O que está por detrás do trabalho final da Amnistia Internacional? O que vem antes das campanhas, das cartas, das vigílias. As violações do Direitos Humanos acontecem… e depois? Como é que a Amnistia sabe delas? Como é feita a investigação? Falámos com Pedro A. Neto, Diretor Executivo da Amnistia Internacional.
Como é que a Amnistia Internacional tem conhecimento das violações a Direitos Humanos que ocorrem?
Temos vários tipos de fontes: uma rede de investigadores que está no terreno praticamente em permanência e são profundos conhecedores dos locais, e que acompanha e monitoriza os fenómenos políticos e tudo aquilo que são ações dos Estados em relação aos direitos humanos e à sua proteção. Em segundo lugar, há relatórios que são publicados, quer relatórios oficiais das Nações Unidas, quer de organismos transnacionais, como a Comissão Europeia. Depois também temos fontes no terreno, tal como os jornalistas, que nos vão fazendo chegar informação. E, claro, as denúncias que vamos recebendo e vamos verificando, validando e investigando.
A investigação é feita por cada país, ou funciona em rede?
Há um risco que é o enviesamento, isto é, estamos muito próximos da nossa realidade, então podemos ter um viés inconsciente até, e por isso não fazemos investigação sozinhos. Há outros países em que infelizmente não é possível ter representações nacionais ou secções ou escritórios nacionais e, portanto, há um conjunto de investigadores que trabalha nesse país – é o caso de Angola e Moçambique. Como o nome indica, somos a Amnistia Internacional, trabalhamos em rede e a maior parte do nosso trabalho tem de ser, e deve ser, internacional.
Temos de ser rigorosos e não ceder à tentação da opinião, nem nos deixarmos manipular
Quais são os principais obstáculos às investigações?
A falta de recursos é um problema permanente porque quantos mais recursos há, mais fazemos e há sempre necessidade de fazer mais, portanto eu já nem conto com os recursos. Nós fazemos o máximo possível com o pouco que temos, se vier mais, faremos mais ainda. Outra dificuldade é, muitas vezes, o acesso à informação oficial, perceber se estamos a ser instrumentalizados. Então, temos de ser rigorosos e não ceder à tentação da opinião, nem nos deixarmos manipular. Depois, há outro tipo de dificuldade que nunca senti em Portugal, mas senti noutras realidades, que têm a ver com a nossa segurança física. Eu estive há pouco tempo num país, em que eu e um colega íamos ter uma reunião com um grupo de pescadores que nos iam falar dos problemas que tinham. Íamos a pé para o lugar combinado e, quando estávamos a chegar, aí a uns 50 metros, vi que estavam dois jipes da polícia à porta da casa onde íamos reunir e estavam pessoas algemadas uma às outras, em fila, a entrar para o jipe. E eu senti uma angústia enorme porque pensei “foi revelada a reunião e a polícia antecipou-se.” Esta é uma polícia muito ligada ao Estado, era um país onde a democracia não existe e os direitos humanos são muito desrespeitados, onde não há liberdade de reunião e manifestação, e a minha angústia foi: “a querer ajudar estas pessoas coloquei-as em risco”. Imediatamente desviei, já não entrei. Nós temos um protocolo quando estamos em missões perigosas, que é enviar de hora a hora uma mensagem a colegas que estejam no escritório a dizer “Olá boa tarde” ou “Está tudo bem” e se falham mensagens é imediatamente posto de pé um protocolo de resposta a crises para perceberem se estamos bem ou se nos aconteceu alguma coisa. Neste caso, comuniquei ao contacto a dar o ponto de situação, e, na troca de informações, percebemos que não eram pessoas que estivessem na casa ou em reuniões, eram refugiados, corrijo, porque eles não tinham esse estatuto, eram pessoas que fugiram do seu país, por estar em guerra e serem perseguidas lá, e a maneira de ficar no país onde estavam eram fazer venda ambulante, de rua. Então a polícia apanhava essas pessoas, prendia-as todas e levava-as à fronteira para as deportar diretamente, nem sequer tinham hipóteses de pedir asilo nem o que quer que fosse. Fiquei menos angustiado quando percebi que não foi falha nossa, mas não deixei de estar angustiado porque testemunhei uma violação de direitos humanos que estava a ser cometida por entidades do estado.

As vossas campanhas, muitas vezes, têm imagens. Para citar um de uma longa lista de exemplos, no caso da prisão em Madagáscar, percebe-se que não foram de uma câmara oculta. Além disso, Tamara Léger, da Amnistia, entra e comunica diretamente com os presos. Como é que uma organização que luta contra as violações de Direitos Humanos consegue entrar num sítio que as comete?
Nós não trabalhamos com câmaras ocultas. Toda a investigação que fazemos é sempre autorizada pelas autoridades competentes, seja para entrar num país, ou numa prisão, por exemplo, ou para fazer registo de imagem ou de vídeo. Claro que há países onde nem sequer nos deixam entrar, nós só temos relatórios de terreno em Angola desde há pouco tempo, por exemplo. Não quer dizer que não fossemos lá, que não trabalhássemos, que não estivéssemos atentos e não recolhêssemos testemunhos. Tentamos sempre ir aos territórios, mas se não houver essa possibilidade, isso também não nos limita, porque hoje temos ferramentas de tecnologia, imagens de satélite, para fazer análises, falamos com pessoas. Para ter uma ideia, nós temos um Crises Lab que desenvolve muito trabalho, até com recursos às redes sociais, onde é possível recolher um sem fim de imagens, fotografias e vídeos. Esse laboratório tem especialistas que analisam todas essas imagens, verificam se são montagens, de quando são. É incrível a informação que pode estar numa fotografia. Quase que dá para perceber as horas a que foi tirada, a altura do ano também! Para lhe dar um exemplo: chegou-nos imagens de um local onde foi cometido um massacre e era um local desconhecido, mas, além dos corpos e de tudo o que estava a acontecer, havia, em segundo plano, o contorno das montanhas, e nós por aí conseguimos descobrir o sítio exato onde isso tinha ocorrido, e fomos lá.
Richard Pearshouse é Diretor da Crises Response Team. O seu trabalho é direcionado para a resposta rápida a crises quando os motivos são ambientais. Já fez investigação no Camboja, na Amazónia e no Iraque e falou à VISÃO sobre a investigação que ele e a sua equipa fizeram sobre a criação de gado ilegal na Amazónia brasileira e que resultou no relatório: “Da floresta à fazenda”.

Como tomam conhecimento das violações de Direitos Humanos que estão a decorrer?
Depende da situação, às vezes recebemos uma informação de uma pessoa ou de uma organização, ou de uma comunidade que nos tenta contactar através das secções nacionais, ou outras vezes dá para ler a situação política no país e perceber que as coisas vão piorar. Foi esse o caso do Brasil, quando Bolsonaro foi eleito. Já se podia pressentir o que estava para vir, pela forma como ele guiou a campanha, vimos alguma violência direcionada à Amazónia índia e contra os escritórios ambientais.
Então seguiram para o terreno assim que ele foi eleito?
Nós já andávamos a controlar a violência, a falar com pessoas e monitorizar as redes sociais, e pouco tempo depois de ser eleito tornou-se claro que os seus apoiantes iam ganhar legitimidade e que, de facto, as leis ambientais não iam ser postas em prática. Então o que fizemos logo foi tentar perceber quais as comunidades que iriam ser afetadas mais rapidamente pela violência, que seriam as que já sofriam pressão na questão dos territórios e dos recursos, como o ouro ou a madeira, por exemplo. Então começamos a entrevistar pessoas e no segundo mês do mandato fomos para o terreno, visitar as comunidades. Era claro que já havia mudanças. Por exemplo, as pessoas contaram-nos que os “invasores das terras” só trespassavam os terrenos durante a noite e desde que Bolsonaro subiu ao poder, como se sentiam apoiados, já o faziam durante o dia; ou no passado mantinham-se mais pela floresta, longe das comunidades indígenas, desde Bolsonaro, estão apenas a alguns quilómetros. Numa comunidade em particular a placa que estava na entrada a demarcar o território foi alvejada, nela distinguiam-se os buracos das balas, um sinal de aviso… As pressões sobre o território sempre existiram, o que estava diferente era o medo. Além disso, agora as patrulhas feitas pelo governo acontecem com muito menos frequência.

Teve dificuldade em aceder a informação ou a visitar as áreas protegidas?
Há sempre restrições, há muitos sítios onde não se pode operar livre e abertamente. No Brasil há cidades em que não se pode prolongar a estadia, e normalmente não por causa dos indígenas… As pessoas com quem nos encontrámos eram, a maior parte, membros de comunidades extrativistas, no parque Chico Mendes, por exemplo, que levam um estilo de vida sustentável, por isso as pessoas com quem falámos sempre foram muito abertas e sempre quiseram falar connosco. Os problemas vinham das cidades em volta, que são tipicamente cidades de agricultores, onde há muita extração ilegal de madeira. São pessoas que suspeitam dos estrangeiros, e mesmo até dos brasileiros que vêm de outras partes do país. Depois as reuniões com oficiais do governo tornaram-se muito difíceis de acontecer. No entanto, muitos deles queriam encontrar-se na mesma connosco, mas fora de horas, porque estavam preocupados com o que se estava a passar. Queriam contar-nos as suas histórias para que estas cheguem “cá fora”. Tivemos vários encontros desses, com oficias que sentiam que já não conseguiam fazer o seu trabalho sob o mandato de Bolsonaro.
Estavam preocupados com a Amazónia…
Sim, são pessoas que trabalham para o governo. Essencialmente, o seu trabalho era fazer cumprir as leis ambientais, mas já não tinham o apoio político para o fazer, então queriam encontrar-se anónima e confidencialmente para passar informação dessa maneira. Não queriam dar nomes, mas queriam falar.

Para dar uma noção da questão, numa cidade provincial do Brasil um oficial do governo, que sabia que nós estávamos por lá, contactou-nos porque queria ser entrevistado, mas apenas às 11 da noite numa localização isenta, nem no seu escritório, nem na sua casa, nem no nosso hotel. Não nos queria dar o seu nome, mas queria mostrar-nos informação no seu computador. Essa informação era acerca de investigações muito detalhadas do governo sobre as usurpações de terra, numa área pela qual ele estava responsável. Mapas, fotos, informação detalhada acerca de quem o estava a fazer. Ele tinha uma frustração extraordinária porque a informação não estava a alcançar o mundo. Ele era um oficial do governo então sabia disto, a sua equipa andava a trabalhar nisto há muito tempo. É de uma pessoa muito humana e de alguém que de facto é um profissional muito dedicado querer tão desesperadamente que a história se torne pública. Foi do género “estou a ser pago e é a minha responsabilidade profissional fazer isto, e como não consigo fazê-lo no meio desta situação política atual, vou passar a informação a ti e a outras pessoas como tu”. Ele foi muito cauteloso com a segurança e ao mesmo tempo muito corajoso, eu acho.
Nessas cidades que referiu, dos agricultores, havia segurança para os investigadores?
Eram sítios perto de áreas protegidas, onde havia muita gente envolvida em atividades ilegais e nesses sítios não parávamos, apenas passávamos porque era geograficamente necessário. Outra coisa interessante foi que os indígenas patrulham as suas próprias terras, e nós fomos em algumas patrulhas. Normalmente os indígenas são muito corajosos a defender as suas terras, nem estão bem armados, muitas vezes saem de arco e flexa ou facas de mato, e encontram pessoas envolvidas em atividade criminal organizada que estão bem armados e muitas vezes bêbados, então a probabilidade de haver violência é elevada. Nas [patrulhas] que acompanhamos não encontrámos os usurpadores de terra, mas vimos sinais claros da sua ocupação, alguns dos seus acampamentos, por exemplo.

Nas áreas que visitámos, nas comunidades indígenas, com os agricultores à volta, em várias ocasiões fomos “convidados a sair”. Uma maneira comum de o fazer era fotografar-nos para que os agricultores pudessem começar a… ou fotografar as nossas matrículas, este tipo de coisas… Às vezes começavam a fazer perguntas sobre quem éramos ou em que caso estávamos a trabalhar. Houve um caso em que um dos meus investigadores foi parado e interrogado pelos agricultores e, por isso, teve de sair imediatamente da região. Há muitas maneiras de manter as ameaças controláveis, mas estão sempre lá.
Porque é que acha que existe tanta violência nestes lugares?
Acho que há dois motivos. Um, é a mensagem política que Bolsonaro passa de que os indígenas não são dignos das suas terras, de que a terra tem de ser produtiva, de que as leis ambientais estão a atrasar o Brasil… Todas estas mensagens são muito perigosas porque enfraquecem as regulamentações ambientais e prejudicam os residentes destas áreas [áreas protegidas que pertencem aos indígenas]. Acho que a segunda razão é que, quando existe violência, quando são mortas pessoas, há poucas maneiras de fazer com que a lei possa trazer os responsáveis à justiça, então existe um sentimento de impunidade à volta das pessoas que quebram a lei. As pessoas sabem que se quebrarem as leis ambientais é muito pouco provável que sejam chamados perante a justiça. Temos casos de homicídios na amazónia brasileira cujas investigações são empatadas, não são completas e anos depois não há ainda ninguém que tenha sido responsabilizado. Por isso há duas coisas, a primeira é a maneira que Bolsonaro legitima os usurpadores de terra, a segunda é a maneira como o sistema judicial não investiga por completo as mortes horrorosas que acontecem na amazónia brasileira.