A minha história, apesar de ser minha, é igual à de tantos homens.
Tinha 10 anos e ele era um amigo da família, um homem bem-visto na comunidade, em Setúbal. Os abusadores não passam o seu tempo a seduzir as crianças, passam-no a seduzir os adultos, para não serem vistos como uma pessoa perigosa e assim poderem aproximar-se sem qualquer tipo de suspeita. Foi o que me aconteceu.
Ele vivia perto do campo de futebol onde eu jogava à bola com os meus amigos. Aparecia lá e fazia perguntas perfeitamente inofensivas para se aproximar de mim e de outros rapazes. Aqueles que lhe dessem mais correspondência eram em quem ele investia para começar a entrar na intimidade. Dizia-nos que podíamos ir beber água lá a casa ou ver televisão enquanto descansávamos.
Somos educados para confiar nos adultos, por isso nunca estranhei a atenção que me dava. Nunca tive medo dele, nem quando começou a isolar-me dos meus amigos para poder sexualizar a conversa.
Estávamos a ver televisão e ele despia um pouco a camisa, para mostrar os pelos do peito. Noutro dia, desapertava o cinto, tentando suscitar a minha curiosidade. Fazia-me perguntas de cariz sexual: se já tinha pelos, se algumas partes do corpo cresciam quando eu me tocava… É preciso lembrar que, naquela idade, tudo o que se relacionava com a sexualidade era tabu. E ele apresentava-se como um amigo com quem eu podia falar sobre isso.
O ambiente estava criado para, quando começasse a avançar, já não fosse estranho. Era o resultado de um longo caminho de manipulação e sedução. Não se tratou do caso de um desconhecido que aparece a uma criança na rua e, do nada, começa a agarrá-la.
Estava envolvido numa situação que tinha de ser mantida entre nós e não podia contar a ninguém. A pessoa que esticava a mão para dar um carinho, um afeto, era a mesma que abusava. Ele passava sempre uma mensagem de calma e tranquilidade e eu era uma criança carente. Outra, que tivesse mais atenção e carinho em casa, se calhar não correspondia tão imediatamente.
Começou a expor-se cada vez mais, a mostrar que estava ereto, a suscitar a minha curiosidade sobre o seu órgão sexual, dizendo-me que quando eu crescesse iria ser como ele, com pelos e pénis grande.
Um dia, que foi o último, ele tinha-me levado para a sua cama quando alguém bateu à porta. A expressão dele mudou radicalmente. Aquele homem, que se mostrava amigo, calmo e tranquilizador, estava assustado, em pânico, sem saber como reagir. Tapou-me a boca com a mão e disse-me para não fazer barulho.
Foi nesse momento que percebi que alguma coisa não batia certo. Se tudo aquilo era normal, como ele dizia, a reação dele não tinha razão de ser. Quebrou-se a confiança. Então eu, aproveitando que ele estava desarmado, vesti-me, fugi e jurei que nunca mais apareceria em casa dele. Não sabia o que se passava, mas era algo mau. Disso tinha a certeza.
Mais tarde, lembro-me de ele se cruzar comigo e com a minha mãe e de perguntar quando é que eu aparecia em casa dele – sabia que podia falar assim, abertamente em frente à minha mãe, pois nunca ninguém iria desconfiar dele.
“Foram os piores dias da minha vida”
Foram precisos 20 anos. Entretanto, o meu cérebro apagou esses momentos, num processo de sobrevivência que surge quando as memórias são demasiado fortes para uma pessoa lidar com elas. Só assim consegui seguir com a minha vida.
Mas o impacto traumático estava lá. De cada vez que um professor me dava atenção, reagia sempre de forma negativa, sem saber porquê. Não tinha confiança nas pessoas, mantinha-me à distância, pois o abusador era alguém em quem eu confiei. Tentava justificar estas atitudes como sendo parte integrante da minha personalidade, quando na verdade se deviam ao trauma.
Não significa que eu andasse por aí combalido ou sofrido. Sempre fui extrovertido, social, fazia teatro, tocava música, aprendia karaté. Quem olhasse para mim, era uma criança como as outras. Só que internamente a minha realidade era diferente. Como o lado emocional me doía, passei a ser extremamente racional.
Perto dos 30 anos, numa das vezes que vim a Setúbal visitar a minha família, há alguém que me acena, ao longe, como se fosse um amigo de infância que não via há anos e queria muito falar comigo. Era ele. Senti um murro no estômago, sem perceber a razão. Virei imediatamente as costas e fui para a minha casa, em Lisboa, muito confuso. Não consegui dormir, pois comecei a lembrar-me de tudo, do abuso, da manipulação… Passei várias noites em claro. Foram os piores dias da minha vida.
Fiz o que muitos homens na mesma situação fazem: tentei apagar de novo essas memórias e seguir em frente. Antes ainda o denunciei à polícia, mas estes crimes prescrevem cinco anos após a criança fazer 18 anos (até aos 23) e disseram-me: “Agora já não há nada a fazer.”
Foram precisos mais cinco ou seis anos para procurar ajuda, quando voltei a sentir muita raiva, muito nojo, muita culpa. Vivia em Manchester na altura e recorri a uma associação que me acompanhou no processo de recuperação do trauma, de desconstruir a narrativa de uma vida, em que me considerava culpado pelo abuso. Só então percebi que ele é que seduziu, manipulou e abusou.
Quase no final do meu processo, pensei que se vivesse em Lisboa não teria nenhuma associação a que recorrer. Foi então que voltei para Portugal e fundei a Quebrar o Silêncio para dar apoio a outros homens que passaram por situações semelhantes e que precisam de ajuda para ultrapassar as consequências do abuso.