Previu que teríamos, após o Natal, “um trimestre de purgatório”. Os números confirmaram a sua previsão?
De facto, foi a fase mais difícil. Na região Norte, desde final de novembro, o cenário já era muito complicado e, depois, a nível nacional, com incidência na ARS Lisboa/Vale do Tejo e ARS Alentejo, tivemos um janeiro muito difícil em que atingimos valores nunca atingidos, aquilo a que chamamos a terceira onda. E não só os valores de pessoas hospitalizadas ou em cuidados intensivos, mas também a mortalidade pela doença. Levaram às formas mais complexas do sistema funcionar, inclusive com o transporte frequente de doentes interegionais que, sendo metodologias que mostram que o sistema funciona e é supletivo e solidário, só são usadas quando são necessárias. Até os primeiros dias de fevereiro foi complicado.
Os números atuais ainda não permitem o alívio das medidas de confinamento?
Estamos a ver que o comportamento das pessoas resulta. São os cidadãos que, realmente, salvam vidas. O confinamento resultou e estamos agora a ter uma queda abrupta do número de novos casos, do número de hospitalizados e, numa fase mais tardia, dos internamentos em cuidados intensivos. Mas ainda é claramente cedo para o alívio das medidas de confinamento. Desde o início prevíamos que o confinamento não deveria ser menor do que dois meses para surtir efeito, baseados na experiência de outros países, relativamente à primeira vaga. Mas não é cedo para começarmos a discutir os critérios para desconfinar e qual a metodologia.
Quais devem ser os critérios?
Há três eixos para desconfinar. Temos de reduzir a transmissão viral na comunidade, e esse é o critério que está a ser atingido nesta altura. Temos de ter menos de 1000 a 2000 novos casos por dia, Rt [índice de transmissão] abaixo de 0,8 e uma positividade de testes abaixo de 5%. O primeiro estamos por lá, o Rt anda à volta de 0,7 e será difícil descer mais, enquanto a taxa de positividade está a descer, mas ainda não chegou lá.
Há um segundo eixo que é a da capacidade de resposta hospitalar. Sabemos que se houver uma quarta onda, os hospitais não vão estar capazes de responder. O indicador mais fiel é o número de internados em medicina intensiva. Alguns intensivistas apontam para 250 internados por Covid-19. E não podemos esquecer a necessidade de tratar os não Covid. Ainda estamos longe desse número, com 600 e tal casos. Só lá para a terceira ou quarta semana de março vamos chegar lá.
O terceiro eixo é pouco falado, que é a robustez da resposta de saúde pública. Só deveremos desconfinar quando tivermos um número de testes significativo, 40 a 50 vezes o número de casos positivos. A política de testagem alargada é muito importante, porque permite-nos monitorizar o que se está a passar e é ela própria preventiva, pois ao identificarmos o caso, isolamos e prevenimos as cadeias epidemiológicas. É aí que temos de atuar. Temos também de ser capazes de realizar inquéritos epidemiológicos nas primeiras 48 horas.
Ainda está longe de existir esse rastreio…
Exatamente, temos vindo a recuperar, mas não estamos lá. Há outro indicador desta robustez, precisamos de ter um sistema de identificação de variantes. O maior risco que pode acontecer agora, se avançarmos com o programa vacinal adequadamente, é o vírus que tem mostrado uma capacidade mutacional extraordinária, conseguir uma mutação que lhe dê escape aos anticorpos da vacina. Termos um sistema que detete estas variantes é essencial para um desconfinamento em segurança. Além disso, é importante termos o plano vacinal avançado, em que 80% das pessoas frágeis está protegida. Quando avançarmos para o desconfinamento, este deve ser gradual. O que deve ser feito é a retirada progressiva e monitorizada de níveis de confinamento. O que mais queremos é que as crianças mais pequeninas voltem à escola e essa parece uma excelente primeira medida e, se nada acontecer, passados duas semanas, avançar para um segundo plano.
Qual é o objetivo para os próximos tempos?
Evitar a quarta onda, porque não é possível fazer outro confinamento de raiz com o mesmo grau de eficácia. Há um cansaço da população e é impossível haver uma resposta eficaz do sistema hospitalar por burnout dos profissionais de saúde. Também não nos podemos esquecer de repor a atividade não-covid, sacrificada pela resposta à pandemia. Isto implica poder diminuir à resposta da medicina intensiva. Partimos para isto com 629 camas de medicina intensiva e, agora, temos 1400 camas. Uma parte são músculo, capacitação sustentada, que para lá da pandemia, pode ficar e não prejudica outras atividades, porque usa recursos da medicina intensiva e não de outras áreas clínicas, mas outra parte está acrescida para estas áreas.
Quantas destas camas são sustentáveis sem prejuízo de outras atividades?
Calculamos que do ponto de vista físico, são 888 camas que estão num local e numa infraestrutura que não prejudica a recuperação de outras atividades. Mas também temos consciência que, para o tratamento de doentes não covid, precisamos de 400 a 450 destas camas de intensivos. E também que devemos funcionar com taxas de ocupação à volta de 85%. É por estas contas que chegamos ao tal número das 250 camas covid para as unidades de cuidados intensivos (UCI) poderem funcionar. O projeto seguinte é pensar em recursos humanos, para tomar conta dessas 888 camas, sem ir buscar recursos a outras áreas.
Já partimos para esta pandemia com um quadro de pessoal diminuto a nível de médicos e enfermeiros…
O grande défice era esse, éramos dos últimos países da Europa em termos de recursos humanos em medicina intensiva. Foi feito um esforço enorme, que foi maior em equipamentos, porque é mais fácil. Foi feito um concurso para colocação de cerca de 40 médicos especialistas para trabalharem em medicina intensiva, o número de enfermeiros aumentou um bocadinho, mas continuamos com um défice. Deve haver outro concurso médico à escala nacional para colocarmos mais alguns médicos em serviços de medicina intensiva e uma dotação de enfermeiros adicional.
Temos esses recursos?
De médicos, não tenho dúvidas de que há procura e mercado. No final deste ano teremos pela primeira vez pessoas que acabaram a especialidade de medicina intensiva e o mercado vai receber pessoas qualificadas. Por via clássica, há também aqueles que acabam outra especialidade e também podem fazer os anos adicionais de medicina intensiva. Em relação aos enfermeiros, a situação é completamente diferente, é difícil encontrar quem se queira posicionar em medicina intensiva, por ser necessário uma preparação e pela carga de trabalho que constitui.
Há um ano enfrentávamos um vírus desconhecido. Atualmente, ainda há muitas incógnitas?
A comunidade científica e clínica fez coisas extraordinárias. A maior foi o número de vacinas conseguido neste ano de trabalho, que é algo de notável. O VIH demorou dois anos a identificar o genoma do vírus, e aqui demoramos 20 dias a fazê-lo. As vacinas demoram imenso tempo e, neste caso, conseguimos em menos de um ano uma série de vacinas com uma efetividade e uma segurança muito grande. Isso é fabuloso e muda o curso da história da doença de forma muito significativa.
Em termos de tratamento da doença, não podemos dizer que tenha mudado muita coisa. Continuamos a não ter uma arma etiotrópica, um antiviral que mate eficazmente o vírus numa fase precoce e evite que passe para doença grave. É verdade que há fármacos que reduzem a inflamação provocada pelo vírus, a dexametasona e o tocilizumabe, medicamentos que se dirigem à resposta exagerada do hospedeiro contra o vírus e que a tentam mitigar.
Sabemos mais coisas preocupantes, que é a extraordinária capacidade mutacional do vírus. Não é uma surpresa, é da natureza da biologia vírica. O número de variantes é muito significativo, que aumentam a transmissibilidade e levam ao aumento do número de internamento e de mortes.
A maior agressividade das novas variantes não se comprovou?
O risco das novas variantes refere-se às que se constituírem como variantes de escape, ou seja, que tiverem mutações para as quais os anticorpos produzidos, existentes nas vacinas que estão no mercado, não têm atividade e escapam à imunização. É aqui que está a decorrer muita da investigação, avaliar as novas variantes. Daí lhe ter dito que um dos critérios de desconfinamento é o País saber montar um sistema de vigilância epidemiológico ativo destas variantes. O que é mais provável acontecer, é o vírus ficar por cá, endémico, pela sua capacidade de adaptabilidade e é provável que a vacina vá ter de se adaptar todos os anos à cobertura destas novas variantes. Para sabermos adaptar, temos de vigiar e saber qual é a mutabilidade. O INSA [Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge] tem um papel fundamental nessa regulação.
Olhando para os perfis dos doentes mais graves, desde o início da pandemia, a idade desceu?
A idade média é mais ou menos a mesma, à volta dos 63 anos, no que diz respeito aos doentes críticos. Mas há uma diferença. Na segunda e terceira onda, tivemos um grupo de pessoas mais jovens, mais substantivo, sem patologia de base, ou seja, uma comorbilidade que lhes altere a longevidade, e que teve formas graves de doença num número superior à primeira onda. Vimos, sobretudo, as pessoas a entrarem no hospital com mais dias de doença, quando já tinham sintomas há uma semana.
O recurso era mais tardio porque as pessoas resistiam a vir ao hospital?
É difícil dizer… porque o diagnóstico é mais tardio, porque o acesso ao teste é mais tardio e porque resistem a vir ao hospital ao verem algumas imagens de dificuldade de acessibilidade e constrangimentos. Há muitos fatores. Muitas vezes, o tempo entre a chegada ao hospital e a deterioração para precisar de formas de suporte orgânico, era muito curto.
Daí também ter aumentado a letalidade?
Também é um pouco especulativo dizê-lo, mas há uma verdade geral na medicina, quanto mais precoce for o diagnóstico, maior o aumento das probabilidades de sucesso. Mudou também um pouco o padrão da primeira onda, daquela sucessão em que o doente era internado, hospitalizado e depois deteriorava dentro do hospital, onde estava vigiado. O que aconteceu nesta terceira onda é que admitimos em medicina intensiva um conjunto de doentes de grande gravidade, em que fizemos a terapêutica com a dexametasona que, de per si, tínhamos a evidência de reduzir a morbilidade através da redução da inflamação e houve pessoas que não responderam a isso. Houve um grupo mais grave e que exige mais de nós.
A saturação dos serviços e a maior dificuldade de resposta também explica o aumento da letalidade?
Sabemos desde a experiência italiana e de outros países da primeira onda que há dois fatores de sucesso: a acessibilidade à medicina intensiva, o não haver demora e dificuldade, e por outro lado, não existir décalage significativa entre recursos humanos necessários e existentes. Não creio que no HSJ e na região Norte tenha havido alguém que precisasse de medicina intensiva e não tivesse sido admitido. Até fomos buscar doentes a outras regiões, fomos muito ativos nessa tarefa, tanto para enfermaria como para cuidados intensivos. Agora, o próprio cidadão, ao ver imagens de perceção de dificuldade de resposta pode vir mais tarde ao serviço de urgência. A perceção do impacto do momento é uma variável muito importante. Ser médico é saber passar tranquilidade e isso não é incompatível com a verdade.
Quais foram os erros mais facilmente evitáveis que identificou durante este ano?
Espero que todos tenham tomado a consciência que, nas decisões de confinamento, devemos basear-nos nas previsões e não em evidências, devemos estar sempre um passo à frente da pandemia, para tomar medidas de proteção da saúde pública e da resposta do sistema de saúde. Isto não é jogar no Totobola, não queremos acertar, queremos evitar que a previsão se concretize. Parece-me evidente que a decisão tomada no Natal e, sobretudo, a visão lenta e gradualista do confinamento num momento em que já tínhamos o aumento da circulação, a variante inglesa em circulação, terá sido o pior momento em termos de decisão.
As sociedades que melhor integraram o conhecimento técnico e científico com a decisão política são aquelas que funcionaram melhor em pandemia. Integrar não quer dizer fundir, ou confundir, é perceber que há dois mundos e que têm a sua expressão. Pode haver decisões políticas que não sejam exatamente iguais ao consenso dos técnicos e dos cientistas. É importante percebermos qual é o modelo de decisão que queremos tomar.
O plano vacinal em curso permite-nos encarar o futuro com esperança, sobretudo no que diz respeito à diminuição dos casos mais graves?
O plano vacinal é um capítulo deste livro que estamos a escrever que não altera os capítulos seguintes, temos todos de continuar a ter os mesmos cuidados, mas altera o fim da história. Temos de continuar com o distanciamento físico, com a etiqueta respiratória, com a higiene das mãos e superfícies, com o uso da máscara… mas o último capítulo é alterado. Queremos que altere com o fim da pandemia ou o desaparecimento do vírus, que é improvável, mas que pelo menos coabite connosco, não cause doença grave e seja neutralizável por vacinas adaptadas anualmente. O que queremos rapidamente neste plano vacinal é que proteja os mais frágeis e aqueles que são relevantes à resposta de saúde. Se fizéssemos isto até final de abril era muito importante para um desconfinamento em segurança. O que queremos é mitigar as formas graves de doença. A imunidade de grupo só vai existir com 70% da população vacinada e isso só vai acontecer no outono/ inverno.
Um ano após a pandemia, está convencido que temos um SNS capaz de responder a este enorme desafio?
Tenho a consciência vivida que o SNS é um bem extraordinário que temos de preservar. Aquilo que o faz são as pessoas, que são notáveis. O Albert Camus tem aquela frase de que as pandemias salientam o que de bom tem a humanidade e isso, mais uma vez, julgo que se verificou. Atingimos a humanidade de grupo antes de atingirmos a imunidade. O próprio caráter supletivo, solidário, de interajuda regional que foi encontrado nesta fase do purgatório, em que foi necessário fazer o resgate de doentes de um hospital para o outro, remete para essa humanidade de grupo. A perceção do valor extraordinário do SNS e das pessoas que o constituem, resiste até a alguns erros de decisão, sublima os erros e consegue aproveitá-los para evitar a sua repetição.