“Não leves a mal, eu até gosto de pretos. Mas deixa-me contar-te esta…” As expressões que aparecem plasmadas no livro são oito e podiam facilmente ser o dobro. “Juntei mais de vinte, acabando por concluir que seria excessivo”, diz Ângelo Delgado, copywriter e gestor de redes sociais, que assina Sem Ofensa a meias com a designer Sofia Ayuso.
Não chegamos a perguntar-lhe se alguma vez ouviu a frase “para preto, falas bem”, embora apostemos que sim. E se acrescentássemos “mas ele também não tem a pele muito escura”, entraríamos diretamente no grupo-alvo deste livro que a editora Alma Letra acaba de publicar.
Sem Ofensa dirige-se às pessoas que, embora não se considerem racistas, usam expressões carregadas de preconceito, há de dizer-nos este descendente de cabo-verdianos. E a adversativa “mas”, aqui, tem um peso especial. “Alguém já afirmou que depois de um ‘mas’ não vem uma coisa boa e eu concordo em pleno, porque o ‘mas’ é um escudo que as pessoas usam para se defenderem do que vão dizer. ‘Atenção, eu não penso isto, mas afinal aquilo que acontece…’.”
O livro que Ângelo Delgado escreveu e Sofia Ayuso ilustrou tem a linguagem como ponto de partida. “É aquilo que está pela rama, que está à superfície, que mostra o racismo. Porque nós andamos pela rua e tropeçamos nele”, nota o ex-jornalista.
Sem quererem fazer um caminho académico ou histórico. “Procurámos impactar as pessoas com expressões que todos dizemos ou aceitamos. Normalizámos estas expressões. Quem é alvo delas não reage e quem as ouve e não concorda também não. Eu próprio fui muitas vezes testemunha passiva.”
Os dois autores acreditam que o trabalho de erradicar essas expressões é coletivo, porque elas vêm de trás, fazem parte de uma herança colonial do País. E também acreditam que estamos todos a dar passos nesse sentido. “Já evoluímos, são expressões menos ditas, embora ainda se continuam a dizer coisas que ofendem”, diz Ângelo Delgado.
Sofia Ayuso tem uma perceção semelhante. “Sinto que à minha volta as coisas mudaram bastante. Há dez ou quinze anos, era muito possível ouvir esse tipo de frases à minha volta, no meu círculo de amigos. Hoje, seria escandaloso e até impensável isso acontecer, mas tenho a noção de que vivo numa bolha”, sublinha. “Facilmente saio dela e posso ficar chocada.”
‘Para preto até falas bem’
“O que é amarelo por fora e preto por dentro? O 767 da Carris em direção à Reboleira”. A velhinha anedota em tom de adivinha aparece nas páginas de Sem Ofensa e não é a única, porque Ângelo e Sofia decidiram recorrer ao humor para provocar uma reação. A abrir, aliás, explicam logo ao que vão.
“Para preto até falas bem. Sem ofensa, claro. Sem Ofensa é um livro de linguagem e tema pesados, embora inclua na sua narrativa vários apontamentos de humor. Versa sobre o uso e abuso de expressões carregadas de preconceito racial na sociedade portuguesa, ainda que negados por quem as verbaliza. É, aliás, partindo desse ponto de vista negacionista que texto e ilustração acasalam, deixando uma mensagem clara: o racismo percorre o país assobiando para o ar, despreocupado, na oralidade de muitos. Bastantes, até. Sem Ofensa é, igualmente, um convite à reflexão sobre os efeitos nefastos que a utilização informal de linguagem preconceituosa provoca nos seus alvos”, lê-se no início do livro.
As ilustrações seguem a mesma diapasão, explica-nos a designer. “O humor dos desenhos foi intencional, porque o texto também tem esse tom. Inicialmente, quando falámos pela primeira vez sobre o tipo de ilustrações que o nosso livro devia ter, o que faria mais sentido, pensei num estilo infantil, como se fosse para crianças. Mas fomos evoluindo e acabámos por ir para um tipo mais de cartoon, que puxa pelo lado humorístico.”
Ambos sabiam que as ilustrações tinham de ajudar a equilibrar o tema, em si pesado. Também por isso, Sofia Ayuso optou por representar as pessoas sem as vitimizar. “Quis dar-lhes um toque mais de empoderamento. Para que os leitores não olhassem para elas e pensassem ‘Coitadinha’.”
No texto, Ângelo Delgado usa as expressões “preta”, “preto”, “pretos”, sem qualquer intenção de chocar. Poderia tê-las trocado por ‘negra’, ‘negro’, ‘negros’? Sim. E deveria tê-lo feito? Nim. “No meu dia a dia, utilizo ‘preto’ e ‘negro’ de uma forma livre, sem nenhum peso. Só dou peso à expressão ‘preto’ quando é dita por terceiros e num contexto que percebo que a cor não está a identificada de uma forma indiferente”, justifica.
O publicitário é tudo mesmo ingénuo. “Em Portugal, tem peso dizer “preto”, lembra. “É como o ‘nigger’ em inglês, a ‘n word’.” E, tendo sido jornalista, fica preocupado sempre que vê a comunicação social “dar cor” a quem cometeu um crime. “Quem diz cor diz etnia ou nacionalidade”, nota. “Esse tratamento tem de mudar porque mostra que há uma tendência para normalizar quem tem uma cor, uma etnia ou uma nacionalidade diferente. No fundo, é dizer que quem fez algo de mal não é de cá. Parte da nossa comunicação social ainda tem de fazer esse caminho.”
Fica o recado. Como se lê na epígrafe do Sem Ofensa, “Nunca é tarde para mudar”.