A Rádio Comercial fez 42 anos no passado dia 12 de março, mais um aniversário que a estação teve de festejar sem pôr o pé na rua. “Serão alguns momentos “bastante vergonhosos”, gozava, na entrevista à VISÃO que antecipou esse momento (para ler aqui em baixo), o diretor, Pedro Ribeiro, que também podemos ouvir de segunda a sexta, entre as 7 e as 11 da manhã, a partilhar os microfones com Vasco Palmeirim, Vera Fernandes, Elsa Teixeira e Nuno Markl.
O Pedro acabou de fazer 50 anos, quase metade deles a acordar de madrugada por causa das Manhãs da Comercial. Seria difícil sem paixão?
Esse é o cerne da coisa. Ninguém merece estar acordado àquela hora, muito menos para fazer um trabalho que implica tantas vezes um golpe de rins emocional. É um desgaste gigante mas, quando chego ao estúdio e carrego no botão, cria-se uma energia muito particular. Ainda por cima, fazendo o programa com mais pessoas e funcionando tudo bem entre elas, como é o caso, acaba por ser terapêutico para nós e para os ouvintes. E é essa paixão pelo toque de alquimia que a rádio tem que faz com que ainda hoje, com 50 anos, quando toca o despertador a um quarto para as 6, eu pense: “Que alegria!”. Não, não penso. [Ri-se.]
No próximo fim de semana, por causa do aniversário, estão prometidas muitas horas de karaoke na Comercial. Temos sorte porque o Pedro sabe cantar?
Não. [Ri-se.]. É muito difícil fazer novamente anos sem hipótese de ir para a rua. Desta vez, decidimos passar três dias seguidos só a tocar música portuguesa, desde os anos 70 e 80 até agora. Vamos dizer aos ouvintes para se filmarem a fazer karaoke e os locutores passam a música que quiserem. Vai ser uma grande festa, mas há pouco estava a ouvir as promoções dos nossos karaokes e a rir-me, porque aquilo é bastante vergonhoso.
Como gerem toda essa exposição que tem sido crescente?
Quando vamos buscar um locutor ou uma locutora, digo-lhes sempre: “Não quero um locutor.” Quero que os animadores da Rádio Comercial sejam comunicadores, e para comunicar tem de ser com a verdade. Ou seja: não quero ninguém a inventar uma pose ou a inventar vozes, quero que as pessoas sejam elas próprias, só assim se chega aos ouvintes. Se inventarmos uma persona, mais tarde ou mais cedo somos apanhados, porque estamos a falar ao ouvido das pessoas, não dá para disfarçar. Portanto, a exposição… Quando fomos para a rua fazer espetáculos e encher “altices arenas” e esse disparate todo, perdemos de vez a ideia de “Epá, não me quero expor”, porque estamos ali em frente a 15 mil pessoas a cantar mal, e elas adoram-nos na mesma. Está tudo bem.
Está mesmo sempre tudo bem?
Também digo aos animadores que há uma fronteira que não se deve passar. Isto é muito exposto, claro que é, somos nós próprios, mas há uma reserva pessoal que cada um gere como acha que deve gerir. Uns mostram mais, outros menos, e também isso tem de ser verdade. Digo-lhes: “Se dás uma entrevista, tens a opção de mostrar ou não a tua casa, não vás é para uma casa qualquer toda bonita dizer que é a tua. Não mintas.” Sou muito obcecado com isso, porque os ouvintes vão perceber que é mentira.
Se inventarmos uma persona, mais tarde ou mais cedo somos apanhados, porque estamos a falar ao ouvido das pessoas, não dá para disfarçar
E não vão hesitar em crucificar-vos nas redes sociais.
Foi preciso um trabalho grande para estarmos, eu incluído, razoavelmente vacinados contra a truculência das redes sociais, a facilidade com que se diz mal das pessoas, como se critica sem pejo nenhum, como se agride com palavras. Nós temos sorte porque a maior parte das mensagens, no Instagram e no Facebook, é de profundo amor pela estação, mas por vezes temos de dizer à malta mais nova: “Olha, isso só representa a opinião dessa pessoa, que tem uma vida chata ou whatever”. Os mais novos, como já começaram a trabalhar dentro da bolha das redes sociais, dão-lhes demasiada importância. Se passarmos na rua e um tipo num andaime mandar uma boca qualquer, não perdemos dois segundos e seguimos com a nossa vida. Nas redes sociais é a mesma coisa – as pessoas consomem tudo aquilo com uma velocidade tão grande que não vão parar mais do que uns segundos a ler um comentário. Embora esse seja, de facto, um dos desafios do momento.
Há pouco dizia que na rádio se fala ao ouvido das pessoas. Se hoje tivesse de fazer um currículo, o Pedro escreveria: “Uma pessoa que sabe falar com as outras”?
Não sei se sei, mas pelo menos vou continuando. Gosto de conversar com as pessoas, e na rádio temos a vantagem de o fazermos sem filtro. Não dependemos, como na televisão, de um realizador, de um cenário, do que vestimos, da luz… Aqui, basta abrir o microfone. E, se forem quatro pessoas num carro a ouvir rádio, falamos para cada uma delas, e cada uma interpreta da sua maneira, faz o seu filme, é fascinante.
Já não imagino quatro pessoas a ouvir rádio num carro, por causa da pandemia. O futuro é definitivamente o digital?
O consumo mudou, claramente. No primeiro confinamento, sentimos muito isso porque não havia ninguém na rua e os carros são o habitat natural da rádio. Neste último ano, fizemos um esforço gigante para, como costumo dizer à equipa, continuar a tocar no ombro dos ouvintes e dizer-lhes: “Olha, estamos aqui.” Trabalhámos muito o Facebook, fizemos rádios novas na aplicação e no site, melhorámos a fiabilidade da transmissão digital, criámos conteúdos só digitais… Isto porque, mesmo dentro dos carros, o presente já é digital, vejo pelo meu próprio consumo. Tenho um telefone que emparelha com o carro e vou saltitando de rádio digital em rádio digital, na app. Mas não acho que as torres de FM vão ser desligadas de um dia para o outro. Vai levar o seu tempo, embora seja inevitável tornar-se digital. Os meus filhos mais velhos têm 20 e 17 anos, e nenhum deles ouve rádio.
Nem sequer on-demand? Podcasts?
Ouvem podcasts, é a cena deles, e nós estamos a fazer muitos, mas é preciso perceber como se vai buscar dinheiro com os podcasts. E eles estão em plataformas que não existiam no nosso tempo, têm YouTube, têm Spotify… Eu estou sempre a pedir aos miúdos da Cidade [FM]: “Não digam ao vosso público ‘Está aqui a música nova não sei de quem’, porque a probabilidade de já a conhecerem é gigante. Vão rir-se na vossa cara.” Com 16 ou 17 anos, ninguém precisa da rádio para ter acesso às músicas novas, temos de lá ir doutra maneira. A rádio tem de ter personalidades que sejam relevantes, que lhes interessem, mais do que meramente a música.
Em termos de concorrência, já nem estão a concorrer apenas com as outras rádios nacionais. Pode ser com uma da Nova Zelândia.
Não vejo isso como um obstáculo, vejo como uma oportunidade. Acabámos de fazer uma Comercial Brasil, que é uma estação só com música brasileira, maravilhosa, que na minha cabeça é a maneira de irmos bater à porta do Brasil e de não ficarmos só à espera da concorrência que vem de fora.
Ganha-se dinheiro online?
A grande questão é que há uma geração habituada a que tudo seja gratuito na internet. Nós emendámos a meio o tiro, mas a rádio sempre foi gratuita. Portanto, dizermos agora às pessoas que têm de pagar para nos ouvir… ou temos uma mais-valia indiscutível ou não sei. O programa da manhã tem 1 milhão e 200 mil ouvintes, tem mais audiência média do que qualquer telejornal ou qualquer novela em horário de prime time, mas as pessoas pagariam para o ouvir?
E a publicidade? Quem não tem o Spotify Premium, por exemplo, apanha com anúncios.
A minha ideia das rádios digitais passa também por isso – haver um serviço premium de tal maneira aliciante que as pessoas vão querer pagar para o ter. Mas é uma guerra difícil, estamos a lutar no território do Spotify e do Pandora e da Apple Music. Claro que a rádio parte em vantagem: temos as personalidades. Eles têm um catálogo de música gigante e um servidor gigantesco, mas não têm o Vasco Palmeirim a fazer músicas, O Homem que Mordeu o Cão, o Pedro Ribeiro, a Rita Rugeroni, o Diogo Beja e a Joana Azevedo. No dia em que eles tiverem as duas coisas, será um problema, mas, até lá, estamos a ir para a luta.
O inglês James Cridland, considerado um futurologista da rádio, antevê que ela só terá futuro se for verdadeira, multiplataforma e relevante. Saber que conteúdos interessa à vossa audiência é mais fácil online, não é?
Temos finalmente monitorização do consumo ao segundo, coisa que não existe no método tradicional das audiências. Ou seja, não ficamos dependentes de as pessoas se lembrarem de qual foi a rádio que ouviram na véspera, durante quanto tempo e a que horas. E agora temos também a vantagem de conhecermos o nosso público, se é homem, se é mulher, onde mora, que gostos tem. A questão é como se pega nisso para continuar a criar um conteúdo que seja o máximo denominador comum. Quando alguém anda a ver hotéis no Booking, ele tira-lhe o retrato e diz “Gosta de Paris e de Barcelona”, e a pessoa começa a levar com publicidade dessas duas cidades à bruta. Mas na rádio queremos um milhão e tal, temos de ir à procura daquilo que unifica as pessoas, e esse é um desafio tremendo.
O Pedro tinha 8 anos quando apareceu a Comercial, uma rádio que atraía os mais novos por causa da música. Tornou-se rapidamente a sua rádio?
Na verdade não, porque quem me pôs o bichinho foi a minha mãe e a minha avó. Lá em casa, tínhamos um rádio com um gira-discos em baixo e um mostrador com nomes de cidades, que me fascinava. Eu ligava o rádio e ficava ali na onda média à procura, à procura… E o primeiro programa emblemático na minha vida foi o lendário Despertar, do António Sala e da Olga Cardoso, na Rádio Renascença. Ainda hoje sei jingles do programa e umas buchas que o técnico, o Armando Rodrigues, punha lá pelo meio. Mas, se fui muito influenciado pela Renascença, também era impossível crescer nos anos 80 e ficar imune a coisas que ia de propósito ouvir à Rádio Comercial, como o Rock em Stock. E a Febre de Sábado de Manhã? É absolutamente marcante para mim terem enchido o estádio de Alvalade.
Com 16 ou 17 anos, ninguém precisa da rádio para ter acesso às músicas novas, temos de lá ir doutra maneira
O programa da manhã continua no top das preferências?
Então agora, na pandemia, não imaginam o feedback que recebemos de equipas médicas, condutores de ambulâncias, pessoal da recolha do lixo, camionistas que andavam a distribuir para os supermercados, farmacêuticos, agentes da autoridade, tudo a dizer-nos “Epá, vocês continuem a fazer o que fazem. Isso é muito importante. Dá-nos alguma sanidade, de manhã permite que a malta se ria um bocadinho.” De repente, nós, na rádio, também nos sentimos um bocadinho na linha da frente. O nosso trabalho, as patacoadas que dizemos são importantes para as pessoas, numa altura em que está toda a gente com uma neura tão grande.
O segredo está em fazer rir?
A intimidade. No outro dia, uma criança estava a ouvir o programa da manhã a caminho do IPO e, por causa da pandemia, os pais tiveram de ficar no parque de estacionamento. Nessa altura, contaram-nos: “Estávamos todos na galhofa, mas agora é muito duro porque não lhe podemos dar a mão, e caramba. Mas sabemos duas coisas: lá dentro, ele está a ouvir a rádio enquanto faz os tratamentos, e nós aqui no carro estamos a ouvir a mesma coisa; e, quando ele sair e formos para casa, vamos comentar as coisas que foram ditas na rádio e rir-nos das parvoíces que ouvimos.” De repente, eu e os outros pensámos: “Não há nenhum meio que consiga isto.” A televisão não tem esta intimidade na vida dos ouvintes, esta coisa tão preciosa pela qual, sim, vale a pena acordar às seis da manhã.