam provocar-me arritmias, para perceberem até onde o meu coração aguentava. E, numa das batidas, não aguentei. Senti-me a ir, mas também senti que tinha algum controlo sobre se queria voltar ou não. Hoje estou convicto de que escolhi voltar, embora o médico diga que não, que eu recuperaria sempre.
Tive uma sensação de libertação enorme, de desprendimento, nunca tinha passado por uma paz e uma tranquilidade tão grandes, mas também muito energética numa aproximação àqueles que já cá não estavam, uma coisa que ainda hoje não consigo explicar. Ao meu pai, que morreu de ataque cardíaco com 43 anos, à minha frente, em nossa casa, um trauma de que demorei a recuperar. A tios meus que tinham partido há muito, avós… Tive a sensação de eles estarem ali a dizer-me: “Vem embora, que isto não é mau.”
Quando acordei, tinha o peito todo queimado por causa das descargas dos desfibriladores e, um bocado aflito, o médico disse-me: “Estava a ver que você ia, que não queria voltar.” Caí numa choradeira tremenda. “Está a chorar porquê?”, perguntou-me. “Porque foi muito bom”, respondi-lhe. O médico estava espantado, porque pessoas que passaram pela mesma situação, como me descreveu, disseram que tinham visto coisas horríveis e tormentosas.
Desde então, tenho um cardiodesfibrilador implantável. Ou seja: se tiver uma arritmia violenta não morro, porque levo com descargas elétricas até o coração voltar a bater outra vez. E sei uma coisa: viver é bom.