Só pela imagem virtual, a instalação intitulada Plantação – Prosperidade e Pesadelo, do artista angolano Kiluanji Kia Henda – que se destina a suportar o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, no Largo José Saramago, no renovado Campo das Cebolas lisboeta -, emana um forte poder simbólico. Kiluanji, a partir de um conceito que aborda a memória da escravidão “enquanto presença de uma ausência”, construiu uma plantação artística de cana-de-açúcar, com 540 pés em alumínio negro, imagem do chamado “ouro branco” que esteve na origem do tráfico negreiro, e que constitui “um convite à caminhada e à reflexão”.
“Uma angariação de fundos ou o apoio de algum mecenas da construção civil, ou de outra área, que nos pudesse ajudar, seria bastante útil a toda a sociedade lisboeta e portuguesa”, diz José Lino, dirigente da associação Batoto Yetu
A localização escolhida para a instalação daquela obra não podia estar mais historicamente certa: Lisboa tornou-se oficialmente, em 1512, o único porto de desembarque de escravos no reino, e o principal mercado de compra e venda de africanos situava-se no Terreiro do Paço, muito perto do Campo das Cebolas. Mas a nódoa histórica de Portugal como país pioneiro no tráfico negreiro já se tinha iniciado no século XV, com os escravos então a desembarcarem em Lagos, no Algarve, e com o Infante D. Henrique, enquanto organizador das viagens efetuadas a territórios africanos, a deter tal monopólio comercial. Esta situação manteve-se até 1460, data da morte do infante. O monopólio do tráfico de escravos passou depois para a Coroa portuguesa e seria centralizado em Lisboa.
De volta à instalação de Kiluanji e ao Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas: após o contrato celebrado entre o Executivo de Fernando Medina (agora de saída da liderança da CML-Câmara Municipal de Lisboa, depois da derrota nas autárquicas) e a Djass-Associação de Afrodescendentes, promotora do projeto, para a execução do mesmo, o artista angolano iniciou a obra, concluiu-a e tem-na armazenada há largos meses. E continua sem data marcada para que Plantação – Prosperidade e Pesadelo saia de tal situação e seja colocada no local escolhido pela CML e a Djass, por mútuo acordo, apurou a VISÃO.
PAI PAULINO ARMAZENADO
No mesmo impasse encontra-se outro projeto que também pretende dar a conhecer a história africana de Lisboa, a partir do tráfico de escravos, praticamente ignorada até hoje. Neste caso, o Executivo de Fernando Medina e a associação Batoto Yetu, promotora do projeto, acordaram na colocação, no Largo de São Domingos, junto ao Rossio, de um busto de Pai Paulino, escravo liberto e figura popular na Lisboa oitocentista, que se destacou como mediador de conflitos em que africanos estavam envolvidos e na denúncia de situações de escravatura ilegal.
O projeto da Batoto Yetu, contratualmente aceite pela CML, contempla ainda a colocação de 20 placas toponímicas de pedra, em seis freguesias lisboetas, com textos explicativos da presença de escravos (alforriados ou não) nesses territórios, com especial incidência no período entre os séculos XVI (em que os africanos já constituíam 10% da população de Lisboa) e XIX. Os referidos textos são da autoria da especialista Isabel Castro Henriques, que há meio século investiga, ensina e escreve para resgatar do esquecimento a História de África e dos africanos.
Mas, como a VISÃO apurou, o busto de Pai Paulino (da autoria do escultor moçambicano Frank Arroni Ntaluma) e as placas toponímicas estão há oito meses concluídos, armazenados e à espera da colocação nos locais acordados com o Executivo de Fernando Medina. E a Batoto Yetu já procura alternativas: “Uma angariação de fundos ou o apoio de algum mecenas da construção civil, ou de outra área, que nos pudesse ajudar, seria bastante útil a toda a sociedade lisboeta e portuguesa”, diz à VISÃO José Lino, dirigente daquela associação.
Dado o impacto visual, cultural, social e, até, político dos projetos promovidos pelas referidas associações africanas, ambos há largo tempo aprovados pela autarquia, embora sem os concretizar, importava saber se o novo presidente da CML, Carlos Moedas, que em breve tomará posse do cargo, considera aquelas iniciativas passíveis de reanálise, de eventuais alterações ou mesmo de revogações. Mas António Vale, porta-voz de Carlos Moedas, não respondeu ao pedido de esclarecimentos feito pela VISÃO. Resta esperar e ver.