Certamente já ouviu falar em delírio, um sintoma associado a doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia. Não é dele que padecem doentes sujeitos a procedimentos invasivos (cirurgia, intubação, ventiladores) e a internamentos hospitalares longos. O delirium é uma condição física aguda marcada por alterações no sistema nervoso central que comprometem as funções cerebrais. Trata-se de uma condição reversível, mas geradora de sofrimento e que se traduz em estados de confusão mental, desorientação no espaço e no tempo, agitação, pensamentos incoerentes e discurso sem nexo.
Os sintomas começam por ser agudos e variam, em intensidade, ao longo do dia e constituem um desafio para as equipas clínicas das unidades de cuidados intensivos. Em março, uma equipa de cientistas liderada por Sikandar H. Khan, da Indiana University Purdue University Indianapolis, divulgou uma investigação sobre o assunto, no American Journal of Critical Care, com resultados promissores.
Intervenções ao ouvido
Os pacientes que ouviram a música da sua preferência afirmaram sentir-se normais e calmos e aqueles que foram submetidos a música relaxante precisaram de menos doses médias diárias de sedativos e antipsicóticos
Os investigadores pretendiam avaliar se a música reduzia o delirium em doentes submetidos a ventilação mecânica numa unidade de cuidados intensivos (UCI). Para tal, realizaram um ensaio clínico randomizado numa amostra de 117 internados em alto risco de desenvolver a síndrome de insuficiência cerebral aguda, ou delirium, potenciada também pelo uso de sedativos para minimizar a dor, ansiedade e stresse provocados pela intubação.
Com uma média de idades a rondar os 57 anos, os pacientes foram aleatoriamente vinculados a três protocolos de intervenção: listas de música personalizada, música de ritmo lento (entre 60 e 80 batidas por minuto) e um audiolivro (grupo de controlo). As sessões, realizadas com leitores mp3 e headphones com função de cancelamento de ruído, tiveram a duração de uma hora e foram feitas duas vezes por dia, num período que ia até sete dias.
Os pacientes que ouviram a música da sua preferência afirmaram sentir-se normais e calmos e aqueles que foram submetidos a música relaxante precisaram de menos doses médias diárias de sedativos e antipsicóticos (haloperidol, opióides, propofol e quetiapina). Conclusão: o uso da música mostrou-se benéfico na redução do delirium e na diminuição dos níveis de ansiedade e dor, apresentando-se como intervenção promissora nos internados em UCI. Isso quer isso dizer que podemos ver na música um tratamento eficaz para certas condições clínicas, como as descritas?
Talvez seja prematuro considerar que sim, até pela reduzida dimensão da amostra, como frisaram os cientistas. A médica anestesiologista Maria João Susano, da Fundação Champalimaud, que tem investigado o delirium, mostra algumas reservas: “O estudo apenas prepara o caminho a futuras investigações para comprovar, ou não, a eficácia destes protocolos de musicoterapia.” E observa ainda: “Diria que este estudo não traz qualquer conclusão sobre a eficácia da musicoterapia na prevenção e/ou tratamento do delirium.”
Na saúde e na doença
O cérebro humano está programado para absorver paisagens sonoras, vibrar com elas e deixar-se contagiar pelos efeitos. A música tem inúmeras vantagens no desenvolvimento e na promoção de bem-estar: apura os sentidos, proporciona prazer, facilita a coordenação de movimentos e muda o funcionamento cerebral. Além disso, a relação que se estabelece com o universo das sonoridades – apreciá-las, dançar, cantar ou tocar um instrumento – contribui para aumentar a plasticidade do córtex visual e o aumento do número e do tamanho das células nervosas no cérebro, com ganhos ao nível da memória e das competências técnicas e emocionais.
O sentimento de conexão experimentado através do som e da melodia ocorre sobretudo no plano sensorial e fisiológico, razão pela qual é “lembrada” pelo corpo, mesmo quando a mente “esquece”. Estudos em psicologia da saúde e musicoterapia sugerem que o uso da música produz emoções positivas, facilitando a recuperação de doentes crónicos e melhorando a sua qualidade de vida, embora ainda não exista ainda um consenso na comunidade científica acerca da sua aplicabilidade em intervenções hospitalares.
No início de novembro, um vídeo partilhado pela associação espanhola Música para Despertar, que utiliza a música para melhorar a memória de doentes de Alzheimer, tornou-se viral, superando os dois milhões de visualizações. Gravadas há um ano, as imagens que comoveram o mundo são de Marta C. González Saldaña (Marta Cinta), que nos anos 1960 foi a bailarina principal do New York Ballet, sentada numa cadeira de rodas a fazer os movimentos do segundo ato da peça O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, ao lado do psicólogo e musicoterapeuta Pepe Olmedo, diretor da associação.
A divulgação do vídeo, no primeiro aniversário da morte da ex bailarina e coreógrafa, tinha a intenção de prestar-lhe homenagem e dar a conhecer os efeitos da música na vida de doentes de Alzheimer, uma patologia que afeta o hipocampo (região do cérebro onde se formam memórias e o processo de aprendizagem) e o lobo temporal, que conduz à perda da linguagem e da consciência de si.
Linguagem universal
A música ativa o sistema somatossensorial e atenua sintomas de tristeza, ansiedade e apatia e afigura-se uma modalidade interessante no acompanhamento de processos de convalescença e na reabilitação.
“Em Portugal, a musicoterapia tem vindo a conquistar algum espaço de intervenção no meio hospitalar”, informa a psicóloga Teresa Leite, coordenadora e docente do mestrado em Musicoterapia da Universidade Lusíada, único no País, e que existe há dez anos.
“Já temos musicoterapeutas a colaborar em equipas de serviços hospitalares, na unidade de dor crónica do Garcia de Orta, em Almada, e nos cuidados paliativos do Instituto Português de Oncologia, em Coimbra”. Além, disso, “também colaboramos com a Associação Alzheimer de Portugal.”
Embora seja uma intervenção “não-essencial” e que carece de enquadramento legal, Teresa Leite adianta que a técnica é ainda usada “como complemento da psicoterapia e do apoio psicológico”.