Figura dotada de curiosidade intelectual intensa, vocação para os afetos, sentido de humor singular e integridade, sempre pronto para mais um projeto, para mais uma batalha cultural, para mais uns dedos de conversa, sempre disponível para os amigos, João Paulo Cotrim deixa um grande vazio. O editor estava internado no Hospital dos Capuchos, onde morreu este domingo, dia 26.
Desaparecido aos 56 anos, deixa um legado criativo plural, tendo tido um papel determinante e tutelar nos universos da banda desenhada, do design gráfico, da ilustração e da literatura portuguesas. Figura afável e próxima dos artistas e dos autores, irreprimível organizador de exposições, fanzines, encontros, projetos literários, escreveu igualmente em nome próprio, tendo produzido livros para crianças, poesia, ensaios, novelas gráficas, guiões de filmes de animação. Com cúmplices de sempre, escreveu, por exemplo, a novela gráfica Salazar – Agora, na Hora da Sua Morte (com Miguel Rocha), a ficção O Branco das Sombras Chinesas (com António Cabrita). o tomo poético Má Raça (com Alex Gozblau), ou o livro infantil Querer Muito (com André da Loba).
Lisboeta nascido a 13 de março de 1965, João Paulo Cotrim cedo iniciou a carreira de jornalista, aos 20 anos. O seu percurso foi amplo, tendo marcado presença nas redações da ANOP, Expresso, O Independente, Cosmopolitan, RTP, SIC, TSF e Diário de Notícias. Escreveu igualmente para revistas e jornais como a Marie Claire, Oceanos, Grande Reportagem, Ler, Colóquio Letras, o suplemento DNA, ou ainda o Le Monde e Hoje Macau. Foi ainda professor nas escolas Ar.Co e IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação. Um turbilhão curricular que demonstra a sua constante inquietação e a disponibilidade para abraçar novos desafios, sem preocupações com recompensas hierárquicas ou símbolos de status.
Nos últimos anos, dedicou-se à editora Abysmo, cujos livros tinham arrojo gráfico, um cunho original, e um sentido de partilha generosa e alegre – características que sempre aplicou nos projetos e na vida. As portas da editora, gerida com a mulher Isabel, estavam igualmente abertas, através da galeria com o mesmo nome, para todos os nomes da ilustração portuguesa e não só. Recentemente, a editora foi contemplada com o Prémio Oceanos 2021, tendo o galardão distinguido o romance O Plantador de Abóboras, escrito pelo timorense Luís Cardoso.
João Paulo Cotrim era ainda uma figura tutelar nos universos da banda desenhada, do design gráfico e da ilustração portuguesas. Dirigiu a Bedeteca de Lisboa durante seis anos, entre 1996 e 2002, e o Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada durante quatro edições, e foi responsável por muitas provas de vida da arte desenhada. Nos últimos tempos, a vida tinha-lhe pregado a partida de um problema oncológico, que superou com a determinação e sorriso de sempre.
Perante a pandemia, que trouxe tantos desafios a quem ama os livros, João Paulo Cotrim respondeu a perguntas sobre os hábitos de leitura e a sobrevivência editorial à VISÃO, em abril de 2020, com o pragmatismo otimista e a veia de sonhador que conseguia fazer conviver sem dramas: “Não creio que regressamos a nenhuma época de ouro, que estará sempre por definição em passados e mitos, mas isso exigirá das editoras (e outros atores da tragicomédia editorial) novas respostas que respondam a novas necessidades. Sem dúvida que se abriram as portas de um grande laboratório, assim haja quem queira agora manipular os aceleradores de partículas, que não será a aplicação acéfala de pomada na pele carcomida do marketing. Condenado o objeto livro a uma comunidade de nichos, será daqui que surgirão as propostas mais interessantes. (…) Quanto aos hábitos de leitura, poderia ser uma oportunidade para que as editoras resolvessem pensar mais na qualidade do que editam, com mais tempo para trabalhar os seus livros, com tempo para que estes respirassem nas livrarias, desafiando a comunicação social a devolver-lhes a atenção que triturou em páginas cegas e esparsas de entretenimento, convocando outros saberes para criar novos modelos. Podia ainda ser o momento para repensar o Plano Nacional de Leitura, agora à deriva e sem meios, ou, pelo menos, para haver uma grande e integrada campanha, capaz de se tornar desígnio nacional, que procure meter alguma areia na engrenagem dos tempos. Causa perdida? Para as multidões, claro. Mas parece chegado o tempo das imensas maiorias. Nunca fomos todos o mesmo. E os bons livros param o tempo, descobrem o passado, inventam o futuro. Ou vice-versa.” Tal como os bons editores – e os amigos leais.