A fotografia de uma árvore de grandes dimensões a avançar na imensidão do mar com que abrimos este artigo é, ao mesmo tempo, poética e surreal. Mas basta ler a sinopse do documentário Taming the Garden, realizado por Salomé Jashi, para o surrealismo da cena se sobrepor à poesia da imagem.
“Um homem poderoso, que é também o ex-primeiro-ministro da Geórgia, desenvolveu um hóbi requintado. Coleciona árvores centenárias ao longo da costa da Geórgia. Paga aos seus homens para arrancá-las e trazê-las para o seu jardim particular. Algumas dessas árvores são tão altas como prédios de 15 andares. E para transplantar uma árvore dessas dimensões, são cortadas outras árvores, são trocados cabos elétricos e são abertas novas estradas através de plantações de tangerinas.”
Taming the Garden é um documentário, repita-se, cujo título pode ser traduzido, à letra, por “domando o jardim”. A realizadora georgiana, de 41 anos, chama-lhe “uma ode poética à rivalidade entre homens e natureza”. E, embora não haja espaço para poesia nesta loucura do multimilionário Bidzina Ivanishvili, o filme é tão belo que se aceita que Salomé caia no pleonasmo de chamar poética a uma composição poética.
Ao mesmo tempo, a realizadora lembra que a realidade não deixa de ser “opressiva, tangível e surreal”. É verdade que Ivanishvili nunca aparece ao longo dos 92 minutos do documentário. E que mesmo o seu nome é apenas vagamente mencionado, apesar de ele pairar como uma onipresença maligna. Mas tudo aquilo que vemos no filme é indissociável do facto de nos bastidores estar o homem politicamente mais poderoso daquela ex-república soviética, situada entre a Rússia e a Turquia.
Durante quase dois anos, a equipa liderada por Salomé viveu ao ritmo dos elementos naturais, do complexo processo de transplantação das árvores e dos imprevistos. Não fosse o orgulho dos engenheiros envolvidos não teriam conseguido recolher imagens.
O maior desafio, porém, foram os habitantes das aldeias empobrecidas de onde iam sendo compradas as árvores. “As pessoas tinham com frequência medo até mesmo só de aparecer à frente das câmaras, receando possíveis consequências”, conta a realizadora. “Aquele medo que nós, como outras democracias frágeis, temos no nosso sangue.”
Bidzina Ivanishvili fundou um império metalúrgico e bancário na Rússia após o fim da URSS. Hoje, com 66 anos, casado, pai de quatro filhos, é o homem mais rico da Geórgia – segundo a Bloomberg, a sua fortuna está estimada em quase 6 mil milhões de dólares, mais do que o orçamento do pequeno país do Cáucaso para 2021.
Foi primeiro-ministro da Geórgia apenas entre outubro de 2012 e novembro de 2013, porque ao fim de treze meses considerou que o seu trabalho estava feito. Quase dez anos depois, a coligação que fundou – Sonho Georgiano – continua no poder. Quanto a ele, diz-se reformado da política, mas especula-se que tem as rédeas do poder no País.
“O poder está concentrado nas mãos de um único homem, e claro que é Bidzina”, afrmou um seu antigo aliado, Giorgi Gakharia, que se demitiu do cargo de primeiro-ministro em fevereiro do ano passado, dizendo que o controlo do multimilionário se tinha tornado asfixiante. “Não o vemos em nenhum lado, mas a verdade é que está presente em tudo”, também já comentou Armaz Akhvlediani, membro do Parlamento.
Quando o oligarca decidiu que ia ter mais de duzentas árvores de grande porte, nada o travou. É a sua paixão. “É o meu hóbi, realmente amo árvores grandes”, explicou numa rara entrevista. “As árvores gigantes são o meu entretenimento.”
No último dia de 2015, Ivanishvili obteve a primeira autorização para transplantar árvores. Pelo equivalente a 2 600 dólares, o Governo na República Autónoma de Ajária permitiu que a sua empresa Zimo Ltd. desenterrasse dois ciprestes-calvos de grande porte e um tulipeiro com 135 anos, e os enfiasse em barcaças rumo ao seu futuro arboretum privado, no município de Ozurgeti, na costa do mar Negro.
Quando o processo teve início, no início de 2016, a notícia já chegara ao conhecimento do grupo Guerrilla Gardening Tbilisi. Os homens encarregados de escavar à volta das três árvores tiveram, então, de trabalhar escoltados por 40 agentes da polícia, e cinco ativistas acabaram por ser detidos por terem tentado impedir a marcha de um trator.
As árvores seguiriam mesmo viagem e a imagem do tulipeiro a caminho do parque de Ivanishvili tornar-se-ia viral, sendo partilhada na internet com a legenda “A árvore nadadora”. Surgiram memes com árvores a correr e o oligarca atrás delas, de espada na mão. E recordou-se a cena icónica do filme O Olhar de Ulisses, de Theo Angelopoulos, em que uma estátua colossal de Lenine desce um rio numa barcaça.
Na altura, e, aliás ao longo de todo o processo de transplantação de mais de duzentas árvores, o ministro do Ambiente veio a público dizer que era tudo legal. Além disso, acrescentou que algumas árvores encontravam-se em risco, sem quaisquer medidas de proteção, sendo melhor Ivanishivili encarregar-se delas no futuro.
Durante o processo, que custou milhões de dólares do bolso de Ivanishvili, foi preciso construir novas estradas e novos cais para que as árvores chegassem à costa. Houve acidentes, catenárias derrubadas, comboios retidos. E houve também a aplicação de uma coima, quando um empreiteiro decidiu alargar um rio para conseguir fazer navegar uma barcaça que levou duas árvores centenárias gémeas de uma aldeia até à costa marítima – 570 dólares, valor obviamente insuficiente para custear os danos ambientais provocados.
O filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog, em que o protagonista quer levar a ópera ao coração do Amazonas, parece uma brincadeira de meninos ao pé de tudo o que foi feito para transplantar as árvores até ao futuro bosque centenário de Ivanishvili.
Os protestos dos ambientalistas multiplicaram-se, mas sem resultados práticos no terreno. Rezo Kharazi, representante do Movimento Nacional Unido, foi filmando e fotografando o que se passava junto à aldeia de Buknari, numa cruzada de um homem só. “Pelas nossas estimativas, deitaram abaixo 3 800 árvores porque estavam no caminho e já foram transplantadas cerca de 150 [das compradas por Ivanishvili]”, dizia ele, em 2018. “Tudo o que demorou tanto tempo a ser plantado e a crescer está a ser sacrificado por causa da obsessão de um homem”, lamentava.
“A maior questão ambiental é a destruição da camada superficial da terra e da paisagem”, diria ao site Eurasianet, já depois de finalizado o processo, Irakli Macharashvili, da organização de defesa ambiental Alternativa Verde. “O desenraizamento deixa para trás a devastação ambiental, como buracos enormes no solo e camadas de solo em falta. E a recuperação completa não é possível”, alertava.
O documentário de Salomé Jashi começa com a árvore a atravessar o mar Negro que vemos na fotografia que abre este artigo. É uma viagem que simboliza a de todas as outras que embarcaram rumo ao arboretum de Ivanishvili, muitas vezes depois de despedidas dolorosas.
No trailer vemos uma árvore a sair de uma aldeia e muita gente atrás dela, em procissão. Há uma mulher que se benze, dois homens que se abraçam, parece um funeral. Não há muitos diálogos, a realizadora achou desnecessários.
Também não há perguntas nem respostas, nem grandes explicações. Salomé Jashi é uma realizadora que não costuma tomar posições; mostra os factos, acredita na inteligência dos espectadores. E lembrará, em mais do que uma entrevista, que esta é uma história demasiado grande para ser contada num único filme de 90 minutos.
A verdade é que as imagens falam por si mesmas. E fica a metáfora do desenraizamento, o abuso do rico sobre os pobres, as crateras onde antes se erguiam árvores a gritar emoções. É assim que Salomé, já anteriormente premiada pelos seus documentários Bakhmaro (2011) e The Dazzling Light of Sunset (2016), gosta de trabalhar. Depois de ter sido repórter durante vários anos, concorreu a uma bolsa para estudar realização de documentários em Londres e acabou a mudar de agulha.
O documentário tem várias camadas, cabendo aos espectadores destaparem mais ou menos, diz a realizadora, que compara o seu visionamento à experiência de caminhar na natureza. “Talvez uma pessoa oiça um mocho à distância, repare na erva ondulando estranhamente na brisa suave ou sinta uma repentina lufada de ar frio no pescoço suado. Por vezes, estes momentos evocam sentimentos viscerais, outras vezes são puros factos. Desta maneira”, acredita, “o filme torna-se uma experiência individual.”
No documentário também não se diz que o Shekvetili Dendrological Park, situado em Shekvetili, no município de Ozurgeti, a uma hora de carro a norte de Batumi, está aberto ao público desde o dia 15 de julho de 2020. A entrada é gratuita e, só nas duas primeiras semanas, recebeu 250 mil visitantes que provocaram grandes engarrafamentos nas suas imediações e filas longas e caóticas à porta.
É um jardim domesticado, onde muitas das árvores gigantes ainda estão presas por cabos, mas os relvados apresentam-se sempre impecáveis e os flamingos são de um cor de rosa choque impressionante. Tem 18 hectares dedicados às árvores endémicas da Geórgia, um bosque de bambus, alguns pequenos primatas e muitas aves.
Logo num dos primeiros fins de semana de agosto desse ano, Gocha foi lá com a mulher e os três filhos pequenos. Não demorou muito até os dois miúdos mais velhos desatarem aos gritos junto a uma árvore de folhas verdes e brilhantes. “Papá, papá, encontrámo-la!”, chamaram, mas rapidamente a mãe lhes desfez a certeza. “Não, a nossa era muito maior.”
Gocha explicaria, então, aos repórteres do site de notícias Eurasianet que estavam a ver se descobriam a magnólia que a família tivera no quintal durante mais de cem anos. “O Ivanishvili levou a nossa árvore e estamos a ver se a encontramos.” Gocha não era o seu nome verdadeiro, nem ele iria sequer dizer em que aldeia moravam. Temia comprometer o contrato assinado com os homens do magnata.
“O meu bisavô plantou aquela magnólia e eu vendia-a por dinheiro. Que tipo de homem sou depois disto?”, comentou, com um sorriso culpado. “Mas fi-lo por eles, para lhes comprar roupas e manuais”, justificou, apontando para os filhos. “Tinha de arranjar o telhado e a minha mulher queria uma nova máquina de lavar a roupa.”
Aos repórteres, Gocha, nitidamente arrependido daquela espécie de pacto com o Diabo, lembra que uma pessoa pode fazer qualquer coisa quando tem muito dinheiro e vive num país pobre. “Aquela árvore dava-nos alegria, sombra e alegria, e eu vendi-a para comprar coisas. Acho que as pessoas vendem qualquer coisa pelo preço certo.”
No documentário de Salomé Jashi, há uma cena em que dois aldeões estão à conversa e um pergunta ao outro: “Ouviste a história da velha e da árvore?”. Os advogados de Ivanishvili tinham ido a casa de uma mulher já com bastante idade, perguntaram-lhe quanto queria por uma determinada árvore e ela respondeu: “400”. Quatrocentos lári, a moeda local, são cerca de 120 euros. “Quatrocentos mil é muito, podemos dar-te quarenta mil”, disseram-lhe os advogados. E nós ficamos a pensar no espanto da mulher e na rapidez com que deve ter fechado o negócio.
Cada árvore teve o seu preço, nem sempre regateado. Em 2017, um homem contou ao canal de televisão Rustavi 2 que trocou o seu eucalipto centenário por um computador. O filho não tinha nenhum e ninguém os ajudava.
Pouco depois de Gocha assinar o contrato, chegaram as máquinas escavadoras e as gruas pagas por Ivanishvili. A aldeia apareceu em peso para ver um grupo de homens a arrancar a árvore, juntamente com o grande torrão de terra que envolvia a sua raiz, e a depositá-la num camião. A manobra incluiu o derrube de alguns cabos elétricos para dar passagem à magnólia. No fim, Gocha diz que ficou com um grande buraco no quintal e no coração. “Senti-me como se tivesse vendido um membro da família.”