O que é preciso mudar urgentemente no Ministério Público?
O Ministério Público atravessa uma enorme crise de falta de magistrados, decorrente de anos de não abertura de vagas no CEJ ou de abertura em número manifestamente inferior às funções e necessidades, com muitos magistrados sobrecarregados de trabalho, a trabalhar no limite. É essencial, a breve prazo, suprir a carência de quadros. É urgente dotar o MP de meios e de um corpo de funcionários qualificado e adequado ao exercício das funções específicas desta magistratura.
A autonomia de cada magistrado é um garante contra pretensas tentativas de instrumentalização do Ministério Público
Afinal, quem é que tem a última palavra num inquérito criminal? O procurador titular do inquérito ou o superior hierárquico?
Até ser proferido despacho final de acusação ou arquivamento deverá competir ao magistrado titular ou equipa de magistrados total autonomia para conduzirem a investigação, sem qualquer interferência externa. Após essa fase a atividade do Ministério Público está sujeita a um controlo judicial no caso de acusação (instrução e/ou julgamento) e controlo do superior hierárquico ou judicial em caso de arquivamento. A autonomia interna de cada magistrado ou equipa de magistrados é um garante da autonomia externa contra pretensas tentativas de instrumentalização do Ministério Público.
O que tem estado a falhar nos atuais concursos do Ministério Público? Estão a ser feitos concursos à medida?
O importante é apostar na total transparência dos movimentos e das colocações em qualquer função ou cargo. Que se cumpra o Estatuto do MP e os Regulamentos. Que sejam conhecidos previamente os critérios e respetiva valoração em momento prévio aos movimentos ou concursos e que as regras não sejam alteradas em pleno processo de movimento. É imperioso que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) zele pela total transparência e para que não existam suspeições, pondo em causa tudo e todos.
É essencial que a Procuradoria Europeia seja dotada de independência e autonomia em relação aos poderes executivos dos Estados aderentes, sob pena do seu total descrédito.
Ficou satisfeito com as explicações da ministra da Justiça sobre as polémicas do concurso para Procurador Europeu?
A Procuradoria Europeia vai ter a seu cargo a função de combater de forma mais eficaz a criminalidade contra os interesses financeiros da UE, transnacional, como a fraude fiscal que todos os anos acarreta um custo de perto de dois mil euros por cada cidadão europeu. Para o conseguir é essencial que a Procuradoria Europeia seja dotada de independência e autonomia em relação aos poderes executivos dos Estados aderentes, sob pena do seu total descrédito. Qualquer interferência do poder executivo de um Estado na nomeação dos seus agentes coloca em risco a independência da Procuradoria Europeia e a sua legitimidade.
Como é que avalia a prestação da atual Procuradora-Geral da República, Lucília Gago?
Entendo que a atual Procuradora-Geral da República é distante dos magistrados, não os ouve e não os defende. Em vez de exigir mais magistrados e mais meios para o Ministério Público, condições essenciais para uma Justiça com mais qualidade e mais eficaz, insistiu numa diretiva sobre os poderes hierárquicos que não foi objeto de discussão no seio do Ministério Público, que nenhum dos anteriores Procuradores-Gerais da República quis e que pode comprometer e vulnerabilizar o Ministério Público perante as tentativas externas de o manterem dentro de uma esfera de controlo, quando existem dezenas de investigações que envolvem pessoas relevantes do ponto de vista político, financeiro e económico.
A não recondução de Joana Marques Vidal foi um erro?
Sempre defendi que o mandato do PGR deve ser único, até para não exercer o mesmo em função de uma eventual renovação que depende do Governo.
E que balanço faz do seu mandato?
É positivo. Foi firme, apoiou os magistrados e deu a cara pela defesa da autonomia do Ministério Público e para que as investigações em curso fossem conduzidas na estrita legalidade e objetividade.
Ainda há algo a fazer no combate à corrupção?
Diria que ainda está quase tudo por fazer. O problema tem que ser encarado com seriedade. Tem de existir vontade de o resolver e não apenas uma aparência de vontade. Tem que se apostar, em primeiro lugar, na prevenção, nos instrumentos de autorregulação, na transparência e na fiscalização, mas também nos meios e recursos de investigação disponíveis. É preciso investir em peritos, meios informáticos, reforço de elementos da Polícia Judiciária, mais magistrados e funcionários ou técnicos de apoio ao MP qualificados e com preparação adequada a trabalhar nesses processos.
Concorda com a colaboração/delação premiada?
Pensamos que, por ora, a solução deverá passar pelo aprofundamento das soluções já desenhadas no nosso sistema, no domínio dos crimes de corrupção e tráfico de estupefacientes, até porque nos parece mais coerente com a nossa cultura jurídico-penal um conceito de valoração positiva, em sede de atenuação ou mesmo dispensa de pena, daquele que voluntariamente decide contribuir de forma relevante para a descoberta da verdade e na medida da sua contribuição, enquanto manifestação de arrependimento e vontade de reparar o crime ou, dentro de certos limites, a possibilidade de suspensão provisória do processo em fase de inquérito, do que o conceito de “delator” interesseiro. Numa criminalidade em que, muitas vezes, todos os envolvidos têm algum interesse no crime, só com apelo a mecanismos desta natureza se poderá ter sucesso na investigação e no combate a este tipo de criminalidade.
Há alguma solução para encurtar o tempo da investigação em casos de criminalidade económico-financeira altamente complexa?
Passa pelo reforço do número de magistrados e dos meios ao dispor do Ministério Público. Do recurso a equipas de investigação. De um reequacionar da fase da instrução de forma a que não se transforme num pré-julgamento. Da consagração de uma verdadeira autonomia financeira do Ministério Público. De uma limitação dos expedientes processuais manifestamente dilatórios.
Processos a envolver paraísos bancários em pequenas ilhotas no pacífico; com arguidos defendidos por grandes escritórios de advogados; nunca terão o tempo de duração que todos desejaríamos.
Acredita que os grandes processos, como o Caso BES ou a Operação Marquês, vão chegar ao fim (transitar em julgado) nos próximos dez anos?
A pena só tem verdadeiramente efeito preventivo se for aplicada em tempo útil. Deve existir o menor tempo possível entre o facto criminoso e a condenação sob pena de tal finalidade ficar frustrada e igualmente a confiança dos cidadãos na justiça. Temos de criar as condições para que esse tempo entre o facto e a condenação seja encurtado. Estamos conscientes contudo de que processos de elevada complexidade, no domínio da criminalidade económico-financeira, envolvendo a colaboração de países terceiros à própria União Europeia, designadamente paraísos bancários em pequenas ilhotas no pacífico; com arguidos defendidos por grandes escritórios de advogados; com uma legislação processual penal cada vez mais cerceadora da atividade do Ministério Público e do próprio julgador; nunca terão o tempo de duração que todos desejaríamos.