No início de dezembro, a ONU reconheceu oficialmente as propriedades medicinais da canábis, numa votação realizada em Viena pela Comissão de Estupefacientes, o órgão executivo sobre política de drogas das Nações Unidas. Apesar de o uso recreativo continuar a ser proibido pelo direito internacional, esta aprovação representa um grande avanço para os defensores da legalização e regulação da canábis à escala mundial.
Paralelamente, nos EUA, a Câmara de Representantes do Congresso Americano aprovou um projeto-lei que visa remover a canábis da lista federal de drogas consideradas perigosas, enquanto que na Europa o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que o CBD (um composto da planta da canábis com baixos níveis de TCH, a principal substância psicoativa da planta) não era um narcótico.
Foi no seguimento destes importantes acontecimentos internacionais que a Católica Global School of Law organizou a conferência “O Futuro da Regulação da Canábis”, na qual foram discutidos as conquistas dos agentes pró-legalização nas Nações Unidas, nos Estados Unidos da América e na União Europeia.
EUA: o progresso e os entraves
Com a vitória de Joe Biden, foi também eleita a Vice-Presidente Kamala Harris, que apoia publicamente a descriminalização de marijuana, o que se pode traduzir em mudanças no futuro desta área. Para além disso, no dia das eleições, os americanos não votaram apenas no seu futuro presidente: quatro Estados americanos aprovaram o uso recreativo da planta depois da decisão ir para as urnas.
“Os resultados desta eleição são importantes porque foram a votos dois Estados Democratas e dois Estados Republicanos. Ou seja, ficou demonstrado que a legalização já não está apenas na agenda dos progressistas – é uma questão independente do espectro político, importante para todos”, disse Kasia Malinowska, Diretora do Global Drug Policy Program.
No entanto, Daniel Rodriguez, Professor na Universidade Harold Washington, nos EUA, não se mostrou tão positivo quanto a possíveis progressos no futuro da legalização total, que inclui o uso recreativo da canábis, a nível federal: “neste momento, já há quinze Estados que legalizaram a marijuana. A maioria dos Estados dos EUA já descriminalizou a posse de droga e permitiu a regulação para fins medicinais, mas ainda há entraves à legalização total, que inclui o uso recreativo.”
Rodriguez ainda alertou para as dificuldades na regulação legal da canábis, utilizando o exemplo da Califórnia: “anos depois da legalização da canábis ser aprovada neste Estado, a venda ilegal de marijuana continua a ser três vezes superior à venda legal, porque é mais barata e não é taxada. Isto resume-se a um jogo de oferta e procura, e é essencial que seja aprovada a legalização a nível federal.”
ONU: boas notícias para os Países do Sul
Quanto ao recente reconhecimento pela ONU das propriedades medicinais da canábis, João Taborda da Gama, Sócio da Gama Glória, afirmou que há um lado positivo e outro negativo no desfecho da assembleia. “A parte positiva é que a ONU reconheceu que a canábis tem valor medicinal, ou seja, deixou de se opor à mesma quando usada para estes fins. A partir de agora, qualquer país que queira implementar programas de canábis medicinal deixará de enfrentar este obstáculo.”
Kasia Malinowska reforçou esta ideia, considerando que a aprovação é “muito mais importante para os países do Sul, onde o acesso a canábis medicinal é significativamente mais baixo do que para a Europa e os EUA, onde já existia uma maior abertura neste sentido.”
No entanto, Taborda da Gama alertou para o lado negativo da decisão da ONU: é insuficiente. “Depois de anos de estudos científicos, isto é muito pouco.” Paralelamente, o advogado também realçou que “a resolução que sofreu mais oposição na assembleia da ONU foi uma proposta da Organização Mundial de Saúde que clarificava que o CBD não era um narcótico” – foi chumbada com 46 países contra e 6 a favor. Assim, a comercialização da substância não psicoativa da planta da canábis continuará a enfrentar fortes obstáculos a nível mundial.
Europa: o caso francês
“Um dos maiores problemas que enfrentamos é a desarmonia de legislação a nível europeu”, afirmou a advogada francesa Marie Sanchez, Sócia da Nooa Avocats. O seu país, ao contrário de muitos outros estados europeus – nos quais se inclui Portugal – ainda não legalizou a canábis para fins medicinais, estando neste momento a ser preparado um plano piloto.
“França é um dos países mais conservadores relativamente à regulação da canábis”, disse Sanchez, “as pessoas pensam que a legalização da canábis medicinal seria uma porta aberta a outros usos, mas o uso medicinal e o uso recreativo são duas questões são totalmente diferentes.”
Quanto à possibilidade de França vir a legalizar a canábis para fins medicinais, a advogada apresenta-se cética: “não é provável que aconteça num futuro próximo. Isto é errado, porque vai criar uma desigualdade no tratamento de doentes na União Europeia: os pacientes franceses não terão acesso ao mesmo tipo de tratamentos médicos que outros cidadãos da União.”
No entanto, a questão da fiabilidade da canábis medicinal levanta algumas dúvidas a Daniel Rodriguez: “ainda não temos pesquisas médicas suficientes para comprovar os seus benefícios com detalhe”, apesar de realçar que “as provas mais fortes indicam que os benefícios vêm predominantemente do CBD.” Por essa razão, o professor acredita que a razão principal para defender a legalização da canábis como um todo poderá ser o seu uso recreativo, e não o medicinal.