No encontro dos dedos, que quase se tocam, a vida, prestes a começar. A Criação de Adão, cena bíblica imortalizada por Michelangelo, ilustra a relação do Homem com algo maior do que ele. Muitos foram, e continuam a ser, os mistérios revelados e as criações humanas, capazes de nos “salvar” nos piores momentos. Este será um deles.
Mais do que nunca, confiamos nos avanços científicos para ter uma nova vacina, prolongar a vida ou resolver a crise climática. Contudo, os resultados do inquérito Global Attitudes Survey, do Pew Research Center, divulgados este ano, surpreendem. Na amostra, com 38 426 inquiridos de 34 países, 62% afirmam que a religião tem um papel importante nas suas vidas, mais de metade (53%) valoriza a oração e 45% acreditam em Deus. Outro dado relevante: a crença tem maior expressão entre os mais velhos, com menor grau de educação e nas economias emergentes e em vias de desenvolvimento. A Indonésia e as Filipinas são as nações que mais importância dão à crença numa entidade divina para construir a moralidade. No polo oposto, a Suécia, onde a esmagadora maioria (90%) diz não ter necessidade de acreditar em Deus para possuir bons valores (ver infografia) e só 9% comungam deste ideal (a média do continente europeu é de 22 por cento).
Rezamos na Era da Técnica para lidar com a adversidade? Tudo indica que sim, a avaliar pelo estudo da investigadora dinamarquesa Jeanet Bentzen, divulgado em maio. A análise das pesquisas diárias no Google em 95 países mostrou que a crise da Covid-19 aumentou as buscas por oração (em relação a todas as pesquisas no Google) para o nível mais alto já registado até hoje. A docente da Universidade de Copenhaga concluiu que mais de metade da população mundial rezou para acabar com a pandemia, o que remete para uma velha questão: o que leva os humanos a procurarem consolo e uma explicação em algo transcendente, especialmente em tempos difíceis?
O dilema espiritual
De pouco valeu a Sigmund Freud, há cem anos, defender que a expressão religiosa devia ser banida (O Mal-Estar da Civilização) por induzir uma ilusão coletiva. Segundo um estudo recente da American Psychiatric Association, intitulado The Upside and Downside of Religion, Spirituality, and Health, um em cada quatro norte-americanos, em média, procura ajuda para problemas de saúde mental junto de líderes religiosos antes de recorrer a profissionais de saúde. A preocupação com o risco de contágio afeta 48% e 40% temem ficar doentes ou morrer.
A função integradora da religião no cenário pandémico foi confirmada numa sondagem da Gallup, em que 19% dos inquiridos reforçaram a sua espiritualidade. Mas esta era, também, um fator de stresse, na medida em que as preces não atendidas aumentavam o risco de conflito interno, um forte preditor de sintomas depressivos e maníacos (“Deus vai castigar-me” ou “não mereço ser salvo”). A tese é partilhada pelo psicólogo católico Gregory Bottaro, doutorado em Ciências Psicológicas e diretor do CatholicPsych Institute: espiritualizar os problemas psicológicos tende a agravar o estigma na hora de procurar um profissional de saúde mental. Cada área tem o seu lugar, sem que uma substitua a outra. O próprio Papa Francisco assumiu, há três anos, na entrevista ao sociólogo e investigador francês Dominique Wolton, ter frequentado sessões de psicanálise durante seis meses.
No seu melhor, as práticas espirituais e religiosas têm efeito positivo na saúde, ao regular emoções, promover a coerência entre as ondas cerebrais e o ritmo cardíaco e fortalecer o humor e a imunidade, funcionando como amortecedor e consolo. No seu pior, podem culminar em movimentos extremistas e teorias da conspiração. A demonstrá-lo, o artigo publicado na Atlantic, com o sugestivo título QAnon, uma nova religião americana?, referindo-se à narrativa segundo a qual existe um complô planetário perpetrado pelas elites, que teriam inventado a Covid-19 com o propósito de inocular pessoas e controlá-las através de chips ou da rede 5G. O fenómeno levou o Facebook a bloquear contas e referências ao movimento, no início de outubro.
Em tempos de crise, “a grande questão é como sobreviver e lidar com a morte”, nota António Matos Ferreira, professor de História da Faculdade de Teologia da Universidade Católica. “Quando a ciência e a economia falham e não há reflexão social nem um clima de confiança, surgem os radicalismos como resposta ao medo.”
O primado da Ciência
Segundo um estudo da Britain’s Oxford University, quase um em cada quatro sobreviventes da Covid-19 (20%) pode vir a ter insónia, depressão, ansiedade e, até, demência, nos três meses subsequentes à doença. Porém, antes da chegada do SARS-CoV-2, os dados epidemiológicos denotavam preocupação e tornavam expectável a valorização das fontes de ajuda baseadas na evidência científica.
Os dados preliminares do estudo coordenado pelo psicólogo Miguel Ricou, responsável pela supervisão da linha de aconselhamento psicológico do SNS 24, mostram que, no cenário pandémico, “houve um reforço da confiança nas profissões de saúde mais científicas e tradicionais em detrimento das não científicas”, à semelhança do que sucede noutros países. Nas duas últimas décadas, aumentou o interesse dos investigadores pela relação entre saúde e religiosidade, sintonizando-se com as tendências da sociedade civil, como referido num artigo do Washington Post: “A oração é o complemento mais comum da medicina convencional, superando acupuntura, ervas, vitaminas e outros remédios alternativos.”
Em maio deste ano, o psicólogo iraniano Mohammadali Fardin, da Islamic Azad University, analisou 11 artigos científicos publicados entre 1978 e 2019 com as palavras-chave “oração” e “espiritualidade” e concluiu que, em 70% deles, tais práticas se revelaram benéficas em tempos difíceis, como antídotos para o stresse e agentes de calma e bem-estar. Na síntese dos resultados do estudo Covid-19 Epidemic and Spirituality: A Review of the Benefits of Religion in Times of Crisis, referem-se alterações no sistema límbico com impacto na redução da ansiedade, maior satisfação com a vida, melhor saúde física e menor propensão para o abuso de álcool e de casos extraconjugais. Motivos de sobra para sugerir aos médicos que levassem em conta as crenças espirituais e religiosas dos doentes.
À VISÃO, o investigador e docente fez saber que aborda o tema com os seus alunos e, com frequência, diz-lhes: “Quando passamos muito tempo ligados às tecnologias esquecemo-nos de nós e ficamos ansiosos.” Muçulmano praticante e fã do podcast Family Talk, do colega de profissão e cristão evangélico James Dobson, Fardin adianta que estas “vacinas de saúde mental” (ioga, jejum, oração) têm por meta cultivar a serenidade e familiarizar-se com uma dimensão mais profunda da existência: “Rezar ou meditar ensina-nos a estar connosco mesmos e lembra-nos de que a vida é uma passagem.”
Além do cérebro
Na comunidade científica não falta quem veja no cenário pandémico uma luz vermelha para parar e voltar aos valores abandonados pela sociedade materialista e geradora de desequilíbrios. “Não sou um homem de fé, antes um livre pensador e espiritualista convicto”, sublinha Luís Portela, presidente não executivo da maior farmacêutica portuguesa e mentor da Fundação Bial, que apoia a investigação científica a nível internacional nas áreas da psicofisiologia e da parapsicologia e realiza os simpósios bianuais Aquém e Além do Cérebro. Neste século, “é um dever da neurociência estudar fenómenos que existem desde a Antiguidade e estar ao serviço da Humanidade”. Ou seja, “aceitar o que existe” e investir na conjugação de esforços e bom senso. Palavra de quem começou a meditar aos 17 anos, à beira de um esgotamento, e não mais parou.
A aplicação do método experimental à espiritualidade ganhou massa crítica nos anos 1990, com o estudo dos circuitos cerebrais de monges tibetanos enquanto meditavam. O simpósio que reuniu o médico norte-americano Herbert Benson, o Dalai Lama, o académico e budista Robert Thurman, o jornalista científico Daniel Goleman e o “pai” das inteligências múltiplas Howard Gardner, deu lugar ao livro Espírito e Ciência: um Diálogo entre o Oriente e o Ocidente, um marco da Medicina Corpo-Mente e o início da complementaridade entre áreas de saber e de intervenção que estavam, até então, divorciadas.
Investigações com ressonância magnética tornaram clara a ligação entre estados alterados de consciência – em rituais religiosos e não religiosos – e alterações funcionais no cérebro (hipotálamo, amígdala e hipocampo), que resultam em sentimentos de comunhão e de transcendência. Porém, as tentativas de mapear o “locus” da espiritualidade revelaram-se infrutíferas.
“Andar à procura da alma no cérebro é escusado, não está lá”, assegura o neurologista Alexandre Castro Caldas. O diretor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica refere-se a uma dimensão imaterial, próxima do conceito de “inconsciente coletivo” de que falava o psiquiatra suíço Carl Jung, ou do de “embodiment”, a empatia que acontece numa interação. E exemplifica: “Quando se vai ao Santuário de Fátima, experimenta-se a conexão e partilha assentes em algo comum, com estados de consciência que vão além da cognição e da palavra.”
A espiritualidade também está no plano da dúvida, “dizia-o Fernando Pessoa, não haver Deus é Deus também”. O especialista em Ciências do Cérebro refere ainda “o fenómeno poderosíssimo de empatia social que é marchar na tropa, sem rezar”. O facto de não ser manipulável pelo método experimental torna a tarefa difícil aos cientistas, mas é preciso que os médicos compreendam o efeito placebo: “As pessoas não percebem o sintoma, mas temem a morte e Cristo foi o primeiro médico de família, pois via as pessoas numa relação espiritual, alterando o estatuto físico.” O impacto da relação no corpo é algo primitivo, semelhante ao toque da mãe, que melhora os indicadores do sistema nervoso neurovegetativo do bebé. “Podemos não perceber o transcendente, mas estamos equipados para ele; em tempo de crise, o fenómeno torna-se mais presente.”
Espiritualidade pop
O vazio espiritual das sociedades ocidentais alavancou o movimento New Age e a difusão de ideais místicas. Gurus de autoajuda, como o médico indiano Deepak Chopra, e Rhonda Byrne, autora do bestseller O Segredo, foram embebidos na cultura popular, apesar das críticas de pseudociência.
Depois foi a vez dos executivos de Silicon Valley, que despojaram as práticas budistas da sua matriz, dando-lhes a forma de terapias digitais, prontas a usar, para debelar o mal-estar existencial e tornar as pessoas mais saudáveis e felizes através das técnicas meditativas. Apps como a Headspace, do ex-monge Andy Puddicombe, e a Calm, da Apple, conquistaram o mundo corporativo. Tudo mudou quando o estudo By the numbers: ratings and utilization of behavioral health mobile applications, identificou fragilidades nas 25 apps de saúde comportamental mais populares, comercializadas para gerir a ansiedade e a depressão. Três anos antes, o investigador britânico Terry Hyland publicara um trabalho idêntico. McDonaldizing Spirituality: Mindfulness, Education, and Consumerism põe a nu a mercantilização das intervenções baseadas na atenção plena que, sem a ética das tradições e virtudes morais associadas, se resumem a modas.
A adesão ao novo paradigma explica-se pelo acesso fácil a instrumentos de autoajuda e promoção de bem-estar (apps, podcasts com cientistas, palestras e eventos em streaming), satisfazendo, em parte, a necessidade de pertença a uma comunidade com mentores reconhecidos. Veja-se o caso de Thich Nhat Hanh (mestre budista dos famosos) ou do monge tibetano e bestseller mundial Mingyur Rinpoche, conselheiro do Mind & Life Institute, sediado nos Estados Unidos da América, aclamado por investigadores do cérebro, especialistas em inteligência emocional e em gestão do stresse.
Durante o confinamento, “muitas pessoas ficaram disponíveis para cultivar a solidariedade e o encontro consigo mesmas”, avança o padre Bruno Nobre, professor na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica, em Braga. “Assistir à missa pela televisão ou via internet, rezar por outros e fazer-se próximo e pedir ajuda psicológica junto do serviço de acompanhamento espiritual à distância” são, no entender do físico de partículas que se tornou jesuíta, “sinais de um maior envolvimento comunitário que podem, ou não, perdurar”. O diretor espiritual lembra que “a Ciência progride a partir do espanto diante da Natureza” e que “a espiritualidade e a arte são mapas do real através dos quais sentimos que não estamos sós, tornando-nos resilientes em momentos difíceis”.
Na Comunidade Hindu de Portugal, “as meditações e orações diárias em streaming, no Facebook e no Youtube, aumentaram bastante”, afirma o presidente, Kiritkumar Bachu. O mesmo para a doação de bens, as idas ao templo e procura dos serviços disponibilizados (yoga, tratamentos ayurvédicos, linha de apoio psicológico).
Daniela Velho, vice-presidente do centro de meditação Círculo Entre-Ser (Lisboa e Porto), refere uma “afluência enorme às práticas contemplativas e meditativas no formato online para superar estados negativos, ganhar foco, ir além da funcionalidade e dar profundidade e sentido à vida”.
Admitindo que “a Ciência não responde a tudo”, o médico e presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, António Calaim, afirma que “a dimensão espiritual é uma ajuda preciosa na procura de um novo equilíbrio, com efeitos no plano físico”, lamentando que a interrupção das visitas a hospitais e lares tenha privado muitos dessa ajuda.
“Não me passa pela cabeça usar a Ciência para tomar decisões sobre questões morais e vice-versa”, afirma o neurocientista Joaquim Alves da Silva, da Fundação Champalimaud, que vê na sua prática cristã “uma bússola moral em questões demasiado vastas da existência”. Ainda que a religião não deva ser a resposta à falta de conhecimento, obtido pelo método científico, ela espelha-se na “aceitação de verdades que, enquanto cientista, não posso provar”.
As faces do transcendente
Apesar de Portugal ser o país europeu com atitudes mais favoráveis à religião, a ênfase no indivíduo tem vindo a conquistar lugar nos grandes centros urbanos. Os resultados do estudo Identidades religiosas e dinâmica social na Área Metropolitana de Lisboa (AML), coordenado pelo antropólogo Alfredo Teixeira e divulgado no ano passado, mostram que mais de metade dos inquiridos se declaram católicos (54,9%), embora essa maioria histórica esteja a perder terreno para os sem religião (34,9%), que engloba ateus, agnósticos, indiferentes e crentes sem religião. Estes últimos são os que mais se destacam (13,1%) na AML, a par do crescimento, pouco expressivo, das minorias religiosas (9,2%), confirmando uma tendência de secularização.
“Assistimos a uma reconfiguração da religião e da espiritualidade, que tem vindo a moldar-se à modernidade contemporânea”, afirma a socióloga Helena Vilaça, uma das autoras do estudo. A docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto adianta que a crescente autonomia das instituições e da liberdade de crenças se reflete em “práticas mais individualizadas e espontâneas, sem o fator obrigatoriedade”. De notar ainda que “os não crentes (ateus, agnósticos e indiferentes) tendem a confiar na Ciência e a conceber Deus como uma criação humana, centrada no indivíduo e na ligação à Natureza”.
No limite, “testar hipóteses com o método científico é um ato de fé ritualizado que visa aproximar-se da verdade e controlar a realidade”, admite o psicanalista António Alvim. “O ser humano tem um hardware primitivo, com mecanismos de ataque/fuga, mas é também o único animal capaz de se mobilizar por coisas inúteis”, observa, fazendo menção à cena do filme Titanic, em que os músicos tocam um hino a Deus enquanto o navio se afunda. Perante a vulnerabilidade e o desamparo, “até os ateus projetam a omnipotência infantil num objeto idealizado que transcenda o momento de aflição, repondo a tranquilidade, no ‘ai mãezinha’, no ‘ai meu Deus’; não há coisa mais religiosa do que o ‘vai ficar tudo bem’, precisamos dessa crença”.
A necessidade de um mito comum é tanto maior quanto o for a perceção de insegurança: “O mantra, o amuleto, a oração ou o peluche que ajuda a adormecer são objetos de relação pouco complexos, entre o real e a fantasia, a perceção e a projeção, aos quais é possível ligar-se num registo transcendente, que faz parte da natureza humana.” Entre nascer e morrer, há o encontro com o desconhecido pela via do olhar, do gesto e da imaginação.
Virtudes espirituais com valor científico
Existir dentro de um outro é uma necessidade humana. Sobrevivemos e evoluímos através da experiência de comunhão e partilha. Estudos realizados pela equipa do psicólogo e investigador norte-americano Mark S. Rye, do Skidmore College, em Nova Iorque, validaram quatro virtudes comuns às tradições espirituais e religiosas e a intervenções psicológicas. A esperança, a gratidão, o perdão e a autocompaixão promovem o estabelecimento de conexões e a regulação dos afetos. Cultivá-las no quotidiano traz ganhos em saúde e satisfação com a vida e encontramo-las nas práticas que incluem movimento, respiração e consciência do corpo, imersão na Natureza, exercícios de relaxamento e meditação. Fazer voluntariado, envolver-se em eventos comunitários (prática desportiva, coro, danças, clubes locais) e manter contacto com grupos de atividades e partilha ajuda-nos em momentos difíceis e devolve-nos o sentimento de união com algo maior do que nós, que nos acolhe e transcende.