Depois de saber que estava infetado pelo SARS-CoV-2, um jovem rapaz não aguentou estar sozinho e organizou uma espécie de Covid party, chamando alguns amigos lá para casa para lhe fazerem companhia. Quando a duas dessas pessoas o rastreador que fazia o inquérito epidemiológico lhes disse que também teriam de ficar isoladas além do tempo do infetado inicial, por terem tido proximidade desprotegida, choveram impropérios ao telefone.
Relatos de discursos perturbados e casos insólitos não faltam no rol de histórias que os rastreadores têm para contar – seja uma mãe de família que mesmo infetada continuava a cozinhar porque o filho de 18 anos não o sabia fazer; uma profissional de saúde que omitiu o contacto da empregada doméstica para não ficar sem a limpeza da casa; um senhor que dizia estar deitado na cama e do outro lado da linha ouviam o motor do carro a carburar; alguém que não atendeu o telemóvel, mas no telefone fixo o seu filho descaiu-se dizendo que o pai não estava em casa; uma pessoa no supermercado (ouvia-se o ato de passar os códigos de barra na caixa), a dizer que só estava a comprar lixívia para desinfetar tudo; alguém que garantia que morava sozinho, mas o Registo Nacional de Utentes mencionava que existia um cônjuge e filhos a morarem na mesma casa…
De cada vez que os casos positivos, bem como os seus contactos de alto e de baixo risco, mentem, omitem e tentam ludibriar os rastreadores, os inquéritos epidemiológicos perdem velocidade e os profissionais de saúde que, na sua maioria, os fazem, mais os militares que reforçam a operação desde novembro, desperdiçam tempo precioso para fazer face à estratégia de desconfinamento, apostada em testar em massa (escolas, prisões e empresas), rastrear, isolar e vacinar. Todos os minutos contam num verdadeiro “trabalho de formiguinha” em busca da verdade. Só assim conseguem encontrar a cadeia de transmissão, isolar os casos e travar a disseminação do vírus.
Mas este não é um problema exclusivo português. Em Inglaterra, os rastreadores não conseguem contactar uma em cada oito pessoas com teste positivo e 18% dos que são encontrados não fornecem detalhes sobre os seus contactos próximos.
“Além de fazermos os telefonemas, que não demoram cinco ou dez minutos, temos de ensinar conceitos às pessoas, como o que é estar a menos ou a mais de dois metros de distância, dando exemplos para perceberem. Temos de perguntar se bebeu café com o caso positivo, se usou máscara, se partilharam casa de banho, se foram juntos fumar um cigarro, por exemplo. Às vezes são estas perguntas que fazem a diferença e tudo isso demora o seu tempo”, exemplifica Cláudia Rainha, responsável pelo GRIS – Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da Covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo, uma sala de comando que concentra os chefes de equipa dos rastreadores.
A criar emprego
Há cerca de um mês, com 183 inquéritos pendentes – o que significa que as pessoas não atenderam o telefone na véspera, pediram para ligar mais tarde ou podem estar internadas ou até no estrangeiro – há rastreadores a dar apoio aos agrupamentos de centros de saúde na marcação da vacinação da população incluída na fase 1. Não há tempos mortos e a polivalência faz-se notar numa equipa muito jovem e com formação superior. Cada um dos 13 líderes tem uma ou mais equipas para gerir, compostas por sete a nove pessoas, que estão a trabalhar a partir de casa.
São todos profissionais de saúde, desde psicólogos, nutricionistas, enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos ou com mestrados em Saúde Pública. Para Cláudia Rainha, 46 anos, enfermeira especializada em Saúde Infantil e Pediátrica, recrutar pessoas que estivessem desempregadas foi condição sine qua non, pois este trabalho não dá para “fazer no intervalo das consultas”. “Muitos candidatos desistiram quando perceberam que não dava para fazer ‘só uma horinha’.”
Expressiva e com sotaque alentejano de Beja, Filipa Lopes, 34 anos, psicóloga, estava a trabalhar na receção de uma clínica quando quis mudar de percurso profissional. Desconhecia que apenas ia contactar com casos positivos e que era uma tarefa tão minuciosa. Também João Jesus, 24 anos, fisioterapeuta a exercer numa clínica, quis experimentar um trabalho diferente. Agora, “levanta-se com as galinhas”, como brinca Cláudia, para às sete da manhã fazer a exportação da base de dados dos novos casos positivos diários e assim disponibilizar os recursos para os rastreadores começarem os telefonemas.
Aos 21 anos, Margarida Mascarenhas, a mais nova desta equipa de 130 funcionários a tempo inteiro (inseridos numa bolsa de 1 193 adaptável às necessidades só da região de Lisboa), terminou a licenciatura em Ciências da Saúde em setembro e conseguiu logo o seu primeiro emprego. Mudou-se de Armação de Pêra, no Algarve, para um quarto alugado no bairro de Arroios, em Lisboa, e coordena nove pessoas, mais uma equipa de 20 a 25 militares. “Pensar na pandemia é assustador, mas no meu caso abriu diversas portas.”
O fantasma de janeiro
Com o levantamento das restrições, uma maior circulação de pessoas levará a um aumento dos casos positivos, logo voltará a subir o número de inquéritos epidemiológicos para fazer – um círculo vicioso com tendência a aumentar. Por diversas vezes, e em janeiro aconteceu, multiplicaram-se as histórias de doentes e dos seus contactos mais próximos que não foram identificados pelos rastreadores, ficando assim por quebrar a cadeia de transmissão.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, para uma operação de rastreamento de contactos Covid-19 ser bem-sucedida é preciso detetar e colocar em quarentena 80% dos contactos próximos, no espaço de três dias após a confirmação de um caso. Christophe Fraser, biólogo matemático da Universidade de Oxford, no Reino Unido, aperta ainda mais o cerco: num único dia, 70% dos casos positivos precisam de ser isolados e 70% dos seus contactos precisam de ser rastreados e colocados em isolamento profilático (quarentena).
Só na região de Lisboa e Vale do Tejo, entre 8 e 14 de janeiro, foram notificados 23 264 novos casos positivos (76,22% dos quais na Área Metropolitana de Lisboa) e realizados 15 028 inquéritos, tendo 8 236 ficado atrasados. “Houve incapacidade, por não estarmos a prever aquele aumento tão acelerado de novos casos. Tivemos de readaptar a nova metodologia, reorganizar equipas, centralizá-las, uniformizar processos e torná-los mais céleres”, elenca Ana Dinis, delegada de saúde regional-adjunta da ARSLVT.
Em janeiro, esta ARS atingiu o máximo de 54 992 inquéritos em atraso – o mês registou 42,2% do total de casos acumulados desde o início da pandemia. “Mas, a partir de 21 de janeiro, todos os novos casos diários que entravam na nossa base de dados eram contactados no próprio dia, passando o número de telefonemas a ultrapassar o de entradas”, garante.
Militares no barco
Desde 19 de novembro de 2020 que militares dos três ramos das Forças Armadas integram a operação dos inquéritos epidemiológicos. São 779 militares divididos em 43 equipas (só 20 operam em Lisboa, com 462 militares), sempre apoiadas por um profissional de saúde, que começam por fazer o “contacto prévio”, a abordagem para perceber a morada de isolamento, que pode não coincidir com a morada de residência. Além da notória capacidade de trabalho – os rastreadores militares trabalham 12 horas diárias, sete dias da semana – acrescem outras mais-valias destes profissionais, como a disciplina, capacidade de planeamento e de trabalho em equipa e sensibilidade.
O caos de milhares de inquéritos em atraso “não vai voltar a acontecer”, prevê o major António Valente, responsável pelo centro logístico que tem a seu cargo planear, coordenar e monitorizar todo o apoio que as Forças Armadas dão nesta operação. “Nós entrámos no barco já em situação de crise; agora temos uma resposta rápida e organizada”, afiança.
A monitorizar o fim da vigilância, cabe a Ana Martins, 37 anos, perceber como foi feito o isolamento. Há pessoas a chorarem com medo de perderem o emprego se ficarem de quarentena. Nesses casos, Ana explica os direitos laborais e quais os apoios sociais da autarquia e como os pode solicitar. Outra realidade com a qual já contactou é a dos migrantes positivos que não falam nem português, nem inglês, e é preciso chegar à única pessoa da casa que fala inglês. Apesar de haver uma linha telefónica de apoio linguístico disponível, com intérpretes prontos a fazerem a tradução, entre os 300 internos de Medicina da Universidade Nova existem muitos russos, moldavos e ucranianos que se disponibilizam para traduzir, por exemplo.
Na hora em que a pandemia for controlada, a Cláudia Rainha não faltam ideias de como no futuro dar uso aos dados recolhidos de milhares de pessoas. Podem ser válidos para estudar a incidência da doença num determinado local, qual a implicação do fenómeno das baixas temperaturas num determinado concelho ou o meio socio-económico mais fustigado pela doença. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, já existem estudos com estes dados: são as comunidades afro-americanas e os setores mais pobres quem mais tem sofrido com a Covid-19. Sem surpresa.
282
Total de rastreadores no País a tempo inteiro (35 horas semanais)
130
Total de rastreadores na região de Lisboa e Vale do Tejo a tempo inteiro (35 horas semanais)
€1 205
Salário bruto dos rastreadores a tempo inteiro, mais subsídio de alimentação, com contrato a termo incerto na categoria de técnicos superiores
779
Total de militares dos três ramos das Forças Armadas a realizarem inquéritos, divididos em 43 equipas
54 992
Pico máximo de inquéritos em atraso, em janeiro, na região de Lisboa e Vale do Tejo