Há anos que médicos e nutricionistas se arrepiam ao ouvir o Presidente da República dizer publicamente que bebe Fortimel em vez de almoçar. Mas a recente brincadeira no programa Isto É Gozar Com Quem Trabalha “veio mostrar que Marcelo Rebelo de Sousa ultrapassou tudo”, diz uma nutricionista, que pediu para não ser identificada. “É como se ele não soubesse que os suplementos nutricionais orais são para quem não consegue atingir as calorias necessárias através da alimentação, como doentes oncológicos e idosos, e sempre sob supervisão médica”, sublinha.
“Tratando-se do sr. Presidente, é um assunto delicado”, admite Aníbal Marinho, médico intensivista e presidente da Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica. “Sem querer embaraçar ninguém, as pessoas têm de perceber, fundamentalmente, que [o Fortimel] é um suplemento nutricional para ser utilizado para fins medicinais. Não devia ser utilizado por não-doentes como substituição de uma refeição. É um complemento para doentes que não se conseguem alimentar de uma forma adequada. Nunca será um substituto de uma refeição, não é polivitamínico e não podemos banalizar o seu uso.”
Com a banalização deste tipo de complementos, corre-se o risco de nunca mais avançar a sua comparticipação em Portugal, nota Aníbal Marinho. “E esse é o nosso objetivo”, frisa. “Na maior parte dos países europeus, eles já estão a ser financiados pelo Estado para fins medicinais.”
Já em janeiro, durante a campanha para as Presidenciais, a VISÃO puxara o suplemento nutricional para o título de uma das reportagens – Marcelo, o candidato que faz a festa sozinho, troca de carro só se não for presidente e carrega baterias com Fortimel. “Querem ver o que eu almoço?”, perguntara o candidato aos jornalistas, indo buscar ao carro aquilo que parecia ser um iogurte líquido de morango. “É um produto que se compra nas farmácias. Usei isto quando fui operado à hérnia, alimentava-me com isto.”
Tinha sido um médico a recomendar-lhe a toma de Fortimel, há cerca de três anos. “Agora eu uso porque o que é que eu posso fazer? Não tenho tempo para almoçar”, justificava o Presidente. A campanha continuaria a ritmo acelerado e a repórter da VISÃO ironizava: “Não fosse isto Marcelo num dos seus clássicos momentos de descontração e estes frames seriam facilmente confundidos com um daqueles intervalos dos programas da manhã, do tipo televendas.”
Exagero de jornalista? No último domingo, bastou Ricardo Araújo Pereira e a sua equipa darem “uma pequena ajuda gráfica, muito subtil” à “recomendação do Presidente” para uns minutos da entrevista de Marcelo na SIC, após a tomada de posse, parecerem um longo anúncio.
A verdade é que, mesmo sem a imagem das embalagens de Fortimel e o contacto da marca acrescentados ao vídeo, bastava ouvir e ver Marcelo sentado num banco do jardim do Palácio de Belém, a explicar: “No início do mandato, comia aqui uma tosta de queijo e um sumo de ananás. E, durante anos, foi isso. E depois jantava bem. Como me deito muito tarde, podia jantar bem. Depois, evoluí. Por causa das circunstâncias, tenho pouco tempo para comer, um quarto de hora, vinte minutos, dez minutos. Então, aproveito e tomo Fortimel e o Fortimel substitui uma refeição.”
Vemos como Marcelo levanta o frasco ao dizer “e tomo Fortimel”. E quando o jornalista lhe pergunta se não sente fraqueza, continua a sua apologia: “Não, não é um iogurte. Se comesse um iogurte, teria fome ao fim de duas, três horas. É muito simples. É um suplemento vitamínico e proteínico que dá para substituir uma refeição. Não se pode fazer por sistema, mas por exemplo, taxistas de Nova Iorque, alguns médicos que estão de banco ou doentes que precisam de um reforço alimentar, quem tem uma vida mais agitada, tomam Fortimel, e Fortimel dá para aguentar perfeitamente várias horas.”
De volta ao estúdio, Ricardo Araújo Pereira surge no ecrã ao lado de uma montagem do Presidente de tronco nu, com uma embalagem de Fortimel na mão. “Magistratura de influencer”, reza a legenda. “Acaba por ser a primeira medida do segundo mandato, não é?, no âmbito dos Negócios Estrangeiros, que foi nomear um diplomata, ele próprio, embaixador do Fortimel em Portugal”, remata o humorista.
O momento televisivo tem graça e ninguém põe a hipótese de se tratar de product placement, mas o assunto é tão delicado que os especialistas pedem para só comentar em off.
“Aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa tem feito constantemente é perigoso, porque confunde a população”, sublinha a mesma nutricionista. “Como estes suplementos não são sujeitos a receita médica, as pessoas podem ir ao balcão de uma farmácia e pedir ‘Quero o suplemento do Presidente’, quando muitas já têm um excesso nutricional.”
Esta terapêutica existe para suprir uma necessidade comprovada medicamente e não para substituir almoços. E estima-se que existam 115 mil doentes que não têm acesso a ela por falta de comparticipação. Na Europa, só Portugal e Itália não têm comparticipação a 100 por cento. Em Portugal, ela apenas existe para as doenças hereditárias do metabolismo e no caso da alergia à proteína da vaca.
“Ficamos chocados porque Marcelo sabe tudo isto; responde-nos sempre que não se quer associar a esta causa”, lamenta a mesma especialista. “Não me incomodava se fosse product placement, desde que passasse uma mensagem correta, mas está a fazer tudo ao contrário e a inventar. Nem sequer há Fortimel em Nova Iorque.”