Todos temos histórias diferentes. Na doença mental não há diagnósticos iguais. Tenho 56 anos e as histórias sempre fizeram parte da minha vida. Na adolescência, passava horas na Biblioteca Municipal de Torres Novas a ler os livros de Júlio Verne. A certa altura, transformava-me nas personagens e, a partir daí, era intocável.
Vou ser muito sincero, hoje não leio. Por outro lado, nos últimos anos, escrevi dois livros nos quais não tive de me transformar em ninguém. Chegar aqui não foi fácil. Houve alturas em que a minha vida foi um filme. De terror, mesmo.
Aos 16 anos, a doença veio e ninguém percebia o que se passava. Embora já fosse muito adulto e reservado, e até vítima de bullying, de repente, não sei bem porquê, ficou tudo ao contrário. Negro e triste ou, como naquele tempo eu costumava dizer, em vias de decomposição. Não conseguia dormir, ouvia vozes de todo o lado, sentia-me descontente e revoltado, o mundo cheirava a podre e era violento, e eu era o centro desse mundo.
Na aldeia Pé de Cão, ao pé de Torres Novas, onde vivia com os meus pais, ninguém sabia o que eu tinha. “O que é que ele quer? Grita, porquê? Responde à rádio, porquê?” Bem, na rádio dizem sempre “você isto, você aquilo”… Eram só mais vozes a falarem comigo, a aumentarem a minha necessidade constante de gritar para qualquer coisa que estava cá dentro.
Era como que uma espécie de fervor no peito e na cabeça capaz de fazer com que me arrastasse pelo chão, corresse pelos muros fora, tentasse queimar todos os livros do sótão da minha casa ou acreditasse que estava a levitar e a caminhar em direção ao espaço. Era uma violência que não se apagava nunca.
Descompensação da psicose paranoide grave. Foi o nome bonito que deram ao meu diagnóstico, na primeira vez que fui parar ao Hospital Júlio de Matos, pouco tempo depois do início dos sintomas.
Estava a passar por uma fase muito crítica, por isso, ao chegar ao hospital, tiveram de sedar-me e assim fiquei durante uma semana. Quando acordei, não sabia onde estava ou o que se passava. Lembro-me de que havia pijamas cinzentos por todo o lado, homens amputados que tinham vindo da Guerra do Ultramar e tapetes com as iniciais HJM. Gritei que não estava bem e que queria a minha mãe. Foi uma coisa terrível para se viver aos 16 anos.
Depois de ter alta, os meus pensamentos já estavam mais organizados, mas, a partir daí, a minha vida foi sempre um bocadinho mais pesada do que a dos outros. Na aldeia, muita gente dizia que eu devia ser preso, porque estava era drogado. O único capaz de levantar a voz para dizer: “Ele está doente”, foi o meu avô. Para o meu avô, eu era um homem muito valente. Apesar de não saber ler nem escrever, era a única pessoa, mesmo dentro da minha família, que percebia, que nunca se revoltou contra mim e que me ensinou que um homem, para ser homem, tem de ser honesto, honrado e cavalheiro.
Hoje, vivemos num mundo onde o estigma é ainda muito presente. Muitas vezes, pergunto-me o que seria de mim sem a Casa de Saúde do Telhal, onde estive internado várias vezes, sem a reabilitação psicossocial ou o treino de autonomia que, nos últimos 15 anos da minha vida, os psicólogos, os teólogos, os psiquiatras e as assistentes sociais dessa casa me deram. O que seria de 70% ou 80% dos homens que lá estão? O que seria de nós? Provavelmente andaríamos a fugir do mundo… E há muitas maneiras de o fazer.
“Quis desaparecer”
Quando fiz 18 anos, senti que as coisas não evoluíam. Via os meus colegas a namorarem e sentia-me diferente, humilde, humilde, humilde, triste, triste, triste. Foi nessa altura que tive a primeira intoxicação medicamentosa, quis desaparecer disto tudo. Depois desse episódio, era estranho estar na aldeia com as pessoas a olharem para mim e decidi mudar-me para Lisboa, aos 20 anos, convencido de que já estava bem.
Deixei de tomar os medicamentos e foi então que parece que houve um fusível que queimou ede tal forma que passei um fim de semana inteiro à deriva pela cidade. Sei que me sentei num restaurante e comi, comi, comi. Não sei quem é que estava comigo nem quem pagou. Fingi-me embriagado e tentei bater nos seguranças do Rock Rendez Vous, depois passei num bar e puxei uma senhora que estava com o namorado, convencido de que ela era minha namorada. Incomodei a senhora, incomodei o namorado, incomodei quem estava… incomodei.
A polícia foi dar comigo junto do quartel geral de São Sebastião, enquanto puxava a arma de um soldado que estava à porta, levou-me para a esquadra e daí para o hospital. Eu andava desorientado, era mais uma fuga deste mundo, e, no hospital, tiveram de fechar-me numa sala escura. Gritei e chorei pela minha mãe, até que me esgotei. “Não vou gritar mais, ninguém me ouve”, pensei. Se não estou medicado, destruo-me ou destruo alguém, não há meio-termo.
Há 35 anos, os medicamentos eram horríveis, só davam sono, mas era o que havia e o que fui tomando nos 20 anos que se seguiram. Nesse período, vivi num isolamento do mundo, em casa dos meus pais.
Às vezes era internado 15 dias ou um mês na Casa de Saúde do Telhal e, a certa altura, tentei matar-me de novo. Fiz um montinho com todos os comprimidos que tinha em casa e tomei-os com um copo de água. Como achei que não era suficiente fui buscar meio pacote de veneno dos ratos. Coitadinha da minha mãe, chegou a casa e arrastou-me rua fora a pedir ajuda para ir ao hospital.
A família inteira continuava a dizer-lhe que devia internar-me definitivamente, mas ela prometeu-me sempre: “Até poder, fico contigo.” É difícil para os outros perceberem a vida da minha mãe. O que é cuidar sem ser cuidado, ter de ter força por ela e por mim.
Hoje, tomo cerca de 11 comprimidos por dia. Só de psiquiatria são nove. A minha doença está lá, só que mudou de rosto. Essa mudança não foi feita só através de medicamentos, mas com uma terapêutica que fez com que eu começasse a alterar o comportamento e a socialização, a ver o mundo como ele é, a sentir prazer em passear, ir beber um café e comprar uma peça ou outra de vestuário. Na Casa de Saúde do Telhal ensinaram-me a ser autónomo e comecei a ter prazer na vida.
Eu, que em certas alturas nem conseguia sair de casa, acabei por trabalhar cinco anos na Fundação São João de Deus com a função de ir visitar os idosos e levá-los às consultas. Na fundação fiz amigos, escrevi o livro A Vida Como Ela É e acabei por ter ajuda para encontrar o meu atual trabalho como voluntário na Operação Nariz Vermelho. Sou um sortudo. Não sei se a minha vida é diferente da dos outros. Eu falo dela sem vergonhas.