No princípio, era a hesitação. Enorme. Uma coisa era (e é) divulgar no remanso de uma página do Facebook tiras de banda desenhada, com um casal de seniores, a que chamou Os Grisalhos, a serem protagonistas da observação humorística do autor dos novos comportamentos trazidos pela pandemia, para os desconstruir e subverter, através da ironia, do exagero e do absurdo. Outra coisa, de dimensão arriscada e para a qual foi desafiado, era publicar um livro com tiras selecionadas do casal grisalho, como aquela em que a mulher, quando pela primeira vez põe a máscara, pergunta: “Que tal estou?” E ele, com um gesto de dedos condizente: “Linda de morrer.” E ela, de cenho franzido: “Não te ocorre um modo menos sinistro de opinar?” E ele, de polegar ao alto: “Fica-te a matar.”
José Pestana (que assina Zépestana, enquanto autor), o cartoonista de quem aqui se fala, agora regressado à estampa, aos 72 anos, após um pousio de cerca de meio século, preenchido, na maior parte, com “a vida mais ou menos corriqueira e trivial de funcionário público” (lá iremos), receava que do tal livro resultasse um tremendo mal entendido – o de que estava a “brincar” com a tragédia que atravessamos. Logo ele que, como se define à VISÃO, é “daqueles que entende que não pode valer tudo para arrancar uma gargalhada ou para conquistar um sorriso”, e que tem “sempre” a “bússola apontada à decência e ao que considero o bom gosto”. Prefere, por sinal, “semear sorrisos do que colher gargalhadas”, embora não as enjeite, como é evidente.
Mas o “livrinho”, como José Pestana lhe chama, acabou mesmo por ser recentemente publicado, com o título Gente (con)fina(da) é outra coisa (ed. Ex Libris, 40 págs., €9), a bem da terapia humorística contra a depressão e o desespero. O cartoonista resolveu o seu imbróglio com um prefácio, intitulado Aos meus bisnetos, se os houver, em jeito de ‘Conta-me como foi’…, em que escreve que “galhofar com o sofrimento e a tragédia” provocados pela pandemia “seria, mais do que uma desfaçatez e uma afronta, uma verdadeira obscenidade”. Também conta que um apelo do escritor Gonçalo M. Tavares, que reproduz, o ajudou a dissipar dúvidas: “… É preciso infiltrar nas fissuras a alegria. Como se a alegria fosse um material médico. Quase um material de salvação.”
Sobre o distanciamento social, José Pestana faz uma revelação: “À cautela, para não dar maus exemplos nem ideias parvas aos mais foliões, foram retirados dos museus os quadros da Última Ceia e as apinhadas cenas de casamentos de Bruegel”
Nas páginas seguintes, com organização por capítulos, o humor liberta-se e está lá tudo – a corrida ao papel higiénico, as máscaras, o distanciamento social, os cuidados e sintomas, as cenas caricatas do confinamento. As tiras tinham já sido feitas e publicadas na página do Facebook de Os Grisalhos entre março e setembro de 2020, e José Pestana, que “não queria que o livro fosse muito extenso”, limitou-se a separar as “mais interessantes” das “mais desenxabidas”.
Depois, teve “algum trabalho” na escrita dos textos que introduzem cada um dos capítulos, e conseguiu que fossem tão divertidos quanto as tiras. “No receio de iminente penúria ou de súbito racionamento”, José Pestana escreve que “nas redes sociais multiplicaram-se apelos desta natureza: ‘Senhora com gel hidroalcoólico procura cavalheiro com rolo de papel higiénico para quarentena séria’.” Para concluir: “Pode faltar o papel para os boletins de voto. Pode faltar o papel para imprimir o Diário da República. Mas nunca para a higiene íntima. Os portugueses, paladinos do asseio, mostraram-se indisponíveis para regressar aos hábitos trogloditas da folha de couve e da espiga de milho.”
Sobre o confinamento, lembra que, “bastas vezes, os pais teletrabalhadores, um olho na panela e outro na folha de excel, passaram a ser, em simultâneo, atazanados pelo patrão e azucrinados pelos filhos”. E, acerca do distanciamento social, faz uma revelação: “À cautela, para não dar maus exemplos nem ideias parvas aos mais foliões, foram retirados dos museus os quadros da Última Ceia e as apinhadas cenas de casamentos de Bruegel.”
Por força das circunstâncias, o cartoonista tem como única observadora crítica das suas tiras a mulher, Vera, farmacêutica reformada. Estão casados há 50 anos, têm dois filhos e uma filha, a que se somam quatro netos, com idades entre os oito e os 15 anos. Será que já aconteceu ela atirar-lhe um “essa está fracota” ou perto disso? – perguntamos. “Quiçá para não me desmoralizar, e porque é a gentileza personificada, sorri sempre que lhe submeto uma nova tira”, responde o ribatejano, nascido em Santarém. “Cabe-me descodificar o significado da expressão: se o sorriso é largo, de orelha a orelha, equivale a imprimatur e o cartoon é dado à estampa. Se, ao invés, o sorriso é frouxo e retraído como o da Mona Lisa, o boneco tem como fatal destino o caixote do lixo.”
É uma evidência que José Pestana domina a técnica do cartoon. E isso é explicado por um longínquo passado. Muito novo, não tinha ainda 20 anos, viu o seu talento de cartoonista reconhecido por jornais que o tempo levou, mas que são marcantes na história da Imprensa portuguesa. Ilustrações suas apareceram com regularidade no semanário Os Ridículos, jornal de humor à época com tradições de décadas, em A Mosca, suplemento satírico do Diário de Lisboa, no suplemento humorístico do República, em A Capital e no Comércio do Funchal.
Como era da praxe, debateu-se com os “critérios absolutamente incompreensíveis” da censura ditatorial do Estado Novo. “Lembro-me de cartoons que me pareciam completamente inofensivos e que eram cortados, e de outros que, milagrosamente, passavam entre os pingos da chuva e entre os traços do lápis azul, e acabavam publicados”, recorda. Um exemplo destes últimos é um cartoon, publicado a 7 de novembro de 1971 no semanário Os Ridículos, que aqui se reproduz. Um milagre, de facto.
Mas José Pestana casar-se-ia cedo. E cedo teve de cortar com as colaborações na Imprensa, para se empregar e, como trabalhador-estudante, tirar Direito na Universidade de Lisboa. O seu primeiro emprego foi curioso – “ajudante de meteorologista”. Perguntámos o que ficou dele. E a resposta foi esta: “Marcou-me a tal ponto que ainda hoje o corpo, sobretudo os ossos e as articulações, alerta-me sempre que se aproxima o mau tempo.”
O SARS-CoV-2 “ofereceu” a José Pestana um sintoma extra, que o cartoonista desconhecia: “Alterou-se-me a voz por completo. Fiquei com um fiozinho, parecia um ancião, praticamente não conseguia fazer-me ouvir”
Depois, durante cerca de 30 anos, José Pestana seria funcionário público, chegando a técnico superior em áreas ligadas à documentação e às Relações Internacionais, no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e na Polícia Judiciária. Reformado há mais de uma década, demorou uma meia dezena de anos a decidir-se a regressar à prancheta e aos desenhos. Não sabe explicar qual foi o clique, apenas dá um palpite: “Talvez tenha dedicado mais atenção nessa altura às redes sociais, um fenómeno para mim relativamente novo, e se calhar vi que podia ir fazendo uma espécie de portfólio de cartoons e torná-los acessíveis a amigos e a conhecidos.”
Em 2014, criou então a página de Facebook de Os Grisalhos, com o subtítulo Doçuras e agruras da terceira idade, em que um casal senior comentava temas da atualidade ou da vida doméstica. Ela e ele não têm nomes próprios, “para melhor se identificarem com qualquer pessoa de características idênticas, os seniores que estão ali retratados”, explica o autor. Com a chegada da pandemia, Os Grisalhos tornaram-se monotemáticos. E a sua audiência cresceu muito. Se, no princípio, uma tira era vista por um máximo de 80 seguidores, hoje há casos que atingem as duas mil visualizações.
E, de tanto se meter com o SARS-CoV-2, o bicho deu-lhe o “troco” e infetou-o, como conta José Pestana à sua maneira. A 16 de janeiro passado, testou positivo. Não precisou de assistência hospitalar, mas, à exceção de dificuldades respiratórias, que não teve, passou por todos os sintomas típicos da Covid-19, durante 15 dias. “Um sabor esquisito na boca, meio estrume, meio argamassa, os olhos ardentes e colados, calafrios, falta de olfato, e sensação de grande cansaço”, relata. O coronavírus, além de não lhe deixar pista nenhuma sobre como se infetou, também lhe ofereceu um sintoma extra, que o cartoonista desconhecia: “Alterou-se-me a voz por completo. Fiquei com um fiozinho, parecia um ancião, praticamente não conseguia fazer-me ouvir.”
No resto, aconteceu o padrão. Embora também infetada, foi a mulher, Vera, quem dele cuidou, “com desvelos de fada Sininho”, elogia-a o doente assistido, já na posse do teste negativo e de um “cadastro sanitário limpinho”. Mas não é por ter passado pela Covid-19 que José Pestana se pergunta, hoje, caso a empreitada do “livrinho” surgisse agora, se avançava. “Provavelmente, não”, diz. E justifica: “As consequências trágicas da pandemia multiplicaram-se exponencialmente.” Aposta-se, porém, que as hesitações voltariam a ser ultrapassadas. Até porque o cartoonista acaba a conversa a recomendar “vivamente” uma leitura recente – a dos Poemas em Tempo de Peste, de Eugénio Lisboa (ed. Guerra & Paz, 88 págs., €11). Aos 90 anos, o poeta “mantém a pena afiada, combinando humor, raiva, sarcasmo e nostalgia”, resume. Num daqueles poemas, lê-se: “Lixe-se a melancolia, / refúgio de quem não luta, / e combata-se, de dia, / o vírus filho da puta!”