Já nos tínhamos questionado por onde andariam, neste confinamento, os vizinhos exemplares que retratámos neste texto, publicado no início de abril de 2020, quando ainda não sonhávamos o que teríamos pela frente. Imaginávamo-los silenciados pela fadiga pandémica, escondidos atrás das cortinas das janelas, num desalento comunitário causado por uma nova prisão domiciliária.
Não sabemos de todos, mas d’Os Vizinhos à Janela toda a gente soube a 15 de fevereiro, dia de festa na praceta Jardim dos Arcos, em Paço d’Arcos, nos arredores de Lisboa. É certo que o tempo não está para festejos, nem para abraços, mas o que fazer quando se ganham 10 mil euros, caídos de um conceituado prémio europeu?
Iñigo Hurtado, 50 anos, que conhecemos quase há um ano, no sopé de sua casa, na época em que só se recebiam pessoas na rua, deveria estar em Bruxelas, por ser o mentor deste projeto que envolveu os seus vizinhos de praceta. Quis o vírus que, em vez de se adiar mais esta entrega de prémios, tenha sido organizada online, com os 23 vencedores a falarem à vez, durante apenas um minuto.
Todos os anos, o Comité Económico e Social Europeu (CESE) entrega um prémio à sociedade civil, com recompensa e encorajamento às iniciativas que tenham contribuído para promover a identidade e integração europeias. “Este ano dedicámos o nosso Prémio Solidariedade Civil a todos aqueles que que lutaram contra a pandemia Covid-19 e as suas consequências, com coragem, empenho, solidariedade e um incrível sentido de responsabilidade”, lê-se no comunicado que anunciou a festa no computador.
Durante a entrega, moderada pelo vice-presidente para a comunicação, Cillian Lohan, e a jornalista Jennifer Baker, foram mostrados pequenos vídeos para apresentar os projetos vencedores, divididos por categorias: fornecimento e assistência alimentar a grupos vulneráveis, equipamento médico, serviços de aconselhamento, serviços educativos e informação sobre a pandemia e ofertas culturais. Foi neste último grupo que Portugal venceu, sozinho, podendo assim encerrar a cerimónia. Iñigo Hurtado, em sua casa, depois de despachar o discurso, em português (embora seja catalão), para cumprir o minuto exigido, pôs um gorro de Portugal, exibiu a nossa bandeira e rematou: “É uma emoção indiscritível. Obrigada Europa.” Jennifer Baker louvou o “poder da música para criar uma comunidade e esbater a solidão da vida em confinamento”.
Festa rija na praceta quando isto acabar
A candidatura foi entregue a 30 de setembro, depois de compilada toda a informação pedida, e seguindo a dica de uma vizinha que tem um sobrinho a trabalhar na União Europeia. Só em janeiro, Iñigo ficou a saber que tinham ganho, sem conhecer mais pormenores, mas teve de ficar calado até agora. Claro que contou aos seus vizinhos, com o alarido permitido pelo embargo.
A música da praceta já se tinha calado em julho, quando a vida retomou uma aparente normalidade. Mas a solidariedade que entretanto nascera no seio deste movimento, depois de os moradores serem desafiados pela Junta de Freguesia, nunca parou. Desde então, um conjunto de 50 prédios, que escapam em muito à praceta onde tudo começou, recolheram seis toneladas de alimentos que fazem chegar a quatro associações. “Passo duas horas a apanhar tudo o que as pessoas doam”, conta Iñigo, orgulhoso dessas dádivas.
O dinheiro do prémio, que ainda não chegou, há de ser para distribuir, com transparência, por essas pessoas em necessidade, desta vez indo além da comida. E ainda ficará um bocadinho de parte para que os vizinhos façam a verdadeira festa na praceta, quando a pandemia deixar. Nessa altura, haverá abraços em barda, para atenuar os que ficaram suspensos pela Covid-19.
Por agora, e movidos pela força do prémio, retornaram à música, às sextas à noite e aos sábados e domingos, às duas e às oito, como antigamente. O violino de Ana Freitas continuará a soar da sua janela, sempre que esta professora de música, “a nossa alma”, partilhar o seu dom com os vizinhos. Nos outros dias, lá estará Iñigo a fazer de Dj e a dar vazão aos discos pedidos. Até quando?