À meia-noite do dia 21 de janeiro de 1961, um grupo de 24 homens armados reúne-se no terceiro convés do navio português de passageiros Santa Maria. O paquete leva, a bordo, cerca de 900 pessoas, de várias nacionalidades, 300 das quais são tripulantes. Joia da Companhia Nacional de Navegação, o navio, construído, nos estaleiros John Cockerill SA, na Bélgica, entre 1951 e 1953, pode transportar até 1 182 passageiros. Na sua velocidade de cruzeiro, faz, no mar das Caraíbas, a rota Lisboa – La Guaira – Miami. O grupo de guerrilheiros, formado por dissidentes políticos portugueses e espanhóis, obedece a um comando tripartido. Os galegos Velo Mosquera (aliás Pepe Velo, comandante-geral da operação) e Jorge Sotomayor (comandante militar) delegam o comando político no ex-oficial do Exército português, capitão Henrique Galvão. O luso só exerce estas funções porque o navio prestes a ser sequestrado ostenta pavilhão português. O facto de não existir pena de morte, em Portugal, ao contrário do que sucedia em Espanha, fora o fator decisivo, na hora da seleção da nacionalidade da “presa”. Os rebeldes representam a cúpula do DRIL (Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação), organização formada como resposta ao Pacto Ibérico celebrado entre os ditadores Francisco Franco, o “generalíssimo” caudilho espanhol, e António de Oliveira Salazar, chefe incontestado do regime autoritário português. Dava-se, assim, início ao momento-chave da Operação Dulcineia. Faz agora 60 anos.
Uma história do Tintim
No momento em que chegam ao terceiro convés, os rebeldes espanhóis e portugueses encontram, como principal obstáculo, o seu próprio desacordo sobre a forma de tomar o controlo do navio. Arrastada durante hora e meia, a discussão faz com que se perca a oportunidade de aproveitar o melhor local para a mudança atempada de rota, prevista no plano inicial, e que teria sido essencial para retardar a localização da embarcação, quando as buscas se iniciassem. Galvão defende que a ponte do navio deve ser atacada só por um lado, para evitar o fogo cruzado, mas Sotomayor decide que o ataque se fará pelos dois lados. Desde o início que o amadorismo imperara: Jorge Sotomayor tivera até de vender uma propriedade para conseguir financiar a compra de armamento – bastante escasso, por sinal – e bilhetes para que todos pudessem embarcar. Do lado espanhol, entre Sotomayor e Mosquera, havia divergências ideológicas de base. Só Galvão, que viajara no Santa Maria, algum tempo antes, numa curta distância entre escalas, para fazer o reconhecimento, parecia saber o que queria. O exilado político Miguel Urbano Rodrigues, que viria a estar, em serviço jornalístico, para o Estado de São Paulo, no Santa Liberdade (nome com que o Santa Maria seria rebatizado pelos rebeldes) dá conta de uma certa ambiguidade no comando, num posterior relato: “No transatlântico, o comandante nominal era Henrique Galvão, mas apercebi-me logo de que os comandantes reais eram dois galegos: Sotomayor e Velo, que usava o nome de guerra de Xunqueira de Ambia [nome da sua terra, na Galiza].” O anticomunismo de Galvão, um típico dissidente de dentro do regime, foi, desde o início, um anticorpo, até para o jovem repórter comunista…
Do lado português, além de Henrique Galvão – e de Humberto Delgado, apoiante na retaguarda e preparado para desembarcar em Portugal, na perspetiva do sucesso do plano –, estavam Filipe Viegas Aleixo, Joaquim Paiva, Frias de Oliveira e o jovem de 26 anos Camilo Mortágua, braço-direito do capitão e um dos operacionais de maior confiança (pai das gémeas do Bloco de Esquerda Joana e Mariana Mortágua). Os 24 guerrilheiros embarcaram, como vulgares passageiros, uns em La Guaira (Venezuela), outros em Curaçau. O cimento “ideológico” que unia os lusos era o foco do seu líder, Henrique Galvão, no ódio à pessoa de Salazar e no seu derrube.
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